Que dizer? Qualquer reflexão construída a partir de um momento, de um acontecimento isolado, tem os seus limites. A fotografia passageira de uma mobilização livre e espontânea como esta imobiliza o seu movimento, não distingue os possíveis inscritos na sua dinâmica.
Há na praça, ao mesmo tempo, uma atmosfera de entusiasmo e a sensação de se estar a participar numa mobilização embrionária que segue o exemplo do que se passa em Espanha. Movimento amplamente transmitido pelos media. Em termos superficiais, podemos fazer a "sociologia" dos participantes: uma mistura de idades, com a predominância de uma juventude parisiense, estudantil e precária, ou ambas aos coisas simultaneamente. São muitas as pessoas que se deslocaram impelidas pela curiosidade, interpeladas pelo acontecimento, como eu… Os militantes de organizações políticas são também manifestamente numerosos, ainda que não se exibam nessa qualidade, os comunicados distribuídos não sejam muitos e eu não tenha visto jornais militantes à venda. Há também uma completa ausência de presença sindical, sem excluir sequer a esquerda sindical. Deste ponto de vista, a atmosfera é bastante mais respirável do que por ocasião das grandes manifestações clássicas, dominadas pelas organizações sindicais e políticas, com os seus meios sonoros atordoadores.. Ouvindo a maioria das intervenções e lendo os dizeres das grandes bandeirolas afixadas, sentimos a tentação de dizer que há um refluxo, em termos de energia e de combatividade, por comparação com as mobilizações vividas nos últimos anos em França. Mas esta diferença talvez traduza qualquer coisa de novo. As palavras de ordem são pouco imaginativas e essencialmente centradas na reivindicação de uma "democracia real" e no carácter pacífico da mobilização. O tom das intervenções é, por vezes, de uma grande ingenuidade, no estilo "indignado" em voga, distante da raiva que se expressava em anos anteriores sobre a natureza de classe da crise do sistema. Mas o espírito de uma mobilização não se encontra necessariamente, de modo directo, nos textos, nas palavras de ordem, no que se diz. Esta assembleia reúne decerto mais ideias, projectos, sonhos, revoltas, do que aqueles que enuncia explicitamente. Trata-se de uma dessas situações em que "os actos vão mais longe do que as palavras" (como diz um texto que nos chega de Espanha).
Os jovens que animam esta assembleia terão já participado, o ano passado, no movimento contra a "reforma" das pensões? Ou a sua mobilização será mais recente, surgindo na esteira do movimento em Espanha? Não é só disso que se trata. A mobilização corresponde também ao sentimento amplamente generalizado de uma crise profunda do sistema representativo em França, caracterizado pela corrupção e pela degenerescência da classe política, o aprofundamento das desigualdades e a arrogância dos poderosos. Depois do fracasso do poderoso movimento do ano passado, esta reivindicação (a "democracia real") exprime também a necessidade de sair do impasse das manifestações sindicais repetidas, a vontade de passar à contestação do sistema. Se é verdade que a atmosfera de tonalidade democrático-humanista domina a assembleia, a determinação de confronto com o poder não desapareceu. Eis dois exemplos que apontam nesse sentido. Uma versão renovada da Marselhesa, cantada ao microfone por dois jovens, provocou os apupos de uma boa metade dos presentes. Depois, quando a polícia tenta fechar o acesso ao recinto, um clamor de cólera levanta-se da massa, apesar dos apelos a uma atitude pacífica por parte dos detentores dos microfones. Por pouco a atmosfera "construtiva" da assembleia oscila e só o recuo da polícia acaba por acalmar os ânimos. Manifestamente, como em Espanha, coabitam aqui duas tendências: a que acredita vagamente num aperfeiçoamento do sistema democrático e que rejeita em bloco a forma de representação actual com o seu sistema de partidos e sindicatos. Entretanto, a maioria dos presentes submete-se respeitosamente às regras do jogo (democracia e pacifismo). Só uma extensão da mobilização poderá levar ao amadurecimento destas diferenças.
Importante, sem dúvida, é a apropriação do espaço público como lugar de debate e de discussão. Importante igualmente, é a auto-organização necessária à preservação desse espaço. É essencial também o eco que esta preocupação de democracia de base, directa, encontra em amplos sectores da sociedade. O discurso ultra-democrático da maioria dos intervenientes parece, no entanto, suspenso sobre o vazio. Com efeito, que sentido concreto dar ao conceito de democracia de base numa multidão de alguns milhares de pessoas que não se conhecem, que não partilham de uma mesma condição (de exploração, de vida, de habitação…), que não têm tarefas precisas a assumir (além da de se manterem reunidas)? C’est déjà beaucoup. Ainda que tal ideia possa dificilmente ser aplicada no quadro desta assembleia efémera de rua, nem por isso deixa de ser verdade que milhares de pessoas a veiculam e que ela vai abrindo caminho na sociedade. De momento, a únida democracia da base é a da palavra. O que é já muito.
Em França, não se pode dizer que estas assembleias nasçam numa sociedade resignada e passiva. Longe disso. Vivemos, nos últimos anos, uma sucessão de lutas e de movimentos de grande amplitude. Há uma continuidade, uma progressão contraditória, nesta atitude anti-sistema da qual fazem parte estas assembleias pela "democracia real". Apesar das derrotas, das devastações causadas pela atomização e dos medos veiculados pela crise social, o quotidiano continua a ser marcado por lutas e mobilizações importantes. A agitação tornou-se quase endémica no ensino e, no sector da saúde, o descontentamento contra a destruição dos serviços públicos faz-se sentir sem esmorecer, há escolas que são ocupadas pelos pais e pelos professores, imigrados que lutam colectivamente exigindo a regularização da sua situação, greves duras que explodem (na grande distribuição e na indústria) contra as condições de trabalho e os salários baixos. As assembleias dos "indignados" interpelam e atraem decerto muitas daquelas e muitos daqueles que se bateram ontem e lutam hoje. Por ocasião do movimento contra a "reforma" das pensões, alguns sectores minoritários tentaram criar ligações horizontais e autónomas, vencer a separação entre os diferentes sectores em luta. Muito naturalmente, as estruturas sindicais opuseram-se fortemente a estes esforços. Agora, estas mesmas aspirações reaparecem claramente nas mobilizações actuais. Só o tempo permitirá que se concretizem. Para nos ficarmos por um exemplo apenas: parecem começar já a estabelecer-se ligações com a rede de apoio aos jovens tunisinos sem documentos que escaparam recentemente de Lampedusa e são regularmente corridos pela polícia dos lugares que ocupam em Paris.
Enquanto as assembleias dos "indignados" não se alargarem, tornar-se-ão inevitavelmente lugares privilegiados do militantismo partidário e grupuscular. Sabemos que a influência das organizações políticas sobre um movimento social é inversamente proporcional à sua própria dinâmica autónoma. Quando um movimento enfraquece, as manipulações das organizações tornam-se manifestas. O caso é o mesmo quando um movimento não consegue assumir um impulso próprio independente. Na Bastille, os profissionais das organizações e dos grupúsculos vão avançando, de maneira encoberta, as suas propostas. Ao mesmo tempo que se submetem às regras do jogo da "democracia de base", os seus militantes traem-se assumindo um discurso paternalista, como se estivessem a falar com crianças pouco informadas da complexidade da política neste baixo mundo… E há depois o perigo da burocratização das estruturas que se instauram, as comissões. Parece difícil ao anónimo de passagem avaliar o seu grau real de autonomia por oposição às organizações que, fiéis à sua natureza, procuram controlar o que se passa. Tendo em conta a experiência acumulada dos últimos anos, sentir-nos-íamos tentados a dizer que esta juventude está mais bem armada contra a manipulação da política dos políticos. Também a este propósito, só a extensão das mobilizações pode confirmar ou infirmar o prognóstico.
Estas assembleias não têm a dimensão nem as potencialidades das que se formaram em Espanha. Aqui, não é tanto a um movimento que assistimos como a uma tentativa de criar um movimento… De momento, estas assembleias parecem decalcadas, pouco consistentes, Podem, sem dúvida, cristalizar uma cólera que se alimenta, desde há anos, da crise social. Cólera que não esmoreceu depois do fracasso das mobilizações contra a "reforma" do sistema de pensões. Na sociedade francesa, e tendo em conta a radicalização de alguns sectores da juventude e dos assalariados, o objectivo de uma "democracia real" pode evoluir rapidamente no sentido do afrontamento com as formas de poder estabelecidas. Estamos longe dessa situação. Mas, desde já, a simples existência destas assembleias, e a simpatia social que suscitam, exprime algo mais do que o mal-estar social. Surgindo depois das mobilizações e das lutas dos anos anteriores e dos sinais negativos das derrotas, querem-se pontos de referência positivos num processo em curso. Talvez nos indiquem que estamos prestes a entrar num novo período. Põem-se de lado o reivindicativo, os apelos ao Estado, a exigência de regresso a um passado mitificado que o neoliberalismo teria destruído. Toma-se consciência do fracasso da acção dos partidos e dos sindicatos para se buscarem novos métodos visando a construção de um futuro diferente. Trata-se de um longo caminho que será inevitavelmente balizado por avanços e recuos.
1 comentários:
os clochards que ganham trocos a abrir as portas ao pessoal
tamém tinham pensões
as reformas e as pensões nã sã pra todos
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