27/08/11

Negros hábitos

A religião organizada é uma criatura oportunista. Preda sobretudo os velhos, os feridos e os aflitos. Rejubila a cada maré de desgraças, a cada epidemia de misérias. Até uma das suas glórias lusas, a suposta aparição de Fátima, deixou isso bem claro: "Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto", eis a ameaça despejada pela fundadora do "altar do mundo" sobre os pequenos e aterrorizados videntes. Com mães assim quem precisa de madrastas más?
Há dias, o cardeal patriarca de Lisboa não quis perder a oportunidade de se queixar dos sindicatos e demais malandros que não se conformam com o roubo do nosso futuro. Afirmou-se indisposto com "os grupos que estão a fazer reivindicações". Parece que a sua organização se dá bem com muitos pobrezinhos à volta para "pedir e anunciar a generosidade e a esperança". Quem prefere lutar contra a maré é que tem as tais "visões derrotistas e pessimistas". Que floresçam mil santuários de caridade; que as igrejas se voltem a encher de massas deprimidas; que o cheiro da estearina queimada em Fátima chegue às narinas compassivas do Senhor. E esqueçam essa mania de querer mais e melhor ainda neste mundo.
Em Madrid, o Papa dedicou-se aos espíritos tenros dos jovens. E insurgiu-se contra "os que querem decidir por si mesmos o que é verdade ou não, o que é bom ou mau". Uma alma mais distraída leria aqui um assomo de autocrítica. Mas não, é apenas mais do mesmo: os propagadores de superstições a julgar os outros sem se verem primeiro ao espelho.


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3 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, grande camarada Luis - só falta retomar o texto que citas em forma de bula, para termos oficialmente renovada a excomunhão da democracia. Pois esta não é, com efeito, outra coisa senão a vontade de decidirmos por nós próprios, em pé de igualdade unsa com os outros, do bem e do mal, segundo critérios de responsabilidade e verdade independentes de uma autoridade exterior e superior à praça da palavra e à sua exigência de darmos conta e razão daquilo que (nos) propomos.

Abraço grande

miguel (sp)

Mário Abrantes disse...

A Igreja sempre com o rabo de fora. Apesar disso, a definição de democracia que o Miguel escreve é, na prática, uma ilusão.

Primeiro, porque 'em democracia' não decidimos por nós próprios coisa nenhuma, apenas gramamos com as escolhas das maiorias (que quase sempre nem o são devido à abstenção); e é muito ingrato dançar como mandam as maiorias (além de ser deprimente; veja-se o estado em que estão as sociedades ocidentais). Segundo, porque os partidos estão subjugados a interesses de grupos de poder, que os usam como palcos de disputas palacianas disfarçadas de lutas pelo bem comum; isto configura um apoderamento das estruturas políticas, e de governação em geral, por parte de poderes económicos e ideológicos, tradicionalmente egoístas e despidos de preocupações com questões de sustentabilidade e nem estar social.

Infelizmente, responder a isto tudo com a asserção vulgar de que a democracia é o menos mau dos regimes, não enche a barriga dos que têm que ir para a fila da sopa nem emprega os desempregados.

Talvez seja altura de encontrar novos paradigmas para governar a contento das pessoas. Quase dois milénios e meio depois, a democracia parece rota como um jogador em fim de carreira.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Mário Abrantes,

a democracia implica um pouco mais do que a eleição por maioria de alguns representantes. Exige a participação regular e igualitária dos governados no poder de governar - o que, na sitauação actual, significa, entre outras coisas, a desprofissionalização da política e, não menos importante do que ela, a repolitização explícita e a democratização da esfera económica, que se tornou instância governante (logo "política") por excelência.
Boa parte do que tenho escrito aqui no Vias não fez mais do que defender esta perspectiva e a correspondente concepção de democracia. Por isso, permita-me que me fique por aqui na resposta ao seu presente comentário - cujas conclusões eu poderei, de resto, tornar minhas como juízo sobre os regimes - incluindo a economia política - que nos governam, mas que, a meu ver, são regimes oligárquicos, ainda que lutas seculares tenham conseguido impor neles certos limites à dominação oligárquica, a qual, de resto, os aceita cada vez pior e tem, de há décadas para cá, conduzido uma ofensiva em forma visando esvaziá-los de conteúdo e eficácia.

Saudações democráticas

msp