21/10/13

A estrutura remuneratória da função pública

[Regressando e aprofundando este tema]

No Relatório [pdf] do Orçamento de Estado proposto, o alargamento dos cortes salariais é justificado com o seguinte argumento (página 32)..

Refira-se que a redução do limite inferior, a partir do qual as medidas são aplicáveis, teve o único propósito de, mantendo embora a isenção absoluta dos rendimentos ilíquidos inferiores a 600 euros, dirimir uma inadequada política de rendimentos na Administração Pública. Com efeito, o estudo solicitado pelo Governo a uma consultora internacional demonstra que as práticas salariais da Administração Pública diferem substancialmente do padrão que é observado no sector privado, sugerindo um padrão de iniquidade entre o público e o privado. Depreende-se que no sector público existe um prémio salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações associadas a funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do sector privado. Também recentemente a OCDE reconheceu a existência de um elevado diferencial entre salários no sector privado e salários no sector público.

[Via Pedro Romano]
O estudo deve ser este, "Análise Comparativa das Remunerações Praticadas no Sector Público e no Sector Privado" [pdf], da consultora Mercer, publicado em fevereiro de 2013.

E, realmente, lá há uma passagem (página 3), em que pode ser lido:
Em termos gerais, conclui-se que as práticas salariais da Administração Pública diferem do padrão que é observado no sector privado, podendo assumir-se que, no sector público, existe uma prática salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações pagas para funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do sector privado.
Mas creio que esta passagem ganha um outro significado se for lida no contexto geral:
Em termos gerais, conclui-se que as práticas salariais da Administração Pública diferem do padrão que é observado no sector privado, podendo assumir-se que, no sector público, existe uma prática salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações pagas para funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do sector privado. Todavia, esta análise macro não dispensa uma apreciação mais analítica por tipo de função/profissão, que este relatório apresenta.

Para funções de topo (direcção superior de 1.º e 2.º nível) verifica-se que as remunerações (ganho) praticadas no sector privado poderão exceder, em média, cerca de 30% as praticadas no sector público. Ao nível das funções de direcção intermédia, constata-se que o sector privado tende ainda a ser mais competitivo em termos remuneratórios que o sector público, embora com um diferencial menor e que se tende a esbater (ou mesmo a reverter) quando se desce na hierarquia e nos níveis de responsabilidade atribuídos.

Ao nível das funções técnicas (v.g. Técnico Superior e Informático) constata-se que a média salarial praticada na Administração Pública excede, ainda que de forma moderada, a que é praticada no sector privado, identificando-se um diferencial salarial que poderá chegar, em média, aos 14%. Importa, todavia, ter presente que este estudo não entrou em consideração com componentes remuneratórias de natureza variável, que tendem a assumir alguma expressão no sector privado.

O factor antiguidade de serviço será também relevante para justificar as diferenças encontradas ao nível da carreira técnica superior, porquanto no sector público esta variável é muito determinante para a construção da remuneração mensal auferida, o que não acontece de forma tão vincada no sector privado.

Relativamente ao grupo dos assistentes técnicos e demais pessoal administrativo, que é extremamente heterogéneo no sector público, verifica-se que a diferença em termos salariais face ao sector privado é reduzida, embora ainda ligeiramente favorável ao primeiro.

Para as funções de assistentes operacionais e auxiliares, que assumem uma grande dimensão no conjunto da Administração Pública ao contrário do que, em geral, se verifica no sector privado observado, constata-se que as remunerações praticadas no sector público tendem a ser ligeiramente inferiores às do sector privado. Importa, contudo, ter em consideração que a utilização deste tipo de trabalhadores no sector privado tende a estar associada a funções de carácter produtivo e/ou operacional, sobretudo em empresas de pendor industrial, e no sector público está maioritariamente associado a tarefas administrativas e/ou auxiliares, normalmente não inseridas na cadeia de valor produtiva da organização, sem prejuízo do papel relevante que possam desempenhar.
Isto é, quem leia, não só a proposta do Orçamento, mas sobretudo muitos artigos de jornal que se têm publicado nos últimos tempos sobre os salários da função pública, fica com a ideia que profissionais mais qualificados são mal pagos na administração pública e os pouco qualificados bem pagos; quando na verdade os profissionais menos qualificados ganham na AP largamente o mesmo que no privado, sendo as grandes diferenças dentro do grupo dos "mais qualificados” - com os “dirigentes” a ganharem mal em comparação com o privado e os “especialistas” a ganharem aparentemente bem (deixando de lado a tal questão das remunerações variáveis...).

Ora, creio que isto muda muito os termos com que a questão é geralmente posta.

P.ex., o programa de rescisões "voluntárias", destinado a Assistentes Técnicos (empregados administrativos) e Assistentes Operacionais (operários) - creio que nenhum membro do governo, ao lançar esse programa, veio com a conversa de que esses grupos eram comparativamente bem pagos na função pública; mas muitos jornais disseram isso (lembro-me perfeitamente de o artigo no Expresso sobre o programa de rescisões dizer isso), deixando implicito que era um dos motivos para as rescisões serem dirigidas a esses grupos.

Mas o ponto mais importante é que se dá uma imagem distorcida da "luta de classes" em causa - a conversa habitual dá a ideia que é uma questão de distribuição de rendimento entre trabalhadores com menos e com mais qualificações. E, infelizmente, a ideia de que é expectável (e se calhar até desejável...) uma grande desigualdade de rendimentos entre as pessoas conforme o seu nível de qualificações parece ter assentado arraiais na nossa sociedade (frequentemente as mudanças tecnológicas costumam ser apresentadas como a causa disso, mas acho essa tese muito fraquinha), pelo que a conversa de que é desejável aumentar a desigualdade salarial na função pública até consegue passar sem grande resistência. Já dizer abertamente de que é preciso baixar os vencimentos aos "especialistas" e subir aos "dirigentes" seria mostrar demasiado o jogo e assumir que a luta pela repartição do rendimento não é entre menos e mais qualificados, mas sim entre os "dirigentes" e o resto; e atendendo à indignação que no mundo ocidental tem vindo a crescer contra as elevadas remuneração dos gestores, se calhar um discurso dizendo "temos que subir os salários dos dirigentes e baixar os dos técnicos para estarmos em linha com o privado" talvez provocasse uma resposta "não será o privado que está mal?" (e, já agora, haveria também a resistência motivada pela convicção dominante - seja ela fundada ou infundada - de que grande parte dos dirigentes na administração pública são-no mais por ligações políticas do que por competência profissional).

1 comentários:

joão viegas disse...

Aaaaarggghh,

Mais um tema interessantissimo, em sintonia alias com a questão da igualdade levantada noutro post do Miguel Madeira de ha uns meses atras.

Para uma completa analise deste tema, acho essencial ter em consideração o que nos dizem as regras (e tradições) juridicas nesta matéria. Começando pelo começo : a remuneração na função publica, tradicionalmente, não é concebida como o preço pago em troca da disponibilidade da força de trabalho. Isto porque a relação entre o funcionario publico e a entidade publica que o emprega não é considerada como um contrato entre duas partes iguais. Alias, na tradição administrativa francesa, que tanta influência exerceu em Portugal e no sul da Europa, nem sequer se fala no "salario" ou na "remuneração" do funcionario, mas no seu "tratamento", cuja função era, no século XIX, "permitir que o funcionario mantivesse o seu "rang"".

Parecendo que não, Ha aqui um ponto de partida muito fértil para reflectirmos sobre o que é o valor, e nomeadamente como é que nos representamos o valor economico.

Como é obvio, a justificação para distinguirmos entre o exercicio de funções publicas e qualquer outro trabalho remunerado tem a ver com o facto de reconhecermos que, num caso, existe uma parte que representa o interesse geral, o qual pode (dentro de certos limites) sobrepôr-se ao interesse da outra parte. Portanto esta questão é, em meu entender, perfeitamento central para reflectirmos de forma pragmatica sobre a articulação que pode existir entre o exercicio de poderes democraticos, a repartição dos encargos e das riquezas comuns e, como é obvio, em ultima instância, o respeito do principio de igualdade entre os cidadãos. Tudo questões que, penso, são do interesse dos leitores do Vias de Facto.

Acrescento que as dificuldades a que aludo são de uma enorme actualidade. Por exemplo são elas que :

- estão no centro das discussões a nivel europeu sobre a noção de serviço publico ;

- explicam as dificuldades recentes que experimentamos com a "contaminação" do direito da função publica por uma logica contratualista, de que a recente decisão do TC português sobre o principio da "confiança legitima" é uma esplêndida ilustração ;

- estão também (indirectamente) relacionadas com muitas das questões praticas relativas aos direitos pensionistas, onde também existe uma forte tensão entre uma optica "contratualista" (a que esta subjacente uma logica de capitalização) e uma optica "legalista" (que corresponde mais a uma logica de repartição).

Espero ter tempo para escrever um pequeno post sobre este tema, insistindo nas suas vertentes juridicas, que infelizmente pomos tantas vezes de parte, quando elas são na realidade preciosas para ajudar-nos a compreender como se podem aplicar concretamente os principios em que acreditamos à realidade social.

Abraços a todos