01/03/14

Desmistificar a Euromaidan– Revoltas e herança do socialismo real


Os acontecimentos ucranianos, a ocupação da praça de Kiev e o massacre que levou ao afastamento de Yanoukovitche do seu bando não foram fáceis de seguir por quem procura compreender o mundo onde é obrigado a viver! Isto sobretudo se tivermos em conta as poucas informações directas e fidedignas de que dispomos e o poder da propaganda pró-UE e pró-democrática produzida pelos media europeus. Fomos também confrontados com o descontrolo habitual daqueles que se deixam rapidamente seduzir por qualquer confronto de rua com a polícia. Ora, ver nas barricadas e nos confrontos violentos com os mercenários do regime um sinal de radicalidade revela uma grande falta de sentido crítico, do mesmo modo que atribuir um conteúdo democrático à revolta em função da reivindicaçãode integração na UE padece de uma perspectiva errada.
Qualquer revolta social que permaneça confinada ao domínio da política terá o seu futuro moldado pelos interesses das forças capitalistas e das relações intercapitalistas. Sabemos, e pudemos constatá-lo em concreto, que a relação entre os interesses do capitalismo europeu – em particular do seu núcleo alemão –e os do capitalismo russo se encontra no cerne da crise ucraniana. Mas um movimento social capaz de desequilibrar as relações políticas no interior de um Estado introduz inevitavelmente factores de imprevisibilidadee pode influenciar a lógica friadas relações intercapitalistas. É por isso que a compreensão da natureza e dos projectos das forças políticas que actuam no interior do movimento ucraniano é indispensável para ver mais claramente o que se passa.
Na revolta da Euromaidan, houve duas forças políticas organizadas que se destacaram desde início contra o regime de Yanoukovitch e o seu Partido das Regiões. A par dos partidos democráticos liberais pró-UE, uma outra força política ganhou progressivamente influência no decurso dos acontecimentos. Trata-se da corrente ultranacionalista e nacional-socialista, representada sobretudo pelo partido Svoboda quetem uma real implantação epoder de mobilização em Kiev e na Ucrânia ocidental. Por razões de oportunismo e de interesse político, os democratas ocidentais e os seus escribas decidiram minimizar, e mesmo ignorar, a sua intervenção, a sua ideologia e o seu projecto político. Ora, este não é o mesmo que o das forças pró-UE, na medida em que esta corrente fanaticamente nacionalista se opõe, pelo menos em teoria, simultaneamente ao domínio russo e ao da Europa, vista como uma zona de valores decadentes e sujeita aos «interesses judaicos internacionais».
A existência em Kiev de pequenos grupos que têm uma perspectiva crítica do mundo e dos interesses capitalistas em jogo constitui um trunfo precioso para nos orientarmos no nevoeiro da Euromaidan. Neste âmbito, há diversos textos disponíveis na Internet, designadamente uma entrevista realizada por uma rádio livre da Carolina do Norte (EUA), Ashville Fm Radio, com um camarada anarco-sindicalista da União Autónoma dos Operários da Ucrânia (1). No site deste grupo (2), podemos igualmente ler, em inglês, uma outra entrevista (3) e um debate (4). Um texto menos interessante e mais ideológico, do Sindicato Autónomo dos Trabalhadores de Kiev encontra-se disponível em francês (5).
 Não se trata de aceitar estes textos como se traduzissem A verdade sobre a situação na Ucrânia. Tendo em conta a confusão reinante e os aspectos contraditórios e em constante evolução da situação, é legítima a ocorrência de diferenças de análise, e estas devem ser expressas. Trata-se de ler estes textos respeitando a inteligência daqueles que intervêm e daí retirar elementos que nos permitam prolongar a reflexão e compreender um movimento que não caminha necessariamente na direcção dos nossos desejos e expectativas. Com efeito, como tem acontecido com outras evoluções nas sociedades saídas do desmoronamento do bloco do capitalismo de Estado, estas revoltas são portadoras de tendências profundamente reaccionárias perante as quais as correntes emancipadoras se encontram em minoria, e mesmo ameaçadas.
Vejamos agora sucintamente alguns dos aspectos abordados por estes camaradas ucranianos.
A composição social dos manifestantes presentes na Euromaidanevoluiu ao longo dos meses. Inicialmente, a maioria dos manifestantes eram membros das classes médias pró-ocidentais, apoiantes dos partidos da oposição ao regime de Yanoukovitch. Depois, com o desencadear da repressão policial e a chegada de elementos das classes mais populares, a composição da multidão na praça diversificou-se. A relação de forças entre os partidos presentes também se modificou e o papel dos partidos extremistas nacionalistas e racistas, sobretudo o partido Svoboda, ganhou peso. Segundo esta análise, as classes médias da juventude estudantil de Kiev constituem a principal base de recrutamento de quadros e militantes de partidos extremistas como o Svoboda e o Pravy Sektor, que aliás se encontram também fortemente implantados entre os trabalhadores da Ucrânia ocidental. Podemos pensar que muitos trabalhadores, jovens e desempregados, seduzidos pela histeria nacionalista, foram depois recrutados por grupos paramilitares e enviados para o combate. Mais apática e menos militante, a grande massa dos trabalhadores vê estes grupos como uma«vanguarda» que protege o povo contra uma classe dirigente corrompida. De um modo geral, fazem notar estes camaradas anarco-sindicalistas, a presença dominante dos partidos neonazis corresponde ao ambiente geral na Euromaidan, onde as ideias nacionalistas uniam em grande medida os ocupantes.
Um outro aspecto que ilustra os limites do movimento é o facto de, fora da Euromaidan e das ruas limítrofes, a vida ter seguido o seu curso «normal» em Kiev. Bem entendido, em todo o lado, nas empresas, na cidade, na Ucrânia ocidental em geral, os confrontos na Euromaidan estavam no centro de todas as conversas e preocupações. Porém, não terá havido qualquer movimento de solidariedade colectiva nem greves. O apelo, lançado por algumas organizações liberais de esquerda, a uma greve política não teve qualquer eco, e inclusivamente a greve dos trabalhadores dos transportes da cidade, em Janeiro, desenrolou-se sem ligação com a agitação na praça. Uma tentativa de greve na Universidade foi abafada pela intervenção de grupos neonazis.
Segundo informações fornecidas por estes camaradas,o conjunto da ocupação da praça permaneceu dominado pelos aparelhos dos partidos, desde os partidos da oposição até aos partidos nacional-socialistas. Estes últimos asseguraram e dominaram o essencial das actividades práticas e de organização da ocupação. Pela sua própria natureza militarista e machista, impuseram-se desde início como«os especialistas» da violência e encarregaram-se da «autodefesa» da Euromaidan. Apesar de a ocupação ter durado mais de dois meses, as práticas de acção independente e de auto-organização foram quase inexistentes, e foram os chefes e as hierarquias que dominaram e decidiram. Não houve assembleias nem tomadas de decisão colectivas, e os debates limitaram-se às questões nacionalistas e estritamente políticas. As tentativas de abordar a questão social chocaram de imediato com a oposição dos chefes neonazis, que as denunciaram como uma «provocação». É certo que a vida interna da praça eramuito diversificada, mas as organizações fascistas mantiveram o controlo do lugar. Os grupos paramilitares, os Sotnia, continuaram sob a direcção de chefes nacional-socialistas, alguns dos quais tinham estado ligados a sectores da polícia. Trata-se de grupos constituídos exclusivamente por homens, em que os valores machistas são especialmente vincados. Assim, não admira que, logo a seguir a Yanoukovitch e o seu clã terem sido lançados borda fora, estes grupos se tenham assenhoreado de Kiev e dos edifícios oficiais, misturados com a polícia de Kiev que se pôs ao lado das forças da oposição.
Os pequenos grupos de radicais foram marginalizados, excluídos da organização da ocupação da praça, com excepção dos grupos de ajuda médica, onde muitos radicais e mulheres puderam inserir-se. Logo que tentaram exprimir as suas ideias ou levantar questões de carácter social foram violentamente atacados e expulsos da Euromaidan, acusados de serem «provocadores». Ousar pôr em causa o mito pró-UE dos partidos da oposição e relembrar que a Europa é também sinónimo de austeridade social equivalia a ser-se apelidado de partidário da Rússia…Alguns radicais bem tentaram agrupar-se e formar um Sotnia independente, mas as milícias do Svoboda atacaram-nos imediatamente e expulsaram-nos da Euromaidan, acusando-os de serem um grupo «racialmente impuro». De acordo com informações fornecidas por estes camaradas, os raros anarquistas e radicais que se conseguiram integrar nos Sotnia acabaram por se resignar, por razões tácticas ou por oportunismo, a aceitar os valores nacionalistas e racistas dos chefes! O mesmo é dizer que, ao fazê-lo, renunciaram aos seus valores e princípios e suicidaram-se politicamente. A confusão e a força do nacionalismo são tais que a própria figura de Makhno é hoje adulada pelos nacional-socialistas. Dado que lutou contra os bolcheviques, é apresentado como um verdadeiro nacionalista ucraniano…
Os três textos acima referidos abrem o debate acerca de uma questão importante: as causas e os fundamentos da expansão da ideologia nacional-socialista e do racismo nas sociedades do antigo bloco capitalista de Estado. Tudo se passa como se o vazio ideológico deixado pelo desmoronamento dos regimes totalitários comunistas tivesse sido substituído pela expansão do nacionalismo, e a velha ideologia do «socialismo científico» tivesse sido substituída pela do «nacionalismo científico». A passividade, o individualismo e o seguidismo actual dos trabalhadores perante os partidos populistas estão ligados à cultura da submissão reinante nos países do «socialismo realmente existente». Para efeitos dos seus interesses e da sua propaganda, o poder russo esforça-se por reduzir todo o movimento da Euromaidan a uma tomada do poder pelos fascistas. Ora, no leste da Ucrânia, o Partido Comunista Ucraniano desempenha o mesmo papel populista que o partido neonazi no oeste do país. Organiza as suas próprias milícias paramilitares e fomenta um nacionalismo pró-russo feroz e belicoso.É o fascismo castanho contra o fascismo vermelho e vice-versa.
Os acontecimentos bárbaros a que assistimos inscrevem-se na orientação do que foi o antigo sistema opressivo da exploração, que erigiu os nomes do socialismo, do marxismo e do comunismo em cobertura ideológica. Não será nos próximos anos que sairemos desta liquidação.
Ao animador da rádio livre norte-americana que pergunta que forma concreta de solidariedade podemos pôr em prática para com os anarco-sindicalistas ucranianos, o camarada entrevistado responde: «O melhor que podem fazer é o que estão a fazer, ou seja, tentar desmistificar a situação actual, pois é natural que muitos anarquistas nos países ocidentais tenham tendência para sentirem um optimismo excessivo acerca do que se passa na Ucrânia.» A solidariedade internacional não pode olhar para uma situação complexa de maneira simplista. Parece evidente que estamos a assistir, não a um movimento que estabelece as premissas de uma emancipação social, mas, pelo contrário, a um movimento maioritariamente controlado por formações políticas autoritárias e animado por ideologias mortíferas e reaccionárias. É provável que, nas zonas de sombra e nos raros espaços não ocupados pelos chefes nacionalistas e racistas, existam germes de uma outra maneira de ver o mundo e de outras formas de acção. Mas, na evolução da situação, tudo aponta para que estejamos ainda longe do caminho da emancipação social. Reconhecer isto é dar provas de solidariedade para com os nossos camaradas que no local da acção tentam fazer-se ouvir em condições adversas.







3 comentários:

Anónimo disse...

http://colectivolibertarioevora.wordpress.com/tag/ucrania/

Diogo Duarte disse...

Jorge, antes de mais, excelente texto. Comecei por escrever aqui um comentário mas este cresceu tanto que acabei por transformá-lo num post entretanto publicado. Perante algo tão complicado como o que se passa na Ucrânia é difícil ter divergências significativas, a não ser com quem insiste em tomar posições definitivas e maniqueístas. Espero não ter treslido alguma coisa do que escreveu. Um abraço

Anónimo disse...

Salud compas!
Os dejamos un enlace a la traducción al español del artículo de Jorge Valadas:
http://www.alasbarricadas.org/noticias/node/28923