28/11/17

Re: Esquerda e Direita (IIIa) - ainda o Estado, a Propriedade e "direitos naturais"

Este ponto que vou fazer aqui é mais um aparte (é por isso que se chama "IIIa" em vez de "IV"), mas vou aqui aprofundar a questão da propriedade poder ser ou não vista como um "direito natural", entrando por um caminho a que os leitores que já me conhecem do Vento Sueste provavelmente estarão habituados (já que há anos que escrevo lá posts sobre este tema). Este post não será muito relevante para o tema geral, o da "Esquerda e Direita", portanto podem saltá-lo que não afetará a compreensão dos outros posts da série.

Em primeiro lugar, convém notar que o Estado e a Propriedade (ou, pelo menos, a propriedade imobiliária) são conceitos muito semelhantes - ambos consistem no direito de alguém (ou um conjunto de alguéns) exercer autoridade sobre o que se passa num dado território, e recorrer (diretamente ou chamando um terceiro) à violência contra alguém que, estando nesse território, não acate as ordens do soberano/proprietário; no fundo, um proprietário imobiliário pode ser visto como um Estado em ponto pequeno (em inglês até é quase a mesma palavra), e, inversamente, um Estado pode ser visto como uma propriedade (eventualmente um condomínio ou um centro comercial) gigante.

Agora, de onde vem a propriedade, e em que medida ela se diferencia (ou não) do Estado?

Uma hipótese é assumir que a propriedade deriva de uma espécie de prescrição histórica - o direito a alguém ser proprietário de algo resulta de uma sucessão de acontecimentos que começa há séculos ou milénios, incluindo conquistas militares, transações pacíficas, ocupações informais de terras sem dono, doações reais, etc., etc., que levaram a que, em 2017, o apartamento 4º B seja propriedade do Miguel Madeira. É talvez a hipótese mais realista sobre a origem da propriedade realmente existente, mas exatamente o mesmo caminho é a origem dos Estados realmente existentes (veja-se os argumentos contra a auto-determinação da Catalunha, que frequentemente se resumem "a Catalunha não tem direito a ser independente e Portugal tem porque os primeiros perderam uma guerra entre 1640 e 1652 e os segundos ganharam uma guerra entre 1640 e 1668") - ou seja, quem defenda a legitimidade da propriedade como fruto da história terá também que aceitar as restrições à propriedade que os Estados imponham (já que a autoridade do Estado também tem a legitimidade derivada de ser fruto da história).

Outra hipótese é aceitar que a propriedade é simplesmente uma convenção que, como animais racionais, estabelecemos para evitar as situações que se vêm nos documentários da National Geographic, em que a águia-de-Stellar e a águia-pesqueira estão à luta por um peixe e nem reparam que um lobo já levou o peixe; mas, de novo, o mesmo raciocínio provavelmente concluirá que o Estado também é uma convenção, e de novo a autoridade do proprietário e a autoridade do Estado voltam a estar num nível comparável.

Finalmente, pode-se considerar que a propriedade deriva do "direito natural": a diferença entre a propriedade e o Estado será que os proprietários adquiriram a sua propriedade legitimamente (de acordo com as regras estabelecidas pelo tal o "direito natural") e o Estado não, mas aí, se a questão é apenas "como a propriedade/soberania foi adquirida?", a defesa da propriedade com base no "direito natural" é extremamente fraquinha (sobretudo, repito, no caso da propriedade imobiliária) - afinal, atendendo que a propriedade normalmente é adquirida a alguém (por compra, doação ou herança), bastará que, num dado momento da história, tenha havido uma violação do "direito natural" (p.ex., a venda em hasta pública, no Sul de Portugal, das vastas propriedades que, após a revolução liberal, foram confiscadas às ordens religiosas) na transferência dessa propriedade, para invalidar os direitos de propriedade atualmente existentes; alguns tentam ultrapassar o problema argumentando que se essas violações do "direito natural" tiveram ocorrido há muito tempo, e se a partir daí terem sido só transferências pacíficas e voluntárias, não há problema, mas isso acaba por ser simplesmente uma forma ardilososa de voltar ao modelo "prescrição histórica", e facilmente pode ser usado para legitimar também a autoridade do Estado.

Algo que escrevi há uns anos (referindo especificamente o anarco-capitalismo, mas creio que se aplica a toda a ala "direitos naturais" do liberalismo):
O argumento anarco-capitalista tradicional é de que o Estado não é o proprietário legitimo do seu território, enquanto os proprietários privados o são; mas isso acaba por se resumir a mais uma versão da velha discussão sobre quem é o governo legitimo sobre um dado território. Além que não é muito claro porque é que a propriedade dos proprietários particulares há de ser mais legitima que a do Estado.

A maior parte (todos?) dos Estados adquiriram o seu território pela conquista? Se seguirmos a cadeia de transferências de propriedade um pedaço de terra, provavelmente mais cedo ou mais tarde também vamos encontrar alguém que se apossou dela pela força.

A maior parte dos proprietários actuais não adquiriram os seus terrenos pela força (mesmo que os tenham adquirido via alguém que os adquiriu via alguém que os adquiriu pela força)? Mas se ignorarmos a ficção de que o Estado é uma pessoa colectiva com existência intemporal, e o vermos como um simples conjunto de indivíduos (seja na versão optimista - "o Estado somo nós" - seja na pessimista - "O Estado é um bando de salteadores"), então, na maioria dos casos, os indivíduos que constituem os Estados actuais também não os conquistaram pela força (essa conquista frequentemente ocorreu há séculos atrás). No fundo, podemos comparar o Estado a uma empresa que possui terrenos que, realmente, obteve à força, mas cujos actuais sócios/accionistas obtiveram pacificamente as suas quotas/acções e não têm nada a ver com as conquistas do passado.
Resumindo - se tentarmos justificar a propriedade com base noutra coisa que não a aquisição de acordo com o direito natural, não se vê bem qual a grande diferença entre o Estado e a propriedade; e se se tentar justificar a propriedade com base na aquisição de acordo com um suposto direito natural, então quase toda a propriedade (ou pelo menos a propriedade do solo) realmente existente pode ser posta em causa.

Associando as possíveis visões da justificação da propriedade com as várias áreas políticas, eu diria que a primeira (a autoridade dos proprietários e dos Estados é legítima porque é o fruto da história) será típica da direita não-liberal, a segunda (a autoridade dos proprietários e dos Estados é simplesmente uma construção da razão e da vontade humanas, que pode ser sempre reformulada - ou eventualmente até abolida - se desejarmos e/ou acharmos útil) da esquerda moderada, social-democrata/social-liberal, e a terceira (a autoridade dos proprietários é a consequência do direito natural) da direita liberal; já a esquerda radical seguirá sobretudo uma combinação da primeira posição no aspeto positivo (mais no tom "a autoridade dos proprietários e dos Estados é o fruto da história - uma história de violências, conquistas e dominações") e da segunda no aspeto normativo (de considerar que os direitos de propriedade e os Estados são algo que pode ser rasgado a qualquer momento, seja para os substituir por outros funcionando de maneira diferente, seja para os abolir mesmo).

Além do já linkado, mais alguns textos que escrevi sobre o assunto:

Re: Impossibity of Anarcho-Capitalism
Aquisição de propriedade sobre bens em "estado de natureza"
Liberdade negativa e positiva

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