A ver se nos entendemos, de novo. O futebol não implica competição. O objectivo do jogo não é necessariamente marcar golos e ganhar. O objectivo do jogo é também, e em muitos casos apenas e só, jogar. Às vezes sucede que os críticos do capitalismo estão tão envolvidos no combate ao dito que só conseguem entender as coisas partir da lógica do próprio capitalismo que querem combater. (Como aquele sociólogo crítico do neoliberalismo que não hesitava na hora de usar metáforas mercantis para explicar relações culturais ou políticas e vai daí pôs-se a falar de capital cultural e capital social e etcetraetal.) O futebol joga-se contra mas também com. Com os membros da própria equipa e com os membros da outra equipa contra a qual se joga. Na rua, dividimos, muitas vezes, os melhores por várias equipas, de modo a que o jogo seja melhor jogado e o prazer que dele se retire seja maior. Se imperasse apenas a lei do mais forte, os melhores preferiam reunir-se para mais facilmente vencerem. Na economia profissional, de modo diferente, por certo, a coisa não é completamente diferente. A impossibilidade da livre concorrência dominar por completo a economia do desporto profissional reside aí: é sempre preciso outro com quem competir e por isso não se pode enfraquecer o adversário completamente. A razão mercantil, por si só, não basta sequer a si própria. Aliás, o futebol é um bom terreno para vermos como o capitalismo é mais astucioso do que seria evidente. Quando uma marca vende uma camisola de futebol de um clube a um adepto sob o lema “amor à camisola”, trata-se de vender a crítica à ideia de que há coisas que se vendem. E se isto pode ser visto como sinal da capacidade do capitalismo pós-moderno em “recuperar” tudo, pode também ser visto como sinal da possibilidade de superarmos futuramente o capitalismo independentemente de hoje vivermos sob a sua dominação. Isto é, sairmos daqui para fora.
A questão da “recuperação”, diga-se, coloca-se no seio da própria dinâmica do jogo, isto no quadro económico actual, nomeadamente com a desarticulação entre duas coisas que, aos críticos ignorantes do futebol, parecem óbvias e não o são: não é óbvio que o objectivo do futebol seja marcar golos e ganhar, até porque uma coisa e a outra não são a mesma. Por exemplo, vivemos um tempo em que a crítica aos efeitos da competição futebolística é feita em nome do espectáculo futebolístico, o que torna possível declarações poéticas do género “prefiro um jogo que acabe 5-5 do que um jogo que acabe 1-0”.
Neste sentido, haverá que explorar uma série de questões, tais como a lógica campeonato (sem finais) que domina na Europa por contraponto, por exemplo, às “finais” da NBA. Se o objectivo é apurar um vencedor, a verdade é que a "longa duração" do processo campeonato muda a sua natureza substancialmente e não apenas em termo de grau. Não se trata de "eliminar" o outro, como num campeonato do mundo ou da europa entre nações. Trata-se de competir contra e com outros clubes ao longo de um ano, num ritual que, por isso, apesar de promover anualmente um vencedor, logo se renova e começa de novo; contrariamente ao dramatismo das quatro semanas de um campeonato do mundo que se joga apenas de quatro em quatro anos.
Esta oposição, aliás, aponta a um dos aspectos mais importantes a reter: o sistema desequilibrado mas aberto do modelo desportivo europeu e o sistema equilibrado mas fechado do sistema norte-americano. Se na Europa o Benfica contrata melhores jogadores do que o Olhanense porque tem mais sócios e logo tem mais dinheiro do que o Olhanense, na NBA há uma obrigação de repartir os melhores por diferentes equipas; mas, se em Portugal o Olhanense pode chegar à Primeira Divisão, na NBA o sistema é fechado. Trata-se do comunismo num tubo de ensaio, enquanto na Europa trata-se do capitalismo a toda a largura do terreno. Eu prefiro o segundo, talvez, porque assim ficamos mais perto do comunismo a toda a largura do terreno.
Por fim, insisto em chamar (com todo o carinho e admiração pelo Bruno e pelo Cachopo, eles sabem que sim) ignorantes a quem fala sobre futebol sem por ele ter grande interesse. E assim é porque não consigo deixar de ver no fundo dessa fala um certo desdém pela cultura futebolística, que seria uma forma de cultura menor do que outras. Ou alguém admite que se elaborem teses sobre música clássica e filosofia sem ter um grande conhecimento sobre música clássica e filosofia? Temo que não.
08/07/10
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8 comentários:
Tás maluco. Aquilo não é como no ténis, em que se pode "bater umas bolas", só para afastar a senescência dos músculos. Futebol é para marcar golos, vergar o adversário, humilhar o antagonista. O resto é mariquice.
1) A espantosa tese de que existe futebol sem competição significa o quê? Que os jogadores correm pelo terreno sem tentar marcar golo na baliza adversária? Que, no último instante e depois de terem driblado o próprio guarda-redes, atiram a bola para fora?
Sinceramente, não entendi.
2) O que os clubes de futebol fazem, é justamente comprar os jogadores mais fortes. Para terem uma equipa desequilibrada face aos outros. E nos jogo de rua também se chama o primo que vive noutro bairro mas é calmeirão e marca imensos golos.
3) Há quem «conheça» futebol, vibre com os golitos, e seja extremamente crítico da indústria futebolística enquanto forma de entretenimento medíocre, negócio imune a impostos e povoado por dirigentes de má pinta e ligados a negócios escuros.
4) Há quem seja «ignorante» em matéria futebolística (talvez uma das muito poucas ignorâncias virtuosas), e mesmo assim seja dirigente e até jogador (amador ou profissional).
5) E num blogue tão de esquerda, não se vê grande crítica a uma indústria das mais dominadas por mercadores de escravos, vendedores de ilusões, aldrabões sortidos e capitalistas mafiosos.
ricardo alves,
1) significa que não é intrínseco ao futebol o objectivo de vencer o adversário. e se ler bem o post vê que há uma diferença entre marcar golos e vencer o adversário.
2) forma de entretenimento medíocre é um juízo seu. que juntando ao que diz em seguida parece revelar uma certa concepção intelectualista da inteligência. da qual me afasto.
3 ) quanto à crítica, não conte comigo para ver na indústria do futebol um capitalismo mafioso. ou mafioso é aqui usado gratuitamente por si ou então a questão é esta: não creio que o capitalismo não-mafioso seja melhor ou pior moralmente do que o capitalismo mafioso.
Ricardo, temo que tenhamos espalhado a nossa classe por ruas diferentes. Na minha, quem chamasse o primo calmeirão estava apenas a preparar-se para levar baile.
De resto, acho que jogámos todos jogos diferentes. Porque de onde eu venho, fintar a equipa adversária toda e chutar para fora com a baliza aberta era a máxima consagração. E a competição passava precisamente por esse esbanjamento constante - mais próprio da economia da dádiva do que da acumulação capitalista.
A profissionalização do desporto veio trazer ao futebol uma organização industrial? Sim, e isso não deixou de ter aspectos interessantes do ponto de vista do jogo jogado, mas não esgotou todas as suas dimensões.
A realidade não é capitalista.
Zé Neves,
optou por responder ao secundário e não ao essencial.
ricardo alves,
"significa que não é intrínseco ao futebol o objectivo de vencer o adversário". é tão simplesmente isto. e já o escrevi de várias formas.
Zé,
estamos entendidos, só podem falar os que sabem de futebol, porque nós outros, os que não sabemos a diferença entre um quatrotrêstrês e um seisnoveseis estamos condenados a disparatar.
bom, persistirei rancièrianamente em falar sem ter grandes títulos para a fazer, e em confrontar-te com a mesma questão: limitas-te a reafirmar que a competição (no sentido do ganhar e do perder) não é da essência do futebol, sem explicares porquê. multiplicas apenas as ocorrências em que não é assim. não basta.
mas podes estar descansado, que não me meto onde não sou chamado. não me passa pela cabeça discutir futebol, longe disso. vou deixar, por uma vez, a minha ignorância descansar em paz. do que eu falo, é de um discurso que procura ler o futebol pelo lado de uma política emancipatória. por isso falo também de uma lógica do jogo que é, por essência, o avesso dessa política. é uma lógica de competição, de ganhar e de perder ou, como diz o ricardo, de superar. numa palavra, de ser melhor, quando o comunismo é necessariamente o fim da hierarquia, o acabar de vez com o um a tentar ser melhor do que o outro.
e isto está presente nos estádios do mundial, no semana-a-semana de um campeonato, e no jogo de rua e da escola, onde se formam as hierarquias dos pequenos grupos. os mais capazes, os mais populares. é de pequenino que se torce este pepino da ordenação entre os homens. o comunismo é também o cozinhar deste pepino.
dir-me-ás o que é que eu escrevi que possa dar o mínimo sinal de elitismo ou de desconsideração intelectual pelo futebol. olha que nos dias de hoje é precisamente o contrário que impera. uma rápida olhadela pelos jornais mostra que não há intelectual que não faça gala em mandar um bitaite sobre o futebol. a divisão entre alta cultura e baixa cultura (uma divisão que abomino) está na moda, mas está na moda para se dizer que tem de ser ultrapassada.
agora não dou o mesmo valor à arte que dou ao futebol, isso não dou. na primeira existe um potencial de universalismo que no futebol, se dissermos que está fora do seu alcance, estamos ainda a dizer pouco. e não há nada de elitismo nisto. como bem apontas no teu post, falar de futebol, tal como falar de arte, exige um conhecer, uma técnica. só que arte liberta-nos para o que podemos ser, o futebol condena-nos a repetir a miséria que vamos sendo.
abraço,
bruno
Zé Neves,
não conheço nenhum jogo em que o objectivo não seja vencer o adversário. E mesmo quando se joga para aquecer ou para treinar, o objectivo é, mais à frente, vencer.
Posto isto, o que me interessa é que realmente não parece haver grande interesse à crítica do futebol enquanto indústria neste blogue.
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