09/07/10

O Futebol e Os Críticos do Capitalismo Que Não Conseguem Viver Sem o Capitalismo

Neste post respondo aos críticos e atiro mais uma acha para a fogueira. Primeiro, a resposta. O principal argumento que me têm contraposto neste debate é o seguinte: o futebol é um jogo competitivo que implica o apuramento de vencedores e de vencidos. Deste argumento, retiram-se os seguintes tipos de conclusões: 1. o futebol deve ser desvalorizado pela esquerda (Bruno Peixe, João Pedro Cachopo, Ricardo Alves); 2. não tem que o ser, na medida em que a lógica do campo futebolístico não tem por que se transferir necessariamente para outros campos, nomeadamente para o campo político e económico (Miguel Serras Pereira, Pedro Viana, João Tunes). Acho que os dois tipos de conclusões (e peço desculpa pela simplficação) acima elencadas são válidas e em relação a elas poderia dizer “nem tanto ao mar nem tanto à terra”. Mas o meu problema é prévio: é que continuo a insistir que é redutora a ideia de que o futebol é um jogo competitivo que implica apuramento de vencedores e vencidos.

O meu argumento é que isso corresponde apenas a uma parte da experiência futebolística do jogo. E que há muitas experiências futebolísticas que não passam por aí. A questão é: será possível jogar à bola sem que o objectivo seja querer ganhar? A resposta é: claro que sim. E a maior parte das pessoas que se põe a jogar à bola não tem na vitória o seu objectivo. O puto que se levanta a pensar no jogo da bola logo à tarde pensa tanto em ganhar ao adversário como em ir jogar à bola. Isto está relativamente estudado por alguns sociólogos e antropólogos, sobretudo para as bandas da América do Sul.

Não devíamos, e é este o meu ponto principal, naturalizar com tanta facilidade a ideia de que as pessoas se movem tendo como objectivo afirmar a superioridade (ou sequer a sua diferença) em relação aos outros. A maior parte das pessoas que vai jogar futebol iria jogar futebol mesmo se soubesse previamente que iria perder o jogo.

O ex-jogador Alan Shearer, ex-capitão da selecção inglesa, disse um dia, quando questionado acerca da importância do dinheiro como factor motor dos jogadores profissionais, que a tese era exagerada. E acrescentou (cito de cor): afinal, o futebol é uma das poucas actividades profissionais que continuaria a ser desenvolvida mesmo que nada se recebesse por ela. Ele, Shearer, poderia não ir a todos os treinos se não fosse assalariado para esse efeito, mas aos domingos à tarde, lá estaria, sempre, pronto para jogar, com ou sem salário. Ou seja, a natureza de "bem" de que se reveste o futebol é independente da natureza mercantil que o reveste no quadro actual da economia do desporto profissional. A mim parece-me que tal como se joga movido por outras coisas que não o dinheiro, também se joga movido por outras coisas que não o desejo de vitória. Isto mesmo tentei mostar, com o João Rodrigues, num artigo que publicámos neste livro.

Agora, a acha para a fogueira. Na história do futebol, a crítica à competição tem uma relação com as classes sociais, por assim dizer, que não é menor, embora não seja nem linear nem simples. Com efeito, a crítica à competição e à comercialização do jogo tem o seu ponto de partida num ethos amador de índole aristocrata, ligado às origens do jogo. E é no seio das classes populares (incluindo aqui, ainda, sectores da pequena burguesia) que a questão se coloca de outro modo, nomeadamente porque é a profissionalização que permite o dinheirinho para que se jogue ao mais alto nível, pelo menos a um nível tão alto como o que poderia ser aspirado pelos ociosos que tinham tempo e renda para isso. Hoje, por sua vez, a crítica aos efeitos nefastos da comercialização e da professionalização e da competição enquanto máquinas geradoras da obsessão de vencer é igualmente acarinhada pela própria indústria do futebol (parte importante dela, pelo menos), a qual não raras vezes prefere o "espectáculo" dos 6-6 ao tacticismo que leve ao 0-0. Isto já era assim antes, mas acentuou-se nos últimos 25 anos. E a isto há quem chame o combate entre os modernistas industriais do capitalismo futebolístico e os pós-modernistas do espectáculo do capitalismo futebolístico, sendo que estes últimos, curiosamente, parecem reaproximar-se do ethos aristocrata romântico (nada surpreendente, diria o nosso amigo Terry Eagleton), embora também (e isto o Eagleton já não diz) de uma reapropriação/reinvenção popular da ideia do "amor à camisola" (que na verdade começa por explicitar o ressentimento das classes populares diante dos que, do seu seio, ascendem, por via do sucesso futebolístico, a posições mais elevadas na hierarquia social; e que, a partir dos anos 90, estes sejam emigrantes, só ajuda a sublinhar a crítica ressentida...).

E agora vou jogar à bola. Depois digo por quanto é que ganhámos.

5 comentários:

Pedro Viana disse...

Caro Zé,

Mas a competição num jogo de futebol não se resume à determinacão de quem marca mais golos. A competição num jogo de futebol não é apenas entre 2 equipas. É também, se calhar até mais, entre jogadores: entre aquele que remata à baliza e aquele que defende; entre aquele que tenta a finta e o que evita a progressão. Num jogo de futebol há constantemente vários (a maioria "sem bola") duelos, onde um jogador tenta-se sobrepôr a outro, tenta efectivamente demonstrar que é melhor. Esta competição contínua pode ser executada com maior ou menor intensidade, mas existe sempre. De outro modo não estamos perante um jogo de futebol. Se não há oposição, competição, aquilo que resta é um estranho espetáculo onde os participantes conduzem com os pés uma bola, à vez, por entre os restantes, que observam estáticos. Isso não é futebol. Um jogo de futebol tem sempre competição, que pode realmente não ocorrer ao nível de equipas (tantas vezes em jogos de rua se perde a conta aos golos marcados por cada equipa...), mas está sempre presente ao nível individual.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Excelente post, camarada.
Pouco tenho a objectar. Mas lá vai: se, apesar de tudo, pelas razões que o Pedro indica e outras ainda, o elemento competitivo ou de rivalidade estiver um pouco mais irredutivelmente presente do que supões, isso não só não esgota a realidade da criação "futebol", como lhe confere uma forma lúdica, uma sublimação que não exclui o acto nem a consumação pulsionais, democraticamente civilizadora. Neste sentido, podemos dizer que o futebol, a competição desportiva em geral, são ou podem tornar-se - havendo muita ganga a remover, é certo - ingredientes esplêndidos de uma paideia autónoma (igualitária e democrática). E a paideia - formação, socialização, etc. - é o meu ponto: a sua necessidade vem do facto de a autonomia, a vontade dela, etc., não serem programas naturais da espécie, mas alternativas históricas, construções, acção instituinte que precisamos de fazer ou criar a partir do "para além (ou para aquém) do bem e do mal" do magma pulsional "dado".
Isto, sem prejuízo do mais que dizes e que dá muito - e do melhor - que pensar.
Abraço grande

miguel sp

Zé Neves disse...

pedro, de acordo, mas a isso não se chamaria competição, pelo menos nos termos em que o debate tomou a ideia.

miguel, quando tiver tempo, trago a história da democracia corinthiana, que remete para os anos mais "autónomos" que fizeram os primórdios do pt brasileiro..

abç

Ricardo Alves disse...

Penso que fui mal compreendido. Eu não defendo que o futebol deva ser desvalorizado pela esquerda. E também não acho que deva ser valorizado. Pelo menos, estritamente enquanto jogo. Do mesmo modo, acho que a esquerda (ou a direita) nada tem que ver com o futebol, o andebol, o xadrez ou o jogo do berlinde. São actividades lúdicas, e seria muito bom que escapassem sempre aos julgamentos/pronunciamentos de cariz político.

Portanto, acho simplesmente que o futebol enquanto jogo não tem nada que ver com política.

O que me interessa, e este é um nível de discussão totalmente diferente, é a crítica da indústria futebolística. (E aqui já percebi que o José Neves não concorda.) Poucas actividades económicas em Portugal conseguirão aliar um tão elevado nível de corrupção e um tão grande estatuto de imunidade à crítica. E só há outra que se presta a manipulações política tão massivas (a religião). O que me interessa é isto.

(O resto, se conheço as regras ou não, se apoio clubes ou «vibro» com a equipa da FPF, são tudo assuntos do meu foro privado.)

Zé Neves disse...

ricardo alves,

também acho que a indústria do futebol deveria ser objecto de mais e melhor crítica. e acredite que tenho tentado trabalhar nesse sentido. mas a crítica à indústria do futebol não pode ser uma crítica do futebol e o problema é que nem sempre há esse cuidado.

abç