A discussão a que estão a dar azo os posts e comentários ontem aqui referidos corre o risco de sobrevalorizar a questão da competição em detrimento de outras pistas mais fecundas abertas pelos textos iniciais do Zé Neves e do Ricardo Noronha. Tanto mais que, sobretudo no que se refere ao Ricardo, hesito em considerar que o aspecto competição/não-competição seja fundamental. Dito isto, será esse, apesar de tudo, o ponto que tentarei retomar, começando por recuar um pouco num primeiro momento, e esforçando-me por ter presentes, depois, os contributos dos que mais têm vindo a dizer de sua justiça sobre o assunto (os camaradas João Tunes, Luis Rainha, Pedro Viana, João Pedro Cachopo, Miguel Cardina, e também os frequentadores da casa Ricardo Alves, Bruno Peixe Dias e Filipe Moura, entre outros).
Durkheim sabia que o ser humano era habitado por um "desejo infinito" (a expressão aparece nas Formas Elementares… e levá-la a sério seria suficiente para desfazer uma versão pura e univocamente positivista desse "pai fundador"). Freud sabia que o desejo era não só infinito e, sobretudo, indefinido — no que se referia aos seus objectos e alvos —, mas que era também literalmente impossível, avesso a princípios como o terceiro excluído ou o princípio de não-contradição. O verdadeiro desejo elementar é qualquer coisa como a realização da representação/investimento/afecto de "guardar o bolo e comê-lo". E é mais do que isso, ao mesmo tempo: desejo de omniessência ("ser tudo de todas as maneiras", como em Álvaro de Campo: o bolo, a boca e o corpo que o devoram, o corpo-a-corpo destes com os outros personagens ou aspectos da "cena"), de omnipotência (poder absoluto sobre o bolo e o mundo que o produz) e, por conseguinte, também de destruição e vitória sobre tudo e todos os que se lhe oponham. E tudo isto é reclamado ou exigido agora e já, no mesmo instante em que é desejado, ou em que o sujeito é "sido" e "produzido" pelo seu desejo.
Sem dúvida, a instituição, sob a forma de outros seres humanos socializados, intervém desde o começo para produzir a partir da cria humana, e mobilizando-a para a tarefa um “indivíduo social”, através da imposição inegociável à sua energia pulsional explosiva do papel de motor do investimento das formas de vida comuns e da relação e reconhecimento dos outros e da sua lei. Mas o fundo pulsional subsiste, no seu "caos mais antigo que os deuses", como condição necessária da existência humana e da adesão ao mundo comum, e também como excesso irredutível de cada um em relação ao seu papel e identidade prescritas.
A este nível, a socialização intervém sempre do mesmo modo: impõe imperativamente ao regime pulsional que se signifique na linguagem da tribo (que é também uma instituição/representação/recriação do mundo, indefinidamente variável na sua efectividade histórica) e se traduza num agir em conformidade com as significações/prescrições instituídas. Mas fá-lo também poupando o fundo pulsional primário e permitindo-lhe que, de um modo ou de outro, subsista e se alimente investindo a realidade que lhe impõe, uma vez que a sua permanência é condição do processo de socialização que o transforma, e uma vez que a supressão ou redução demasiado estrita do fundo pulsional tornaria o ser humano que dela fosse objecto uma massa inerte absolutamente inutilizável, senão um cadáver provisoriamente ambulante.
É do ponto de vista das instituições que se dão como princípio de representação e produção da realidade de que são parte que as sociedades diferem e difere o lugar e o papel que atribuem aos indivíduos que formam. E é também nesta ordem de ideias que há toda a diferença entre uma “instituição da sociedade” que imagina ou se representa e investe as suas leis e fins como se estes lhe fossem prescritos pelos deuses, pelos antepassados, pela natureza das coisas, independentemente da sua acção e subordinando-a, e uma outra “instituição da sociedade” que se reconhece como obra e criação humanas e se propõe formar indivíduos (“cidadãos”) que se vivam, representem e ajam como tendo o direito e o dever de se darem, como iguais, as leis por que se governam, sem garantias últimas nem modelos anteriores.
Tudo isto exigiria desenvolvimento e argumentação suplementares, mas penso que, na circunstância, é suficiente para situar melhor o tema da competição ou rivalidade e do seu lugar e papel na democracia. Ora, a esse respeito, o que importa é termos presente, como já disse também o Pedro Viana, que a igualdade dos cidadãos significa que a opinião, a voz e, eventualmente, o voto de cada um deles têm o mesmo peso nas decisões que dizem respeito à regulação, orientação, etc. das acções comuns – o que implica também uma igualização radical dos meios “económicos” ao dispor de cada um (que mais não seja porque, no mercado, deve manter-se o princípio de um voto igual por cabeça). Significa, por exemplo, que nenhum deles tenha voto de qualidade ou possa vetar superiormente as decisões democráticas dos outros, ainda que se trate do orador até ao momento mais atentamente ouvido e cujas propostas são mais frequentemente adoptadas pela assembleia. Mas não significa que na assembleia não haja competição entre propostas ou que os cidadãos devam tirar à sorte as propostas a adoptar a pretexto de que nenhuma pode valer ou contar mais ou ser melhor do que as outras. Significa, por exemplo, que todos disponham de iguais condições de acesso (tempo livre, equipamentos, etc.) à prática desportiva ou à expressão artística e à reflexão filosófica, à caça e à pesca ou às mais diversas formas de bricolage. Mas não significa que todos devam ser reconhecidos como igualmente bons caçadores ou filósfos, nem tão-pouco que o auto-governo dos cidaãos não hierarquize ou dê prioridade à promoção de certas actividades sobre as outras, deliberando, através do debate entre alternativas rivais, nesse sentido. Significa liberdade de costumes e de escolha amorosa individual, mas não significa bem que não haja práticas que são excluídas dos costumes legítimos nem que a competição entre pretendentes rivais aos favores amorosos ou eróticos de A ou B deva desaparecer. Significa que deverá haver liberdade de opinião e de consciência, mas não que, ao nível do ensino, não sejam transmitidos conhecimentos e valores hierarquizados e preferenciais, contanto que estes permaneçam em questão e possam ser substituídos ou completados por outros se tal parecer bom ao autogoverno dos cidadãos.
Por fim, o projecto, ou hipótese ou propósito — aventado nesta discussão por um comentário do Bruno Peixe — de instituir uma forma de organização da sociedade que exclua, tornando-a impensável, o “voltar atrás”, seja o que for que se entende por isso, tem muito pouco ou nada a ver com a vontade de autonomia, e tudo com o seu contrário, ou seja com a servidão totalitária. “A sociedade justa é aquela em que a questão da justiça permanece em aberto”, dizia Castoriadis. Não é decerto aquela em que a injustiça é impensável. Um poder democrático livre e responsavelmente exercido por iguais implica, não que os cidadãos governantes não possam conceber a desigualdade, a dominação, a violência ou a tirania, mas, bem pelo contrário, que continuem a decidir e a exercer o seu autogoverno de modo a não alienarem a igualdade, a liberdade e a responsabilidade de se darem as suas próprias leis, porque outro tipo de poder é uma ameaça sempre possível, e não há arquitectura institucional ou organograma da autonomia que possa impedir a assembleia (mudando a constituição, por exemplo) de abdicar da sua vontade governante e de ceder os seus direitos a um tirano.
Ainda Castoriadis: “A colectividade [autónoma] dar-se-á as suas regras, sabendo que é ela quem a si própria as dá, que essas regras são ou se tornarão sempre, nestes ou naqueles termos, inadequadas, que as pode mudar”. Com efeito, “se nos disserem que (…) o direito e a lei serão supérfluos [por exemplo, na “’fase superior do comunismo’, tal como Marx a sonhava”] porque as regras da coexistência social terão sido completamente interiorizadas pelos indivíduos, incorporadas na sua estrutura, deveríamos combater até à morte essa ideia. Uma instituição totalmente interiorizada equivaleria à tirania mais absoluta, ao mesmo tempo que à interrupção da história. Deixaria de ser possível qualquer distância frente à instituição, como deixaria de ser concebível qualquer transformação da instituição. Não podemos ajuizar da regra e transformá-la a não ser na condição de não sermos a regra (…), de a lei ser posta [por nós] diante de nós” (Le contenu du socialisme, Socialisme et société autonome, Paris, UGE, 1979, p. 43). O que nos traz de regresso à conclusão do meu post de ontem: "A fantasia de acabar com o jogo furtando a regra à vontade e à deliberação dos jogadores e à indeterminação fundamental de onde emergiu a sua criação é sempre uma expressão daquilo a que Jacques Rancière, detectando-o também no purismo ascético e moralista daqueles que vemos que se consideram detentores da verdade revolucionária ou da crítica definitiva, chama o ódio à democracia".
09/07/10
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1 comentários:
Excelente post!
Concordo que o fundamental é a defesa do princípio democrático como forma de tomada de qualquer decisão que afecte um conjunto de pessoas. No entanto, é importante também reflectir sobre o que defenderíamos, se este objectivo fosse atingido. E aqui merece reflexão sobre que formas a competição é desejável, se o é de todo. É que eu acho que Democracia e Igualdade são duas faces da mesma moeda, mas poderá haver quem seja de opinião diferente. É perfeitamente possível (e desejável que o possam, como foi argumentado no teu post) que assembleias decidam democraticamente tomar decisões que geram desigualdade económico-social. Nesse caso, na minha opinião, passaria a haver menos democracia, pois a capacidade de decisão autónoma e influência na tomada de decisões também se tornaria desigual. Mas, formalmente, do ponto de vista político, da tomada de decisões, o princípio democrático mantém-se. É por isso que é necessário pensar para além da generalização da aplicacão do princípio democrático ao nível decisório. Este não é suficiente para termos uma real Demcoracia.
Um abraço,
Pedro
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