08/07/10

A democracia perante a incorrecção fundamental das pulsões em geral e das futebolísticas em particular

Confesso que há toda uma zona dos sucessivos textos aqui postados sobre o futebol que me deixa francamente perplexo. Não tenho a certeza de ter compreendido bem tudo o que o Zé Neves e o Ricardo Noronha escreveram sobre o problema, e peço desculpa à partida se os interpretei mal. No entanto, fiquei com a impressão de que estes meus dois brilhantes camaradas se deixaram tomar por uma certa obsessão de provar que o futebol - e talvez o desporto, talvez o jogo em geral - nada, em princípio, no seu conceito, ou por essência, têm a ver com a competição, sendo o elemento agonístico ou competitivo que o comum dos mortais vê e investe no jogo, tanto dentro do rectângulo como fora dele, um simples efeito histórico de uma sociedade dominada pela lógica hierárquica e classista dos aparelhos de Estado e/ou da direcção capitalista da economia e da produção.
Ora bem, se esta minha impressão é fundada, terei por uma vez de discordar dos meus dois amigos e companheiros, considerando que, apesar das respostas hábeis que opuseram às objecções do João Pedro Cachopo e do Miguel Cardina, bem como às dos jogadores de outras equipas intervindo nas caixas de comentários do Vias, como o Bruno Peixe e o Ricardo Alves, compartilham com um pressuposto fundamental e, a meu ver, fundamentalmente inaceitável, que encontrou a sua expressão mais pura - tão pura que raia o caricatural - nos comentários do Bruno Peixe Dias.  Esse pressuposto, a que chamei o da angelização ou concepção angélica da democracia, da autonomia ou do exercício do poder político por cidadãos livres e iguais que se dêem, sabendo que o fazem, as leis do seu (auto)governo, consiste em conceber que a transformação instituinte e radical das relações de poder dominantes tem como condição necessária a supressão do elemento competitivo e agonístico das relações entre os seres humanos e da relação de cada um destes consigo próprio.
Resumindo muito, e retomando o que respondi ontem ao Bruno, e não estando disposto a desistir da acção em vista de uma sociedade de iguais em nome da transfiguração angélica da espécie, eu diria que a democracia avançará na medida em que for capaz de substituir por relações e formas de poder igualitárias a hierarquia e a competição que hoje dominam nas formas e relações de poder - e organizam a sociedade política - entre os seres humanos, mas sem que isso implique, antes pelo contrário, a supressão de uma faculdade de juízo que hierarquiza os motivos e escolhas de cada um e de todos ou abolição do combate ou competição entre propostas rivais ou juízos alternativos.
Por outro lado, a paideia democrática visa não a supressão dos apetites, ou das representações carnalmente enraizadas do desejo "para além do bem e do mal" e, de certo modo, "anterior" à socialização, mas uma relação diferente de cada um de nós com eles e uma expressão deles que não passe pela subordinação e instrumentalização dos outros. Por isso, prefere, apesar de démodée, a sublimação (a não confundir com "desencarnação", e que tem muito que se lhe diga) à engenharia genética ou química que corrija a incorrecção fundamental das pulsões. Na realidade, pretender (como faz o Bruno quando escreve: "É por isso que as propostas rivais e juízos alternativos não se equivalem, na medida em que alguns deles visam a perpetuação dessas hierarquias e dessa competição, ou seja, visam a perpetuação dessa dominação. Não concebo uma luta política que não seja orientada para a destruição destas propostas, mais, que não lute por uma humanidade, onde elas sejam impensáveis") que a instituição da justiça política, ou da autonomia e auto-governo dos iguais exige a impossibilidade de conceber a competição, a agressividade, a dominação, a desigualdade e a opressão equivale muito exactamente a negar a própria ideia de autonomia (de liberdade, deliberação e decisão responsável, posição e criação de fins ou bens comuns ou individuais) e a alimentar a superação angélico-escatológica da própria acção política.

Finalmente, a crítica à competição tem que se lhe diga. O Zé Neves pressente-o, mas não resolve o problema - como o Bruno lhe objecta - quando opõe à "competição" aquilo a que chama o "desafio".  O que é necessário aqui é distinguir entre diferentes níveis ou registos da competição ou do desafio, distinguir a conjugação democrática da competição e do conflito da sua conjugação em termos de hierarquia classista. Dizer que, se admitimos a competição desportiva, estamos a um passo de instaurar a livre-concorrência da economia política do capitalismo, isso, em meu entender, é um rematado disparate ou sofisma. O vencedor de uns jogos florais ou de uma partida de xadrez começa a escrever o próximo poema ou a jogar a próxima partida em condições de igualdade com todos os outros cidadãos. Não há necessidade que o reconhecimento de que é e deve ser objecto numa sociedade que entenda ser bom promover a poesia ou o xadrez se faça através da concessão de meios de poder sobre os outros ou de outros recursos que ponham em causa a igualdade de condições. Resumindo e concluindo, embora não seja necessário reduzir o futebol, o xadrez ou os jogos florais à competição agonística (que mais não seja porque estamos coisas que, apesar desse elemento comum, têm diferenças essenciais), não posso deixar de subscrever o que os camaradas João Tunes e Luis Rainha objectaram ao recalcamento desse elemento ou ingrediente que, embora em termos mais matizados do que os do Bruno, opera nos posts do Zé e do Ricardo.
Mais ainda, e para o dizer sumariamente, não vejo sequer, pelo meu lado, como possamos conceber o exercício de um poder político democrático porque igualmente participado por todos, enquanto regime da autonomia, excluindo dele toda a competição entre propostas e projectos rivais (seja de leis propriamente ditas, seja de acções colectivas a empreender a partir do que se represente como sendo o desenvolvimento das condições de uma "vida boa" na cidade).  O que a democracia exclui ou combate é a competição ou o tipo de desafio cujo resultado seja a desigualdade de poder em matéria de decisão vinculativa de todos ou a restrição da liberdade colectiva e da autonomia de cada um através da subordinação ao poder de uma parte sobre as outras.
A democracia não elimina o desafio, o elemento agonístico ou a competição: simplesmente, joga outro jogo com o "apetite" ou acervo pulsional competitivo ou agonístico. Mas há toda a diferença entre jogo e jogo. A democracia não acaba com o jogo: é um jogo cujas regras são decididas entre iguais por jogadores que sabem que o fazem e que não confundem essas regras com leis naturais ou divinas. Por isso, essas regras não são indiscutíveis, mas podem ser objecto de debate, deliberação, propostas e contra-propostas, argumento e contra-argumento. Fazem continuar a história e o jogo: não lhe põem fim. A fantasia de acabar com o jogo furtando a regra à vontade e à deliberação dos jogadores e à indeterminação fundamental de onde emergiu a sua criação é sempre uma expressão daquilo a que Jacques Rancière, detectando-o também no purismo ascético e moralista daqueles que vemos que se consideram detentores da verdade revolucionária ou da crítica definitiva, chama o ódio à democracia.

3 comentários:

brunopeixe disse...

Miguel,

O teu post exige resposta pensada, que darei a seu tempo. Por agora queria apenas assinalar que me atribuis uma « concepção angélica da democracia, da autonomia ou do exercício do poder político por cidadãos livres e iguais que se dêem, sabendo que o fazem, as leis do seu (auto)governo », e isso não está exacto. Que digas que tenho uma concepção angélica ainda vá, mas há que precisar que não são os anjos ministros de deus, mas os anjos que são os primos superiores do homem. Mas penso que nunca usei expressões como « democracia », « autonomia » e, acima de tudo « cidadãos » ou « cidadania » como expressões de algo desejável. São categorias que não entram no meu léxico político, a não ser para as tentar desmontar.

um abraço,
bruno

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Bruno,
podes falar de "socialismo" , se quiseres, em vez de "democracia" - contanto que admitas que socialismo implique fim da exploração, igualdade em termos de poder efectivo, liberdade e responsabilidade anti-hierárquicas.
Em Marx, pelo menos, o socialismo implica a democracia e a sua realização: daí, que antes dos dois termos terem adquirido pelo uso significações distintas, os comunistas "marxistas" fossem social-democratas.
Agora, há outra ideia - essa tua e que te distingue das posições do Zé, do Ricardo, etc. - que ontem deixei passar, mas que merece consideração. Refiro-me à tua ideia de que o capitalismo passa sobretudo pelo desejo e pelos corpos. Parece-me uma formulação muito duvidosa e pouco distintiva: claro que o capitalismo passa pelo desejo e pelos corpos, mas não mais nem menos do que o feudalismo ou o modo de produção asiático (despotismo oriental). O que o distingue é um regime de relações entre os seres humanos, realções sociais de produção e de poder específicas. A sua instituição implica assim, sem dúvida, uma conjugação diferente dos corpos e das pulsões, mas não corpos ou pulsões superiores, não um equipamento pulsional diferente mas uma sua diferente articulação. Esquemática mas efectivamente, o socialismo implica a instituição de relações de poder, direitos e deveres diferentes, igualitários, entre os seres humanos em sociedade ("não mais devrees sem direitos/ não mais direitos sem deveres" - suponho que conheças a música), não corpos nem desejos ("apetites" ou "pulsões" ou "apetições pulsionais") diferentes. O resto é misticismo ou engenharia e manipulação.

Um abraço

msp

Francisco Maria disse...

Isto devia figurar numa antologia de textos inutilmente complicados e por isso quase ilegíveis! Vc que é francófono: «Ce qui se conçoit bien s'enonce clairement».