07/12/10

Direcção política, objectivos "comunistas" e democracia

Deixando de lado os aspectos mais personalizados da discussão que aqui tem vindo a opor o Zé Neves e o Vítor Dias, talvez valha a pena tentar ver mais claro a questão de fundo que foi sua origem e que corre o risco de ter sido um pouco esquecida durante a polémica.
Essa questão de fundo dizia respeito, se não me engano, ao tipo de direcção que convirá a um movimento que, tanto um como outro dos dois interlocutores, vise objectivos "comunistas".
Aqui levanta-se nova dificuldade - ou nova questão. E da resposta que lhe dermos, creio, dependerá também o modo como responderemos à questão da direcção.
Que devemos, com efeito, entender por objectivos "comunistas"?
Pondo de lado a imagem mítica ou, pelo menos, meta-histórica de uma sociedade em que tudo pode ser apropriado por todos e por cada um à medida dos seus desejos sem necessidade de regulação produtiva nem distributiva, os "objectivos comunistas" em causa só poderão significar uma democratização radical das instituições e das relações de poder hierárquicas, e a construção - através de reformas e/ou rupturas, segundo as condições e os momentos - de um regime igualitário de gestão das forças produtivas, de regulação do mercado e de direcção geral da sociedade em que os trabalhadores e o conjunto dos cidadãos assumam plenos poderes governantes através da sua participação em todas as decisões colectivas que os vinculem.
Sendo assim, não se trata de instituir uma forma social e política sem direcção nem governo, sem órgãos de poder e sem decisões vinculativas, mas uma forma de democracia efectiva em que seja de todos o poder de mudar e decidir, como o de conservar e manter. E tanto bastará para vermos que só através de um movimento que antecipe nas suas formas de organização esta direcção democrática comum ("comunista", diriam o Zé Neves e o Vítor Dias) poderemos verosimilmente prosseguir e acreditar os seus propósitos gerais e cada uma das suas acções particulares.
Bem entendido, o que fica dito não significa que os partidos e outras formas possíveis de associação dos cidadãos, ou cada cidadão por seu turno, devam ser despojados do seu direito e/ou responsabilidades de iniciativa e proposta - muito pelo contrário. Significa apenas - mas fundamentalmente - que nenhum partido, associação ou organização à parte poderá representar o conjunto dos cidadãos e pretender-se como instância governante em alternativa aos órgãos e instituições de um poder governante exercido pelos cidadãos nessa qualidade e só através do exercício deles, nessa qualidade, legitimamente governante. Por fim, tal como decorre do que resumi acima, só uma acção nos moldes de um autogoverno assim entendido, implicando que a direcção (não forçosamente a iniciativa e a proposta) seja de todos os interessados, poderá dar verosimilhança a qualquer coisa como a transformação democrática radical aqui proposta como reformulação política do que vale a pena salvaguardar e reiterar nos objectivos "comunistas".

Adenda: segue-se que, se entendermos por "comunismo" ou "democracia" - como, apesar dos equívocos a que este termo, à semelhança do primeiro, dá lugar, prefiro dizer - um regime assente no poder de assembleias ou conselhos igualitariamente exercido e dos seus delegados, que assegurem as funções de direcção e regulação da esfera económica e das actividades colectivas, instituindo a plena cidadania governante de uma população, então, qualquer poder ou forma de organização política que assente na repressão, legal ou violenta, da formação, desenvolvimento, extensão e exercício generalizado desse tipo de autogoverno, não será uma aproximação imperfeita do comunismo ou da democracia, mas a sua negação e um obstáculo a derrubar pela acção democrática instituinte do conjunto dos cidadãos.

8 comentários:

Anónimo disse...

Só para pôr as coisas nos seus exactos termos, esclareço:

- que,no meu «post» no «tempo das cerejas» que deu origem ao post do José Neves não abordei nem de perto nem de longe a «questão de fundo» que MSP agora entende identificar;

- que,em decorrência disso, nos meus comentários posteriores também não entrei nessa discussão;

- e que quem decidiu enveredar por essas matérias foi José Neves.

Miguel Serras Pereira disse...

De acordo, Vítor Dias. Reconheço que não foi você a levantar a "questão de fundo". Mas ela existe e não me parece que o Zé Neves a tenha levantado a despropósito. Pelo contrário, considero-a um modo pertinente e útil de enquadrar a discussão dos factos a que você se refere.
De resto, se não a levantou, o Vítor Dias acabou por se lhe referir durante a polémica - apontando, por exemplo, e, a meu ver, justificadamente, a necessidade de direcção e organização de movimentos ou experiências como a Comuna de Paris. Digamos que a encontrou - à questão - posta em cima da mesa pelo Zé Neves, mas não a desdenhou. Eu não fiz mais do que seguir o seu exemplo e pegar-lhe, pois me parece que é um tema de debate que urge travar e que só poderá contribuir para o reforço e recomposição de um campo democrático capaz de marcar a agenda dos nossos trabalhos e dias.

Saudações democráticas

msp

Niet disse...

Alguns lances essenciais de um texto de Castoriadis, que ele referiu ser dos que mais afinidades tem com a teoria de Pannkoek sobre os Conselhos Operários. " A democracia não é o voto sobre questões secundárias, nem a designação de pessoas que decidirão sós, fora de todo o controlo efectivo, as questões essenciais. A dominação real, é o poder de decidir por si mesmo as questões essenciais e de decidir em conhecimento de causa. Nestas quatro palavras: com conhecimento de causa, se radica todo o problema da democracia. (...)Decidir significa decidir por si-próprio. Decidir sobre quem deve decidir já não tem muito a ver com decidir. Finalmente, a única forma de democracia é a directa.(...) A realização mais extensa da democracia directa significa que toda a organização económica, política, etc, da sociedade deverá articular-se com as células de base que representem colectividades concretas, que constituam unidades sociais orgânicas ". A que se juntam opções decisivas sobre a gestão da racionalidade tecnológica e económica. Niet

Zé Neves disse...

olá miguel, de acordo com quase tudo. poderíamos discutir a diferença entre delegação, representação, direcção, e por aí fora, mas no essencial, creio, estaremos de acordo.

Em relação ao Vítor Dias, dizer o seguinte: o post do Vítor Dias, e toda a sua postura nestes debates, é a de quem se coloca na posição de defender a actual direcção do movimento (as manifs contra a nato, a direcção da greve geral, etc.). E utiliza contra quem entende criticar tais desenvolvimentos os mesmos argumentos que o PS e o PSD utilizam contra BE e PCP. "Vão mas é trabalhar", "só criticam e não fazem", "a cassete", etc. Perante isto, o que eu quero é chamar a atenção para o seguinte: argumentos do âmbito das discussões em torno do melhor ou pior chefe de Estado (discussões entre PS e PSD e restantes partidos) implicam uma concepção de governamentalidade que a meu ver não se deve aplicar à discussão que o Vítor Dias pretende encetar com os que considera "esquerdistas" (porque não está em causa, para estes, simplesmente a eficácia de esta ou aquela política, mas o próprio modo de fazer política, coisa que o Vítor Dias considera meramente instrumental quando diz que toda a crítica da direcção é uma defesa de uma direcção alternativa); em segundo lugar, o Vítor Dias defende uma direcção que não existe no modo unitário que ele pensa mas que ele imagina e faz imaginar ao defendê-la como se fosse um bloco. O Vítor Dias acha que quando se critica a estratégia da CGTP, o serviço de ordem da manif, as candidaturas presidenciais à esquerda, está-se a criticar a "direcção comunista"; mas não é verdade que essa direcção comunista todo poderosa exista. E se existir na prática, então tem que ser denunciada porque não foi eleita por ninguém dos dirigidos.

abç

Anónimo disse...

Continuamos na mesma, que tristeza.

Afirma José Neves: «O Vítor Dias acha que quando se critica a estratégia da CGTP, o serviço de ordem da manif, as candidaturas presidenciais à esquerda, está-se a criticar a "direcção comunista"; mas não é verdade que essa direcção comunista todo poderosa exista.»

E pergunta o Vítor Dias: «onde é que eu escrevi ou afirmei isso ou onde é que eu disse que «essa direcção comunista todo poderosa exista» ?

E o Vítor Dias responde a si próprio : «EM LADO NENHUM !»

E onde é que o José Neves descobriu isso ? ELE QUE EXPLIQUE E DEMONSTRE.

Adquim disse...

Não compreendo como é possivel pá? então nao foi esse Vitor Dias que apresentou o livro do Jose Neves pá? Xatearam-se as comadres pá? porquê pá? para quê pá?

Zé Neves disse...

Vítor Dias, trata-se da lógica que eu descortino no seu posicionamento. Trata-se de uma análise do que me parece ser o seu posicionamento político.

editado por vasco morais disse...
Este comentário foi removido pelo autor.