Caro Pedro,
muito bom, o teu post. O que se segue — e que começou por ser um comentário de rodapé que cresceu demais, razão pelo qual o deixo aqui sob esta forma — não são forçosamente objecções; diria antes que gostaria de proceder a uma tentativa de articular pontos de vista a partir de uma perspectiva mais ampla, com os quais concordarás ou não, sobre a encruzilhada que assinalas.
1. No interior do BE, provavelmente, e, com toda a certeza, na área mais vasta a que se dirige e que o potencia, há, além da divisão que assinalas uma outra, mais fundamental. Os que, se não o pensam até ao fim, agem pelo menos como se o problema fosse termos um melhor governo e os que apostam — implicando isso, como indico adiante uma extensão urgente da acção à escala da UE, etc.. — numa orientação, a assumir desde já, ainda que a sua plena concretização possa parecer remota, a exigência de outra forma de governo, de poder político, de funcionamento económico, que ponha na ordem do dia uma mudança de regime, a ruptura ou "reforma revolucionária" (chamem-lhe como quiserem, contanto que a terminologia não sirva só para aumentar a confusão) de uma democratzação consequente, insituinte de novas relações de poder.
A opção pela segunda alternativa implica desde já, não o abandono completo e sumário do chamado "plano institucional", mas a adopção e extensão de formas organizativas democráticas radicais que efectivamente revolucionem o regime das lutas ou do fazer política dominante. Do mesmo modo, exigiria, no que se refere ao BE ou outros movimentos que surjam na mesma área, uma redefinição profunda das prioridades e temas da agenda política.
Dito isto, não se trata de uma perspectiva maximalista, no sentido de equacionar a cada momento todas as questões em termos de "tudo ou nada". E endereça-se não apenas aos que prevêem que os fins propostos tenderão a implicar uma mudança global brusca e discreta, mas aos que, achando pouco verosímil que a mobilização maioritária dos cidadãos inseparável dos objectivos propostos (o autogoverno político, uma economia política democrática, a participação governante igualitária, etc.) possa ser instantânea, nem por isso desistam de organizar de acordo com eles a sua acção e propostas imediatas.
2. Esta alternativa não coincide exactamente com a que se traça no teu post entre os que entendem, no que se refere à cena política instituída, que afastar a presente liderança do bloco central é clarificador e cria melhores condições de luta, e os que entendem que a substituição deste governo por um governo do PSD ou do PSD-CDS, ou do PSD-PS, seria uma derrota da "esquerda".
Com efeito, não se segue automaticamente da primeira opção a assunção da perspectiva da orientação do combate político e social para a mudança de regime e da forma de governo. Longe disso. A verdade é que entre os partidários da moção de censura encontramos gente com pesadas responsabilidades na profissionalização e reprodução da divisão do trabalho político que a alternativa que tracei começa por pôr em causa, e é possível que alguns daqueles que privilegiam a democratização efectiva das relações de poder existentes e de um regime alternativo das lutas vejam com maus olhos a apresentação da moção de censura.
3. Pessoalmente, creio que, não devendo sobrestimar-se excessivamente a questão, a luta pela democratização e a democratização da luta e da acção política quotidianas terão, apesar de tudo, melhores condições na situação clarificada que resultaria do derrubamento do actual governo. Depois da queda deste (ou sendo esta adiada), espera-nos, em meu entender, um período relativamente prolongado durante o qual a transformação do regime, a instauração de formas alternativas de poder político central, não será imediatamente possível. O que não quer dizer que a influência política do que as defendem tenha de ser menor ainda do que é hoje, ou não possa crescer e produzir efeitos profundos e sensíveis, fazendo recuar a ofensiva oligárquica, num quadro em que o governo seja assumido mais declaradamente pelo chamado bloco central.
Ou seja, como já disse num comentário (que passo a transcrever com algumas modificações de redacção) a um post do Zé Neves sobre este tema, é verosímil que a recomposição político-partidária explícita do bloco central permita clarificação e desenvolvimentos significativos:
"(…) é possível que a área do PS e o próprio partido conheça algumas convulsões, recomposições, rupturas, libertando energias que terão repercussões na área do BE e imediações. Por outro lado, a oposição ao novo governo sairá reforçada e isso criará condições para que o combate deixe de ser fundamentalmente por outro governo, para reivindicar mudanças de regime - sendo que aqui se terá de jogar a cartada europeia: formular com outras formações e forças da UE uma carta de reivindicações e princípios 'constitucionais', repolitizando explicitamente a economia política vigente contra o neoliberalismo e a oligarquia financeira e promovendo a participação democrática dos cidadãos, etc, etc.
"É também razoável apostar que, sem governos com cosméticas de 'esquerda', o campo da cidadania democrática possa sair reforçado e exercer uma influência muito maior do que até ao momento no curso das coisas. A oligarquia conservará no imediato o governo, mas poderá ser abalada e forçada a recuar.
"Claro que nada disto é automático ou geometricamente demonstrável. Só pretendo mostrar que a queda de Sócrates não será necessariamente uma catástrofe maior ou causadora de mais estragos do que a sua eternização e do que a aquiescência ao seu argumento de que não pode ser de outro modo".Tudo dependerá das orientações da acção democratizadora e da capacidade de proposta e de extensão dos terrenos de luta para além das fronteiras e das formas de organização habituais".
Mas, com isto, voltamos ao princípio e à ordem de prioridades que me parece dever ser a base de qualquer plataforma política alternativa.
14/02/11
Ainda sobre a anunciada moção de censura do BE (ver os posts do Zé Neves e do Pedro Viana)
por
Miguel Serras Pereira
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12 comentários:
Caro Miguel,
Concordo com tudo o que dizes. Logo no início do meu post indico que a fractura no BE sobre a qual vou comentar existe "dentro da tendência maioritária no seio do BE." Eu sei, e é algo que parece-me até mais do domínio público (e que o Renato Teixeira gosta de salientar sempre que pode), que existem tendências minoritárias no BE, que se distinguem da tendência maioritária por recusarem qualquer aproximação ao PS e não valorizarem tanto a política parlamentar, queixando-se frequentemente de serem ignorados. Haverá seguramente entre eles quem defenda ideias semelhantes às nossas, mas se existem não os tenho ouvido tanto quanto gostaria. Parece-me que mesmo no seio do BE é omnipresente a crença na necessidade da vanguarda revolucionária, e a desconfiança perante a possibilidade do povo decidir por si.
Não possuo nenhuma informação interna sobre o funcionamento do BE. O que julgo saber resulta do que vem a público. E com base nesta informação parece-me cada vez mais claro que a tendência maioritária do BE, onde se enquadram os membros da actual direcção, se deixou seduzir pelo jogo parlamentar. Deixando cair a ideia inicial de constituição duma organização, o BE, que não se limitaria a ser um partido, para poder actuar ao nível do parlamento, mas seria também (ou mesmo essencialmente) um movimento poilítico-social abrangente. Parece-me que a direcção e grupo parlamentar do BE estão inebriados pela proximidade do Poder, incapazes de negar a legitimidade deste porque tal equivaleria a auto-excluirem-se dum sistema que lhes dá importância enquanto pretensos representantes do povo.
Um abraço,
Pedro
Verdade e justificação:"a crença na necessidade da vanguarda revolucionária e a desconfiança perante a possibilidade do povo decidir por si"- a acoplativa tem dificuldade em garantir a pretensão de validade.
Miguel, o teu olhar para dentro do Bloco mostra-te coisas que não consigo descortinar. Há algum tipo de evidência pública de que exista tal coisa como uma sensiblidade política no seu interior que aponte para além do actual estado de coisas político-institucional? Alguma reflexão sobre outro modo de fazer política que não seja meramente retórica?
Em caso afirmativo, gostaria que as apontasses. Tudo o que vejo é outra coisa: os que dirigem a exibir a sua capitulação (para usar a expressão da Andreia Peniche) ao status quo e os que se fartaram disso a ir para casa ver televisão.
Cá estou eu, lendário camarada Ricardo, tentando honrar a tua interpelação.
Sou, evidentemente, contrário à orientação presente do BE e também não creio que se possa corrigi-la, a não ser para pior, segundo o modelo do partido de vanguarda, portador da consciência superior (ou "histórica", que, na acepção lenino-trotsquista, quer dizer "superior" à "classe empírica") dos que pastoreia como gado ou tutela como menores.
Dito isto, partilho da opinião do Pedro Viana: "haverá seguramente entre eles [militantes e/ou gente que vota no BE, participa nalgumas iniciativas, etc.] quem defenda ideias semelhantes às nossas" - o que significa aqui participação igualitária e directa nas decisões, autogoverno, democratização do funcionamento e organização da esfera económica, e o mais que sabes.
Além de ser a opinião do Pedro, acresce que conheço gente que milita no BE com quem me identifico politicamente no essencial. Outros, no juízo que faço, preenchem os critérios que tentei definir no meu post (atrás citado) sobre a democratização como "plataforma necessária e suficiente" - de acordo com o que vinha a defender de há já longa data em tudo o que escrevi na blogosfera ou continuo a escrever.
Na mesma ordem de ideias, diria ainda o seguinte: “(…) a questão “reforma ou revolução” adquiriu com o tempo fatais ressonâncias teológicas e míticas, que confundem mais o problema do que podem ajudar a abrir caminho. Tenho visto muitas definições da revolução que 'nem para atacadores', e a redefinição das formas institucionais e do exercício do poder que podemos incluir na ideia de 'reforma' pode implicar o tipo de ruptura – depende das reformas propostas – que associamos ao 'nome de revolução'. Digamos que não é por aí – pela oposição dicotómica – que o gato vai às filhoses ou, melhor, tiraremos nós as castanhas do lume” (copio isto de um post do nosso João Tunes que retomava o texto de uma mensagem do nosso [do Vias] correio interno: http://viasfacto.blogspot.com/2010/11/como-se-ganha-um-dia.html).
Quer isto dizer, para tentar responder-te o melhor que posso, que reconheço que há quem milite ou acompanhe selectivamente algumas iniciativas do BE -se situe, em suma, na área a que o BE se endereça e que é aquela que o potencia - movido pelas mesmas razões que me levam a defender as posições que defendo e tu conheces bem. Posições que passam, quanto ao BE, pela denúncia intransigente da cada vez mais sensível profissionalização a que me referi, bem como da reprodução da divisão do trabalho político característica da oligarquia e da economia política do capitalismo, para já não falar nas ambiguidades de princípio e programáticas.
Bom, espero que isto ajude e seja pelo menos um começo de resposta.
Abrç
miguel(sp)
Bom mas, desses, tudo o que ouvimos, é um comprometido silêncio. Quem é que formula publicamente a "exigência de outra forma de governo, de poder político, de funcionamento económico, que ponha na ordem do dia uma mudança de regime"? Tens algum texto que o comprove?
E dito assim a coisa também se aplica (muito mais, aliás) ao PCP.
Sim, Ricardo. Mas há uma diferença importante. As concepções organizativas e doutrinárias do PCP são muito mais definidas e consistentes. A sua identidade é muito mais enraizada, as condições de adesão e a disciplina interna menos equívocas. O modelo de sociedade (implícito) e o papel reservado ao Partido (explícito) muito mais categóricos. O que torna -tudo isto - o PCP um partido de natureza diferente e mais couraçado contra um eventual processo de transformação interna - como, de resto, a história recente, e a outra, documentam.
O que não quer dizer que não exista nas fileiras do PCP e na sua área de influência uma tensão entre os fins (democracia realizada, sociedade sem classes, extinção do Estado, etc.) e as vias propostas para a sua realização (partido de vanguarda, representação governante da classe por um Partido-Estado acima das flutuações da opinião dos governados, etc., etc. - juntamente com um messianismo e uma sacralização da teoria pradicalmente antidemocráticos). E é essa tensão que não deve fazer-nos esquecer o que Castoriadis formula concisamente numa passagem que já citei não sei quantas vezes neste tipo de discussão:
" [o PC] está condenado a dizer uma coisa e a fazer o contrário: fala de democracia e instaura a tirania, proclama a igualdade e realiza a desigualdade, invoca a ciência e a verdade e pratica a mentira e o absurdo. É por isso que perde muito rapidamente a sua influência sobre as populações que domina. Mas é também por isso que aqueles que aderem ao comunismo, pelo menos antes da sua chegada ao poder (…) [e]stão possuídos por uma 'ilusão revolucionária', acreditam de um modo geral que o Partido Comunista visa realmente instaurar uma sociedade democrática e igualitária. É por isso que um comunista que descobre a monstruosidade do 'comunismo realizado' pode soçobrar psiquicamente, ou tornar-se social-democrata, oiu manter um projecto de transformação social radical desembaraçado do messianismo marxista-bolchevique" (C. Castoriadis, Uma Sociedade à Deriva, Lisboa, 90º, 2006, p. 300).
MS.Pereira e todos em geral: Há um texto do Marcuse- Para a Libertação- que tem dados e reflexões muito importantes, que giram em torno do factor subjectivo; e que coincidem com sequências das tuas propostas. Daniel Bensaid também nos legou " revisões " teóricas interessantes sobre a alternativa organização/espontaneidade, que Mattick dizia que não era importante em tempos de refluxo. Ora, a crise incendiou a luta de classess...O que, do meu ponto de vista, me parece mais importante- e nisto conjugando ensinamentos de Castoriadis e Mattick, por exemplo- é tentar consciencializar as pessoas em luta que urge destruir o circulo vicioso da dominação- desigualdade, injustiça e hierarquias. Já ouviste falar de Giacomo Manamao e da sua teoria do Colapso? Niet
Tal como o Miguel, também acho que o BE é o único partido no actual sistema político onde seria possível encontrar apoio siginificativo para uma política de democratização radical dos actuais sistemas político e sócio-económico. No entanto, tal como o Ricardo, acho que essa possibilidade é ainda potencial. Há no BE pessoas, como o João Rodrigues (Arrastão e Ladrões de Bicicletas), que colocam o princípio democrático no centro do seu discurso, por exemplo defendendo que os serviços públicos não devem continuar a ser geridos por burocracias estatais, mas sim co-geridos pelos trabalhadores (pagos pelo Estado) e os utentes desses serviços, ou defendendo a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. Não é nada de muito radical, mas aponta no sentido certo. No entanto, nunca li nenhuma proposta vinda do João Rodrigues, ou de outras pessoas afectas ao BE (ou a qualquer outro partido), de transformação do sistema político, democratizando-o através do requerimento de participação popular na tomada de decisões legislativas, executivas e judiciais.
Abraços,
Pedro
Sim, Pedro - estou de acordo contigo no diagnóstico geral. Conheço, no entanto, alguns militantes do BE - e muitos eventuais votantes no BE e/ou participantes em iniciativas marcadas pelo BE - com posições mais próximas das tuas, por exemplo, do que das posições oficiais do BE.
Quanto ao potencial democrático revolucionário do BE, que não da sua área, a sua emergência exigiria sem dúvida uma redefinição profunda da organização, uma clarificação das concepções e uma plataforma inequívoca - em suma, uma democratização revolucionária do próprio BE e a sua transformação noutra coisa. Nisso, o Ricardo tem perfeitamente razão.
Abrçs para ambos
miguel(sp)
Sempre defendi- até por evocação castoridiana...- que só o lastro trotskista do BE tem importância táctica para a reformulação das estratégias politicas alternativas em Portugal.O que é preciso é que esses militantes se organizem internamente ou formem novas organizações. Niet
O capitalismo está condenado, diz uma coisa e faz o contrário: fala de democracia e instaura a tirania, proclama a igualdade e realiza a desigualdade, invoca a ciência e a verdade e pratica a mentira e o absurdo.
Um democrata sincero que descobre a monstruosidade do 'capitalismo realizado' pode soçobrar,ou manter um projecto de transformação social radical.
Perfeitamente de acordo, AGD. Excepto num ponto: não há na adesão à ordem estabelecida a vontade de transformação radical que anima a "ilusão revolucionária".
Por outro lado, convém ter presente que, na perspectiva de Castoriadis, o "comunismo realizado" ou o que foi "o socialismo realmente existente", é um tipo de capitalismo, perpetuando e, sob certos aspectos, reforçando a separação entre os produtores e os meios de produção do capitalismo clássico, concentrando nas mãos de uma classe a disposição efectiva da produção e dos bens, nos antípodas da apropriação colectiva (socialista) pelos produtores associados, etc., etc.
Seja como for, o que está em causa não é a monstruosidade do capitalismo nem a insatisfação ou revolta que ela engendra - é darmo-nos os meios, abrirmos as vias da sua transformação.
Onde o capitalismo governa e organiza não há democracia (pensemos no protótipo da empresa capitalista); onde há elementos ou embriões de democracia, estes correspondem a limitações impostas ao capitalismo por combates seculares (graças aos quais não vivemos ainda numa sociedade de escravos industriais). Saltando alguns passos intermédios, é por isso que falo acima da democratização (das relações de poder dominantes e do regime da acção e da organização políticas que visam combatê-las ou "regime das lutas") como plataforma necessária e suficiente.
Dito isto, o seu comentário tem, sem dúvida, o grande mérito de explicitar que a denúncia do "comunismo realizado" aqui em causa, não só não justifica o capitalismo, como pressupõe a denúncia intransigente e clara da sua "monstruosidade".
msp
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