Fiquei espantado ao ouvir dizer que o PCP votaria favoravelmente uma moção de censura ao governo, apresentada pelo PSD. A notícia foi passando e crescendo como uma bola de neve, sem que jornalista ou comentador algum parasse um segundo para pensar se existiria algum precedente para semelhante coisa: um governo do PS derrubado pelo voto favorável do PCP a uma moção apresentada pela direita. Até o Tiago Saraiva pareceu acreditar nisso, ou pelo menos assim o indica a formulação que escreveu no 5 Dias: "o PCP não escolhe entre direitas, quer derrubá-las todas".
Ora a mim pareceu, desde o início, que semelhante opção estratégica teria que ser bastante bem explicadinha para que militantes e eleitores a engolissem, uma vez que o PCP continua a distinguir claramente, no seu discurso público, os partidos de direita (PSD e CDS) do partido que concretiza políticas de direita (PS), o que, parecendo que não, é uma subtil diferença que faz imensa diferença.
Depois percebi que Vítor Dias estava acampado numa caixa de comentários a garantir-nos que Barata Moura tem uma "vasta obra reflexiva e teórica", o que, sendo extremamente louvável, não deixava de comprometer a sua firme vigilância face ao anti-comunismo jornalístico. Mas eis senão quando me desloco ao tempo das cerejas e constato que o mundo está de novo nos seus eixos. Tudo indica que o PCP não aprovará a moção apresentada pelo PSD e provavelmente acabará por apresentar a sua própria moção de censura, que o PSD por sua vez poderá aproveitar para derrubar o governo.
Dá-se o caso disso ser inteiramente diferente do que o Público nos diz. Quando Bernardino Soares afirma que o PCP irá apresentar a sua própria moção de censura não está, como nos garantem Leonete Botelho e Sofia Rodrigues, a "ir mais longe" relativamente ao "apoio do PCP a uma moção de censura apresentada pela direita", mas a sustentar precisamente o contrário.
E depois, a partir de um cenário inteiramente gerado pela sua própria falta de rigor, estas jornalistas lançam-se num ambicioso exame da situação política nacional (suportado por São José Almeida e Nuno Simas) que marcará o debate da semana, implicará várias afirmações e desmentidos (Francisco Assis já vem falar da "muleta da direita"), numa interminável sucessão de fait divers que terá o mérito de nada esclarecer.
O "desinteresse dos portugueses pela política" e outras fórmulas piedosas acerca da crise da representação não me dizem grande coisa, mas esta permanente distorção da realidade, que resulta de uma combinação imprevisível entre desatenção, superficialidade e má-fé, deixa-me mal disposto. Quando um partido apresenta uma moção de censura, ela tem um conteúdo, um exame das coisas, argumentos e motivações. Os do PCP serão certamente diferentes dos do PSD e isso colocará a questão de quem aprova que argumentos.
É a existência dessa dimensão propriamente política do debate e actividade parlamentar que uma notícia como estas vem anular, concentrando-se apenas na lógica aritmética das maiorias parlamentares e focando-se no "resultado". É nessa redução da política aos "resultados" que o jornalismo português (mas certamente que não apenas esse) se vem tornando um elemento central da contracção do espaço público em favor do exercício da governação. Como se a única questão relevante tivesse passado a ser "quem manda?" e tudo o resto se tivesse visto reduzido a uma soma de artifícios e palavras esvaziadas de sentido.
Daí à ideia de que os mais competentes devem governar, os mais sábios devem avaliar e todos os outros devem aceitar, vai uma distância que se arrisca a ser mais curta do que poderíamos supor. Tudo o que reduz a complexidade da política ao pragmatismo do poder e subtrai inteligibilidade às posições concretas em disputa concorre para a banalização de uma solução autoritária. Esta notícia, e tudo aquilo que lhe está subjacente, demonstra que não é assim tão difícil imaginar uma suspensão da democracia.
Dá-se o caso disso ser inteiramente diferente do que o Público nos diz. Quando Bernardino Soares afirma que o PCP irá apresentar a sua própria moção de censura não está, como nos garantem Leonete Botelho e Sofia Rodrigues, a "ir mais longe" relativamente ao "apoio do PCP a uma moção de censura apresentada pela direita", mas a sustentar precisamente o contrário.
E depois, a partir de um cenário inteiramente gerado pela sua própria falta de rigor, estas jornalistas lançam-se num ambicioso exame da situação política nacional (suportado por São José Almeida e Nuno Simas) que marcará o debate da semana, implicará várias afirmações e desmentidos (Francisco Assis já vem falar da "muleta da direita"), numa interminável sucessão de fait divers que terá o mérito de nada esclarecer.
O "desinteresse dos portugueses pela política" e outras fórmulas piedosas acerca da crise da representação não me dizem grande coisa, mas esta permanente distorção da realidade, que resulta de uma combinação imprevisível entre desatenção, superficialidade e má-fé, deixa-me mal disposto. Quando um partido apresenta uma moção de censura, ela tem um conteúdo, um exame das coisas, argumentos e motivações. Os do PCP serão certamente diferentes dos do PSD e isso colocará a questão de quem aprova que argumentos.
É a existência dessa dimensão propriamente política do debate e actividade parlamentar que uma notícia como estas vem anular, concentrando-se apenas na lógica aritmética das maiorias parlamentares e focando-se no "resultado". É nessa redução da política aos "resultados" que o jornalismo português (mas certamente que não apenas esse) se vem tornando um elemento central da contracção do espaço público em favor do exercício da governação. Como se a única questão relevante tivesse passado a ser "quem manda?" e tudo o resto se tivesse visto reduzido a uma soma de artifícios e palavras esvaziadas de sentido.
Daí à ideia de que os mais competentes devem governar, os mais sábios devem avaliar e todos os outros devem aceitar, vai uma distância que se arrisca a ser mais curta do que poderíamos supor. Tudo o que reduz a complexidade da política ao pragmatismo do poder e subtrai inteligibilidade às posições concretas em disputa concorre para a banalização de uma solução autoritária. Esta notícia, e tudo aquilo que lhe está subjacente, demonstra que não é assim tão difícil imaginar uma suspensão da democracia.
9 comentários:
e há palavras abarrotando de sentidos?
a democracia foi suspensa há 36 anos para 3 ou 4 milhões de portugueses
há o Portugal democrático dos previlégios em maior ou menor grau
e há o Portugal dos pobrezinhos que apesar de ser mais subsidiado do que nos tempos da ditadura, aparentemente só perdeu os piolhos, as barracas
e ganhou casas mal construidas que eles próprios ajudam a destruir porque não são coisa sua
desprezam do mesmo modo a vossa democracia porque acham que ela não funciona para eles
logo falar de suspensão de uma coisa que só funciona para alguns
é...de magog i cu ou é só de gog?
Desculpe a pergunta, mas você é um leitor habitual ou chegou cá através de uma pesquisa falhada no google?
"Jerónimo de Sousa lembrou, a propósito, que “em relação a qualquer moção de censura designadamente vindo da direita – que eu duvido - tem que ter conteúdos concretos (…).""
em
http://www.publico.pt/Pol%C3%ADtica/pcp-nao-esta-cativo-de-decisoes-da-direita-diz-jeronimo-de-sousa_1479164
Para bom entendedor, meia palavra basta: o PCP não apoiará nenhuma moção de censura apresentada por PSD ou CDS, mais que não seja porque estes nunca a justificarão utilizando os argumentos que o PCP entende serem aqueles que justificam o derrube do governo.
Belo post!
Fiquei a perceber o problema aritmético, mas escapou-me a conclusão política. Defende-se a direita do PS de não cair e a direita do PSD assim quiser dar uma ajuda? Ou no modo B, recusa-se o voto da direita do PSD, numa moção para derrubar a direita do PS?
Renato Teixeira
bom post mas com este titulo estava à espera de outras conclusões...
Isso Renato, terás que perguntar ao PCP, que considera que o PS é um partido de Esquerda que concretiza uma política de Direita. Ou pelo menos considerava, até há bem pouco tempo. A questão política é a que eu escrevi e que o Pedro Viana desenvolve: tendo uma moção vários considerandos políticos, os do PSD serão certamente diferentes dos do PCP, o que torna difícil a um partido votar favoravelmente a moção do outro. Ou seja, o PCP não se importa nada de derrubar o Governo, mas não abdicará de utilizar a sua intervenção parlamentar para "educar politicamente a classe trabalhadora" (sei que adoras expressões destas e decidi esbanjá-las), esclarecendo as razões que o levam a fazê-lo.
Caro anónimo, exactamente do que é que estavas à espera? Focoutices?
ah pois, claro que estava!
O PCP não considera o PS um partido de esquerda, considera-o um partido democrático (que pratica uma política de direita).
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