16/06/11

Direcção, Organização e Hierarquia

Ao contrário do que dizem a Raquel Varela, em termos bastante precisos, e o Renato Teixeira, em termos que me dispenso de comentar, a questão política fundamental do ponto de vista democrático não é a presença ou a ausência de direcção ou organização, mas a do tipo de organização e direcção que se tem em vista.

Do ponto de vista da R. e do R. - como do ponto de vista da Rubra, mas também de vários militantes de BE e da direcção do PCP -, o que faz falta é aproveitar a ocasião fornecida pela animação da malta, a fim de empreender a tarefa, que urge, como nunca, de criar uma organização de esquerda que dê corpo democrático, eficaz, politicamente sem compromissos, e centralizado a esta forçaem vista de (…) uma solução unificada e unitária (…). A tarefa é essa porque se pressupõe que, à falta da "organização de esquerda", o movimento se limita a ser uma agitação sem fins nem sentido consistentes, não podendo constituir uma alternativa ao regime.

Trata-se de um ponto de vista que a Raquel Varela exprime com clareza e competência, mas que nem por isso é o contrário do modo democrático de pôr a questão. Com efeito, do ponto de vista democrático, as organizações de militantes que fazem falta são as que não confundam direcção e organização com hierarquia e que animem, integrando-se no movimento sem pretenderem mais do que participar em pé de igualdade ao lado de outros, uma alternativa ao poder hierárquico e às suas formas de exercício. Estas formas alternativas proporão ao movimento a participação de todos na deliberação e decisão dos fins e na organização e escolha dos meios, bem como uma organização que seja já um primeiro exercício de auto-governo entre iguais.

É por aqui que passa a diferença entre os que concebem que aquilo que faz falta são bons governantes e os que apostam na extensão do exercício do poder e da condição governante ao conjunto dos cidadãos. Por outras palavras, é por aqui que passa a diferença antagónica que distingue aqueles que só concebem a democracia nos termos que à partida a negam de uma ou outra forma de representação, direcção e organização pelos poucos dos interesses, da consciência e dos fins legítimos dos muitos, e os que levam a sério a democracia não como defesa ou protecção dos muitos, mas seu exercício instituinte e autónomo.

Historicamente, para quem se interesse pelo assunto, diga-se, de passagem, que é ainda por aqui que passa — e não pela necessidade a desnecessidade da acção política organizada de formações políticas — a diferença entre as concepções de Rosa, por um lado, e as de Lenine e Trotsky, por outro. Senão passem-se os olhos por estes excertos de Rosa sobre a Revolução Russa:

"A prática do socialismo exige uma transformação completa no espírito das massas, degradado por séculos de dominação da burguesia (…) Ninguém o sabe melhor, ninguém o descreve melhor, nem o repete com mais obstinação do que Lenine. Mas erra totalmente no emprego dos meios: decretos, poder ditatorial dos inspectores das fábricas, sanções drásticas não são senão paliativos. A única via (…) é a aprendizagem da vida pública, a democracia mais ampla sem a menor limitação da opinião pública. O terror é exactamente o que desmoraliza. (…) se se sufoca a vida política no país (…), sem uma liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem uma luta de opinião livre, a vida estiola em todas as instituições públicas (…) e a burocracia permanece como o único elemento activo (…): algumas dezenas de chefes do partido (…) dirigem e governam; o poder real encontra-se nas mãos de uma dúzia de chefes, superiormente inteligentes - e a classe operária é de vez em quando convidada a (…) aplaudir os discursos dos dirigentes e a votar por unanimidade as resoluções propostas; [temos assim] uma ditadura, certamente que não a ditadura do proletariado, mas sim a ditadura de um punhado de políticos — ou seja, uma ditadura no sentido burguês (…)" .

3 comentários:

Anónimo disse...

Um flash fabuloso de Castoriadis sobre as questões explicitas e incontornáveis de constituição da autonomia política e social das classes em luta, num texto de 1976 sobre a revolução húngara de 1956.É que a luta de classes, hoje, como ele o sublinha vezes sem conta, envolve distinções complexas e reiteradas, que a revelam como individual ou colectiva, quanto ao assunto;que envolve como projecto , a forma de luta(s) económica ou política; revela a sua dimensão, em parcial ou total; configura segundo os seus meios, uma luta dentro da lei ou fora-da-lei;manifesta segundo a sua forma, tipos de luta implicitas ou explicitas. " O contrário da " espontaneidade " situa-se na organização? Mas a questão é precisamente: que organização, e organização de quem? A acção " espontânea " dos operários e do povo húngaro consistiu numa acção visando a organização e mais: a sua espontaneidade era exactamente isso, a sua auto-organização. Nesse desideratum reside o que o pseudo" teórico " burocrata mais detesta: que os operários, em vez de esperarem, numa passividade entusiasta, que ele os venha organizar, se organizem eles-próprios em Conselhos Operários.E como é que ele os organizaria , se lhe dessem uma oportunidade? Como as classes dominantes o fizeram durante séculos nas fábricas e no exército. E isso,não só se e quando conquista o poder, mas desde o início: num grande sindicato, por exemplo, ou num " partido bolchevique ", cujas relações interiores, pela sua estrutura, a sua forma e conteúdo, reproduzem simplesmente as da sociedade capitalista: hierarquia, divisão entre uma camada de dirigentes e uma massa de executantes, máscara de pseudo " saber" despejado sobre o poder de uma burocracia que se coopta e perpétua, etc,isto é,a forma apropriada à reprodução e à perpetuação da alienação política( e, por consequência,da alienação global).Se o oposto da " espontaneidade ", isto é, da auto-actividade e da auto-organização, é a hetero-organização- pelos politicos, os " teóricos ", os " revolucionários professionais ",etc- então o oposto da esponteneidade é de evidência a contra-revolução ou a conservação da ordem existente ".Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Acertaste em cheio na citação, Niet. Tiro no porta-aviões!

Saúde e liberdade

msp

Anónimo disse...

MSP: Estava prometido o apontamento, há uns dias. Eu gosto de cumprir, sempre.Só que Habermas versus Castoriadis vai-me solicitar uma leitura de Kant mais profunda.Aqui, na doce Germânia, como devem imaginar os Hegel, os Kant e os Weber- para não falar dos Rilke ou dos Marx- custam 5 euros o tomo das OC... Andei a reler centenas de páginas do Corneille. E acho que vou mesmo fichá-lo...O livro do N. Poirier parece-me um pouco fracote.O C.C. dizia que a abordagem ontológica( lógica...) era papo-furado para a investigação histórica e política. Ler o Castoriadis não é empresa fácil, como sabes, uma vez que ele gosta de nos pregar partidas...juntando o Platão e o Aristóteles na representação do saber como a chama que se alimenta a si-própria. Apetece mesmo dizer, combata a crise tornando-se radical a ler Castoriadis, Guattari, Castel, Rostang ou mesmo Quincey...Salut! Niet