20/06/11

Raios partam Lenine

Poucas discussões podem ser mais entediantes do que aquela em que dois istas discutem qual dos dois é mais verdadeiramente ista. São discussões certamente muito passionais mas que são chatas até mais não. Sei-o bem porque já perdi algumas noites desta vidinha a tentar provar, sentado nos bancos de pedra plantados à frente do Califa, que o meu benfiquismo era mais ardente do que o de um dado interlocutor. E posso garantir que ainda assim no dia seguinte o Porto se manteve no primeiro lugar do campeonato. Mas eis senão quando chega à nossa já farta mesa uma discussão que tem tudo para ser ainda mais absurda do que aquelas. É o que sucede quando um ista acusa alguém que não é do mesmo ismo de não ser do mesmo ismo (sim, isto mesmo). Neste post a Raquel Varela diz que eu e o seu colega de blogue Carlos Vidal destratamos Lenine. Ora sucede que eu estou a mais nesta história. Podem a Raquel e Carlos Vidal discutir entre si, com inteligência, fulgor e paciência, quem trata melhor e quem destrata pior o pobre ou o rico do Lenine. Será um debate que acompanharei, na medida das minhas possibilidades, mas um debate que não me faz descer da bancada lateral ao relvado. Posto isto (e tentando não mandar por água baixo tudo o que anteriormente escrevi), devo dizer que já me faz alguma comichão não conseguir explicar à Raquel Varela a minha posição em relação ao tal do Lenine. A Raquel diz que eu acuso “Lenine de ter semeado estalinismo com a concepção de Partido Revolucionário”, mas não encontro em nada do que alguma vez tenha escrito o que quer que seja que induza tal leitura. Essa tese, que em boa medida é a de, entre outros, historiadores como François Furet, incorre naquilo a que poderíamos chamar a teoria da escalada; um gajo começa por dizer que ganha pouco, no dia seguinte faz uma greve, no dia seguinte faz ainda mais um dia de greve, na semana seguinte vai pregar a greve para outras freguesias, passado um mês faz uma revolução, meio ano depois está a mandar para o gulag tudo o que mexe contra o sabor da sua corrente. Eu não subscrevo a teoria da escalada. (Na verdade escrevi uma tese de doutoramento que em parte resultou contra isso mesmo). Isto não significa, porém, que eu tenha alguma reserva em colocar em cima da mesa de discussão a seguinte questão: como foi possível que a revolução do proletariado se tornasse ditadura sobre o proletariado? Colocar esta questão não significa dizer que qualquer revolução termina em ditadura. Ou sequer que eu entenda que se deve deixar de tentar ser revolucionário para não se correr o risco de acabar em ditador. Colocar esta questão significa dizer sim às revoluções e não às ditaduras. O meu problema com o leninismo enquanto estratégia que advoga a existência de um partido vanguardista não é simplesmente saber se o leninismo possibilita que se chegue a um Estado ditatorial. O meu problema é, fundamentalmente, que tal concepção afirma a necessidade de existir quem dirige e quem seja dirigido. Neste sentido preocupa-me que a concepção vanguardista de partido seja tão propícia à ditadura como conforme à democracia representativa. Tanto me preocupa que Lenine seja compatível com Estaline como com Wilson. Os extremos podem, de facto, tocar-se e no século XX tocaram-se mais do que uma vez. Isto poderia ser subscrito tanto por Nolte como pelo José Manuel Fernandes. Mas os extremos tocaram-se frequentemente pelo centro e não pelas costas. É esse centro, que é o coração da Razão de Estado (ou de Partido), que interessa superar.

4 comentários:

Anónimo disse...

Observar aqui relembradas, por um gajo com estudos, as também minhas madrugadas de escadas, muros e poiais a falar de futebol, quase me provocou uma "salty discharge" (como diz o seinfeld). Mas ve-se que já não tens tempo para saber quem é o Alexis Sánchez; neste caso, a questão é saber se o Kolakowski me serviu de alguma coisa; lembrar é que não me lembro de nada, apenas de que gostei; e o professor doutor, lembra-se do Sergio Duarte, defesa central do Farense? Foi falado para o Benfica, e tão melhor que o Paredão, que ele era.

maradona

Zé Neves disse...

o melhor defesa do farense era o paixão, o puyol de faro.

devias deixar o kolakowki e o hobsbawm (com excepção das primeiras coisas, por certo) e começar a dar em coisas mais fixes. por exemplo googlando "the art of not being governed". ias ultrapassar os teus amigos do 5 dias pela esquerda num abrir e fechar de olhos.

Anónimo disse...

Caro Zé,

A concepção vanguardista do partido não foi inventada por Lenine. Emana naturalmente do marxismo como ideologia política.

Cumprimentos
JM

Anónimo disse...

"the art of not being governed"

= the war of all against all (hobbes)

as sociedades agrárias, sem estado, não eram imunes ao conflicto (por território)

o conflicto, a dominação e o poder antecedem a formação do estado. (foucault dixit) aliás, como propõe foucault nas suas micro análises do poder, estas são as condições existenciais da possibilidade do poder estatal ou burocrático.

JM