25/10/11

Sobre o 15 de Outubro: democratização, “indignação”, partidos, etc. (texto publicado no Passa Palavra)

Saiu hoje no Passa Palavra um texto meu, que tencionava esperar um pouco mais para retomar aqui. Há, no entanto, quem me anime a fazê-lo sem perder mais tempo por considerar que as questões levantadas merecem uma discussão "alargada". Uma vez que suscitar essa discussão foi o principal propósito que me levou a escrevê-lo, e na esperança de a ver surgir, decidi assim retomá-lo nesta casa, hoje mesmo e com o mesmo título.

Os acontecimentos e a situação política presentes têm posto na ordem do dia uma série de questões sobre a suficiência ou insuficiência da “indignação” e, mais profundamente, sobre as perspectivas de uma transformação democrática radical das relações de poder vigentes sob o governo das oligarquias capitalistas.
Quanto ao primeiro ponto, remeto, embora não subscreva tudo o que Zygmunt Bauman aí afirma, para as reflexões que aquele propõe numa entrevista publicada por El País, e que assinalam com pertinência os limites que, ainda com excepções e linhas de fuga abrindo novas perspectivas, têm até ao momento circunscrito o alcance das acampadas. Com efeito, na peça que transcreve as posições de Bauman, podemos ler:

«Bauman, é evidente, classifica este movimento como “emotivo” e, na sua opinião, “se a emoção serve para destruir, ela é especialmente incapaz de construir o que quer que seja. Pessoas de quaisquer classes e condições reunem-se nas praças e gritam os mesmos slogans. Estão todos de acordo quanto ao que rejeitam, mas teríamos cem respostas diferentes se lhes perguntássemos o que pretendem.
A emoção é (e não podia deixar de ser) “líquida”. Ferve facilmente, mas também arrefece passado pouco tempo. “A emoção é instável e inadequada para dar forma a algo de coerente e duradouro”. De facto, a modernidade líquida na qual se inserem os indignados tem como característica a temporalidade, “as manifestações são episódicas e propensas à hibernação”. […]
O movimento vai crescendo, mas “fá-lo mediante a emoção, falta-lhe pensamento. Só com emoções e sem pensamento não se chega a lugar nenhum”. A agitação resultante da emoção colectiva reproduz o espectáculo de um carnaval que termina por si mesmo, sem consequências. “Durante o carnaval tudo é permitido, mas, acabado o carnaval, volta o sistema de normas anterior”».
(Entrevista de Vicente Verdú, “El 15-M es emocional, le falta pensamiento”, El País, 17.10.2011)

Dito isto, haverá quem possa objectar com certa justificação a Bauman que os movimentos que culminaram nas acções internacionais do dia 15 de Outubro passado, ainda que tenham partido de uma indignação difusa, mais sentimental (senão moralizadora) do que política, souberam começar a politizar as questões que levantam, como é manifesto em divisas como ”Democracia Já”, ”A Democracia Sai à Rua” ou ”Nós Somos os 99%”. A objecção é pertinente, mas só até certo ponto.
Com efeito, ainda que possamos ver em abstracto uma aspiração democrática constituinte ou instituinte naquilo que as referidas palavras de ordem, entre outras, exprimem, essa intenção está longe de se traduzir numa vontade política determinada e precisa, configurando propostas consistentes de vias e formas alternativas à cena política estabelecida e às relações de poder hierárquicas vigentes. E este é um problema — ou, por excelência, o problema fundamental — que a reflexão mais lúcida não pode por si só resolver.
Podemos e devemos dizer que, se “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”, implicando que seja o conjunto dos cidadãos comuns, ou os tais (um pouco menos de) 99%, a dotar-se de meios e formas de organização que permitam a cada um deles participar de pleno direito nas decisões que governam a sua existência. Não se trata apenas da igualdade perante a lei, mas da igualdade no deliberar e decidir das leis ou na tomada de muitas outras disposições que, não sendo leis, vinculam colectivamente a existência de cada ser humano comum. É evidente que a exigência de uma igualdade semelhante não é satisfeita pela chamadas “democracias representativas” que nos governam e que assentam justamente na passividade programada e regular da maioria dos cidadãos e na divisão hierárquica do trabalho político decorrente do estabelecimento de uma distinção permanente e estrutural entre governantes e governados. É evidente que a mesma exigência de igualdade é excluída dessa sede de um poder governamental discricionário que é a organização económica do capitalismo actual. Com efeito, na enorme medida em que a economia é uma instância determinante ou um campo de relações de poder decisivo no governo das nossas vidas de homens e mulheres comuns, não há democratização possível, no sentido que tenho vindo a indicar, do exercício do poder, que não tenha desde o início de começar a transformar essa mesma economia. Esta democratização da economia tem vários níveis, sendo importante insistir nesse aspecto: implica, nomeadamente, a democratização dos rendimentos e do mercado; a democratização das relações de poder no interior das empresas ou organizações; a democratização da decisão dos objectivos gerais e planeamento da actividade económica, etc. Sem igualização das condições de participação na direcção da economia, tanto ao nível macro da economia política, como ao nível de cada empresa ou unidade produtiva, e sem igualização dos rendimentos e democratização efectiva do mercado, não é possível conceber a existência de cidadãos que se governem a si próprios, ou que só reconheçam a legitimidade de os governar a um poder político cuja organização os institua também como governantes.
Podemos dizer tudo isto, algumas (ou muitas) coisas mais, e faremos bem em insistirmos nelas. No entanto, a reflexão não pode, por mais longe que a levemos, e por definição, dar-nos a chave ou modelo do exercício do poder político democrático: este terá de ser feito e refeito, criado e recriado, no tempo, e dia após dia, pelos próprios cidadãos comuns, que efectivamente o detenham. Que assembleias e que magistrados responsáveis perante elas, por meio de que eleições e de que tiragens à sorte, através de que formas e sedes de deliberação e decisão comuns, poderá ser garantida aquilo a que tenho chamado a cidadania governante? Esta resposta só pode ser dada empiricamente e de facto pelas formas de acção que a sua reivindicação e afirmação forem criando e definindo por obra dos seus protagonistas.
Quererá isto dizer que a luta pela democratização aqui em causa pressuponha a condenação ou, pelo menos, a inutilidade de qualquer forma de partido ou associação política militante, como alguns parecem julgar e outros temem mais do que o diabo, diz-se, a cruz? É com esta questão que gostaria de terminar por agora esta proposta de debate.
Quanto aos partidos, o que aqui fica dito tende a exigir não a proibição deles ou de outras formas de expressão organizadas por grupos de cidadãos interessados em dar a conhecer as suas opiniões e propostas aos demais, mas, sem dúvida, a transformação radical das formas de organização existentes ou a criação de novas formas de associação política que nos permitam operar a substituição do voto em partidos comandados por políticos profissionais pela eleição de delegados, com partido ou sem ele, que mandatemos - possamos regularmente revogar segundo procedimentos simples e claramente definidos - e sejam responsáveis perante os eleitores e não partidos representativos no exercício das tarefas comuns cujo desempenho o exija. Ou seja, a substituição do voto que esgota e exclui até à convocação de novas eleições gerais a participação governante pelo voto que reforça e traduz essa participação permanente, que é uma das condições da cidadania.
Em tudo isto, convém não esquecer que se a democracia que queremos é o governo que se dão e organizam os cidadãos livres e iguais, a organização de um movimento que a tenha por fim, terá de a ter também por meio e forma de organização. Ora, se todo o movimento é um poder e comporta relações de poder, o primeiro regime de exercício do poder a democratizar por uma “aliança de pessoas livres e iguais” é o da organização e direcção do próprio movimento. Esta democratização é, na realidade, condição necessária da que o movimento propõe no que se refere ao conjunto da sociedade. Acresce por fim que as mesmas razões fazem com que as lutas e acção política do movimento só possam visar a extensão e generalização da participação igualitária, responsável e regular - auto-organizada ou autónoma -, de cada cidadão nas decisões comuns, que vinculam a existência colectiva, pelo que será tendo-o em conta que delas melhor poderemos ajuizar a cada momento.

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