05/11/12

O Passa Palavra reitera a sua carta de princípios e explicita as suas propostas de acção

Num texto intitulado O que nos propomos fazer aqui e agora, o colectivo do Passa Palavra responde a várias críticas que, reclamando-se de um pensamento de esquerda, lhe têm sido endereçadas nas últimas semanas. Ao mesmo tempo, apresenta um sintético, mas precioso contributo sobre a natureza do poder político efectivo das actuais oligarquias governantes. É deste que deixo aqui uma passagem particularmente significativa, que não dispensa, é claro, a leitura na íntegra do documento.


Quando o voto era censitário, quer dizer, quando só podia votar quem pagava acima de um dado montante de imposto, ou quando a capacidade eleitoral se reservava a quem sabia ler e escrever numa época em que as grandes massas eram analfabetas, então podia dizer-se que os governos correspondiam à célebre definição e eram o comité de negócios da classe dominante. Mas progressivamente o voto foi-se universalizando e, mesmo detendo o controlo sobre os meios de comunicação e podendo influir no sufrágio, os capitalistas não se arriscaram a perder o aparelho político.

Assim, a expansão da democracia assente no voto universal teve como efeito a passagem gradual do poder para órgãos não eleitos e muitas vezes nem sequer reconhecidos formalmente. O povo elege pessoas para compor órgãos que perderam a influência. Consoante os países, os comités de assessores passaram a prevalecer sobre os ministros, os comités especializados começaram a prevalecer sobre as reuniões plenárias do parlamento, tornaram-se regulares as reuniões informais entre governantes e grandes empresários e nalguns casos, como nos Estados Unidos e agora no Brasil, adquiriu um peso político crescente o Supremo Tribunal, composto por magistrados não eleitos. Sobretudo nas seis ou sete décadas posteriores à segunda guerra mundial desenvolveu-se um aparelho burocrático e tecnocrático, que constitui a colossal parte imersa do iceberg político e tem nos órgãos eleitos a pequena parte visível.

A alteração dos eixos e dos planos do poder político tornou-se ainda mais drástica a partir da crise económica da segunda metade da década de 1970, quando a internacionalização do capital começou a dar lugar à sua transnacionalização. Na fase da internacionalização do capital, as grandes companhias multinacionais adoptavam uma estrutura em que a sede se localizava num país e as filiais reproduziam em ponto pequeno a organização da sede, reservando-se a sede o exclusivo de algumas funções consideradas estratégicas. Na fase actual, porém, cada grande companhia transnacional articula diversas cadeias produtivas cujas empresas componentes se espalham por uma variedade de países, de modo que a articulação de todas as cadeias produtivas pode não estar concentrada numa sede comum. Na fase da internacionalização as grandes companhias ultrapassavam as fronteiras nacionais, investindo em novas empresas e na produção local nos países onde as pautas aduaneiras pretendiam regular o comércio externo. Isto continua a suceder, mas foi-se mais longe. Hoje as grandes companhias, ao integrarem nas mesmas cadeias produtivas empresas dispersas por diferentes países, desenham uma geografia própria, que já não corresponde à geografia política existente.

Deste modo, as grandes companhias transnacionais constituem centros de poder que não só estão acima dos governos nacionais mas além disso se situam noutro plano.

Até uma época recente os governos e os parlamentos ocupavam um espaço necessário entre as grandes empresas e a população. As grandes empresas podiam dominar por dentro os órgãos políticos eleitos, mediante a colocação de assessores e a regularidade com que procediam às reuniões informais com os governantes, mas precisavam dos governos como intermediários entre elas e a população. A situação mudou e hoje as grandes empresas já se apresentam directamente à população como interlocutores políticos. Fazem-no através de fundações que adquirem um papel decisivo na vida cultural; através de Organizações Não Governamentais, que estão para as grandes empresas como outrora as Frentes estavam para os Partidos Comunistas que lhes puxavam os cordelinhos; ou simplesmente através da filantropia, exercida numa enorme escala mundial.

3 comentários:

Anónimo disse...

Este colectivo activo e muito estéctico, o" Passa Palavra ", é um poderoso dispositivo de criar sentido(s)na via da libertação mais pura e transparente.Com uma pedagogia subtil e muito determinada, demarcando-se dos estigmas do obsoleto marxismo e do anarquismo de pechisbeque, este novo aditamento ao seu programa de acção privilegia a critica à lógica transnacional do capitalismo, o que me encanta por vir ao encontro daquele recente conceito-táctico que J-L. Mélenchon denunciou( e revelou...) ao aludir ao grande complot politico euro-americano( a Social Democracia e as variantes liberais e cristãs-democratas das oligarquias no poder) para a constituição do Grande Mercado entre as duas margens do Atlântico Norte, a que conferi importância num comentário do passado dia 29 Out, se bem se recordam. O nó górdio da questão reside no magma de tensão e drama que Castoriadis tão profundamente analisou e tentou caracterizar: " A Economia em tanto que Economia ultrapassa a Economia, o balanço de lucros e perdas em qualquer tipo de sociedade não é nem pode ser pura e simplesmente económico, é social e portanto inclui o custo de todas as condições criadas da existência e da sociedade.(...) Esta construção do conceito de exploração só tem, por conseguinte,acima de tudo, valor como denúncia das contradições internas, da incoerência e hipocrisia da ideologia burguesa.É um conceito polémico, não teórico. Como conceito teórico, o conceito de exploração não se pode basear senão que sobre o projecto de uma outra sociedade possível. Deve necessariamente apelar para uma visão global do ser da sociedade ". Niet

Fernando disse...

A Grécia arrisca-se a implodir na quarta-feira, pois podem não reunir assinaturas suficientes para o novo memorando. Caso isso suceda, não há dinheiro nos cofres para pagar os salarios de Novembro e a haver eleições será o Syriza a ganhar, de acordo com as mais recentes sondagens. Nesse caso, a bola estará do lado de permanecer no euro sem um tostão furado, coisa que mal sonhamos no que pode dar (provavelmente no contrário daquilo que o Passa Palavra e MSP defendem, isto é, saída do euro ao fim do mês).

Li o texto do passa palavra na diagonal, assim que o ler melhor voltarei para comentar. É um bom debate, apesar de eu ainda me sentir mais do lado da barricada do PCP, com razões que mais tarde exporei.

Fernando disse...

Devo dizer que estou nem comento no Passa Palavra pois estou muito desiludido com um artigo que nem em forma nem em conteúdo tem algo de "programático". Como tal, não há coisa nenhuma a propor dentro do quadro do possível e das instituições que estão estabelecidas, e aqui já nem falo dentro de Portugal, mas ao menos dentro da UE, e com um nível de maior emergência, dentro da zona euro.

Limita-se a mencionar uma articulação da luta dos precários, desempregados e restantes trabalhadores. Muito bem, de acordo. Mas depois de estarem a malhar durante tantos parágrafos na transnacionalização do capital, a articulação dos trabalhadores de que falam terá de existir em que escala? Portuguesa? Zona euro? UE? Parece-me que dada a transnacionalização do capital (ainda para mais toyotista-leninista!) isto não será suficiente... Teremos de esperar que a massa crítica exista em torno de um projecto global e que tenha apoiantes na China, na Coreia do Norte e nos Estados Unidos?

E depois vem o parágrafo do sindicalismo alemão (com a devida vénia ao tovarich António Chora). Colocar nos píncaros os tais modelos de co-gestão, é apoiar o sindicalismo não-revolucionário que, ao se focar num horizonte "possível", ao longo do século XX deitou por terra a teoria marxista que previa que os trabalhadores dos países mais avançados, dada a melhoria da educação e condições de vida, iriam facilmente derrubar o capitalismo. Muito pelo contrário, como a história se tem encarregado de mostrar.



Temos de reconhecer que não é possível fazer uma transição para uma sociedade mais igualitária de um dia para o outro. Partindo do dia de hoje e das instituições que o moldam, eu penso que a única jogada que pode levar a uma onda de solidariedade na Europa só pode aparecer no dia em que se colocar em causa a dívida existente. Isso acontecerá provavelmente mais cedo do que se pensa, como escrevi em comentário anterior. A verificar-se, na Grécia, o cenário NOVO MEMORANDO NÃO É ASSINADO + GOVERNO CAI + SYRIZA GANHA ELEIÇÕES + SYRIZA SUSPENDE PAGAMENTO DA DÍVIDA, o mais provável é que a Grécia levará um pontapé no cu e sairá do euro. E só nesse dia de pós-balcanização estarei eu, MSP, passa palavra e o PCP no mesmo saco. Até lá dá-me a impressão que o MSP nem acha desejável que o Syriza tome o poder se efectivamente este partido defender a suspensão do pagamento da dívida, se a consequência for a saída do euro. Logo, MSP e passa palavra defenderão implicitamente que aceitar a austeridade é o caminho a seguir?