23/06/18

Acerca das relações estreitas entre populismo e futebol

A situação existente no Sporting Clube de Portugal, clube centenário fundado em Lisboa em 1906, é hoje discutida fundamentalmente do ponto de vista que mais interessa aos canais televisivos por cabo. Uma discussão infinita, infintamente repetida, entre os bons e os maus, diariamente alimentada por novos episódios quase sempre originados pela fértil imaginação do actual Presidente, Bruno de Carvalho, e pela sua singular concepção da democracia.

Talvez por isso valha a pena ler esta peça do "Político", que estabelece uma relação entre aquilo que se passa no clube de Alvalade e a existência de um populismo larvar na sociedade portuguesa. Não será a única análise mas merece uma leitura atenta, até pelos que não se interessam por estas coisas. A escensão de Bruno Carvalho ao poder baseou-se numa promessa simples e facilmente entendivel por todos: devolver o Sporting aos sócios.

A analogia entre Bruno de Carvalho e Trump, salvaguardadas as devidas distâncias, faz todo o sentido. Tal como o presidente americano, Bruno de Carvalho apelou aos "excluídos". às "vitímas das elites", ao povo anónimo, que tem acesso à redenção através da eleição do "seu líder" que vai governar em seu nome, devolvendo-lhes o país ou o clube.

A base para o sucesso de um programa tão rudimentar tinha sido construída por aqueles que Bruno de Carvalho derrotou: uma pseudo-aristocracia ligada à banca e aos negócios do imobiliário. Essas sucessivas gerações dos chamados "croquetes", instalaram-se no clube, depois do consulado de João Rocha, sob  a liderança de José Roquette, um capitalista muito relevante na fase da abertura da banca aos privados e da entrada em força da banca privada no negócio do imobiliário.

A famigerada "Sociedade de Construções e Planeamento" - uma antecessora do que viriam a ser as Sociedade Anónimas Desportivas - foi a arma utilizada por Roquete para, segundo declarações da altura, "tornar o Sporting independente da bola que bate na trave e não entra".

Foi um objectivo totalmente conseguido já que, nas décadas seguintes, o Sporting remeteu-se a um plano de uma progressiva irrelevância desportiva e, paradoxalmente, alienou a quase totalidade do património imobiliário que possuía - terrenos na área urbana da cidade de Lisboa, em torno do antigo estádio José de Alvalade - sem que  o clube tivesse qualquer benefício da colossal mais-valia gerada com a sua alienação. Pelo contrário, o Sporting, a cada ano que passou, foi ficando cada vez mais endividado, através de uma ligação preversa com a banca que se constituiu como um sumidouro para os recursos próprios do clube.

Roquete exerceu uma influência tutelar sobre o clube mesmo depois de se retirar. Teve influência na designação dos seus sucessores: Santana Lopes terá sido o caso em que essa influência mais se fez sentir. Santana foi apresentado como o delfim de José Roquete e o seu herdeiro natural. Essa sucessão de dirigentes culminou com Godinho Lopes, talvez o mais detestado Presidente da história do clube. Tempo ideal para lançar uma candidatura, fortemente apoiada pelas claques - organizações que representam um "clube dentro do clube", que em muitos clubes abrigam núcleos dominados pelas ideologias extremistas, com comportamentos nazis - que aproveitou as redes sociais para mobilizar os "excluídos".

Não pode surpreender ninguém que o actual presidente do Sporting queira manter o poder que tem a todo o custo. Não pode surpreender ninguém que Bruno Carvalho - o sobrinho-neto do almirante Pinheiro de Azevedo - entenda  mandar à bardamerda quem lhe faz frente e não se verga ao seu poder pessoal. Estatutos do clube? Separação de poderes entre orgãos sociais e respeito pelos poderes de cada um? Respeito pelos orgãos da República, nomeadamente pelas decisões dos Tribunais? A tudo isso BC diz ... nada.

Trata-se de um poder quase absoluto, que ele tem tentado transformar num poder absoluto. Bruno Carvalho gostaria de se eternizar no poder como Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira. Está mesmo disposto a fazer do exercício da presidência do clube um modo de vida, construindo uma longa carreira. Uma enorme trabalheira para devolver o clube aos sócios, recorde-se.

O populismo é assim: serve-se do descontentamento existente, utiliza as armas da democracia para ascender ao poder e, uma vez instalado, começa a criar as condições para que aqueles que o elegeram não tenham qualquer possibilidade de o desapossar do poder. A comparação com Trump é justa mas aquela que mais me agrada é a comparação com Maduro, o ditador venezuelano. O que se está a passar no Sporting é um exemplo de que na sociedade portuguesa, cujos "brandos costumes" são tantas vezes enaltecidos, existem tensões que criam condições propícias para a emergência do populismo de base anti-democrática.

O futebol tornou-se ao longo de décadas uma das áreas de negócio preferidas pelo capital especulativo para realizar chorudas mais-valias e para proceder a operações massivas de lavagem de dinheiro, das mais tenebrosas origens. A superestrutura que comanda esta "organização" estabeleceu um modus operandi fundado e sustentado na corrupção. Recentemente foi necessário decapitar a super-estrutura que liderava esta "máfia" para tentar manter o essencial da "indústria". Blatter, o decrépito e poderoso suiço foi a imagem mais mediática desse lifting facial. Mas as rugas estão lá, impressas, e o modo de funcionamento permanece, inalterado. Uma das expressões desta cultura da corrupção é a subversão da verdade desportiva,  uma cada vez maior clivagem entre países pobres e ricos e entre clubes pobres e poderosos, sobretudo na escala europeia, de que a actual Liga dos Campeões é a maior expressão. Recentemente foi necessário - face à pressão popular mediatizada nas redes sociais - fazer cedências no sentido da verdade desportiva, de que a introdução do vídeo-árbitro é o melhor exemplo.

O futebol não se autoregula. A autoregulação fomenta a corrupção, fomenta a desigualdade, afasta os cidadãos deste espaço de confraternização e afectividade. O futebol tem que ser regulado e isso passa pela assumpção da responsabilidade política de quem tem o dever de tutelar o desporto. Em Portugal os clubes desenvolvem uma actividade complementar do Estado e beneficiam de verbas públicas. A sua actividade tem que ser regulada e as prácticas de natureza violenta como a invasão de Alcochete, devem ser severamente reprimidas e determinar consequências para os responsáveis dos clubes. Tal como o envolvimento em esquemas corruptos que visem obter resultados por todos os meios.


Declaração de interesses: sou sportinguista desde pequenino, influência do meu pai e dos meus familiares. Influência do João Martins, natural de Sines, como eu, o sportinguista que marcou o primeiro golo na antiga  Taça dos Campeões Europeus, de que ouvi contar muitas vezes as suas proezas desportivas, antes de ter tido o prazer de o conhecer, e que ouvi falar várias vezes, quando ele regressava de França para as férias no Verão, e se juntava a conviver com os seus amigos de infância. Transferido por cem escudos para o Sporting, uma transferência brutal para a época.

Outros tempos em que os craques, pobres na sua origem social, regressavam à pobreza terminada a carreira e lutavam dia a dia para sobreviver. Tempos em que o futebol era mais humano do que actualmente, com as superestrelas elevadas ao estatuto de deuses acima dos homens e das leis, mesmo que sejam as, supostamente implacáveis, leis fiscais.

Mas também sou sportinguista, ou será essa a principal razão?, porque quando comecei no meu bairro, a jogar com os meus amigos, no Bairro Mrítimo onde cresci, nos imensos campos de areia, nesses tempos de fraca urbanização, na ditadura salazarista, o Benfica era já o todo poderoso. Certamente a minha opção pelo Sporting resulta dessa tendência congénita para contrariar os mais fortes, aqui referida e que partilho. A maioria dos meus amigos era benfiquista e Eusébio rivalizava com Amália na admiração dos portugueses.

Vou à Assembleia Geral do Sporting, amanhã dia 23 de Junho, votar a favor da democracia, contra o populismo.


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