06/06/10

Sobre o Anticomunismo - uma ou duas reflexões preliminares

Um post do João Tunes, aqui publicado há dias, deu origem a uma discussão em que alguns usaram e abusaram do termo "anticomunismo, sem nunca se terem dado ao cuidado de explicar o que entendem por ele. Convém, talvez, e tendo em conta futuras discussões, procurar esclarecer um pouco as coisas.

O termo é aplicado aos que criticam ou atacam determinada palavra de ordem, atitude política concreta do PCP, ou, indo mais, longe contestam a sua orientação ou linha geral. Ou também, e por maioria de razão, aos que entendem que a prática do PCP, as suas concepções expressas teoricamente ou na linguagem da acção, prefiguram ou actualizam certos traços incompatíveis com a construção de uma sociedade sem distinções ou hierarquia de classe, governada por cidadãos livres e iguais, organizados em vista do exercício da direcção política e económica através da participação democrática nos processos de deliberação e decisão das questões comuns.
Mas serão "anticomunistas" os que sustentam estas críticas e posições? Dir-se-ia que não, quando se considere, pelo menos, que a "construção social" que acima resumi, em termos deliberadamente diferentes dos mais frequentemente utilizados para descrever o comunismo, se limitam no essencial a repetir as exigências fundamentais da democratização socialista que se confunde com a abertura da via que conduziria ao comunismo.
É verdade que se levanta aqui o problema de saber se a fase superior desta democratização - a realização do comunismo - é concebível nos termos em que a tradição marxista clássica, o movimento anarquista histórico, etc. a definiram como meta. Ou seja, será possível e/ou desejável afirmarmos, em termos de racionalidade democrática, a ideia condutora de uma sociedade sem instituições nem leis, sem governo nem direcção económica, sem necessidade? A verdade é que creio que a adopção de tal meta, e do seu horizonte meta-histórico - ou seja, a adopção do fim da história como meta - é logicamente inconsistente e tende a funcionar como um mito de justificação e compensação ou das insuficiências da democratização socialista (dita primeira fase ou fase inferior do comunismo) ou de projectos políticos aos quais o mito do paraíso futuro serve de álibi para a recusa da organização/instituição igualitária e livre da direcção política presente e para a reprodução de formas que perpetuam a hierarquia classista e as formas de divisão do trabalho político que correspondem à opressão e à exploração da maioria dos que continuam a ser governados e excluídos de direitos e responsabilidades propriamente governantes.
Mas, embora me pareça, pois, que a adopção do comunismo, assim entendido, enquanto meta meta-histórica, é uma auto-mistificação dos dominados ou um mito que justifica a dominação, isso em nada restringe, bem pelo contrário, o alcance, a urgência e as boas razões da vontade de democratização que o projecto comunista historicamente nos transmitiu.

Ora - libertando de metas míticas a imaginação instituinte não reconhecida nem assumida como tal e que justamente a fixação mítico-instituída e a negação mítico-instituída do tempo e da história nos impedem de reconhecer como criação histórica incolmatável por metas finais e antecipadamente definidas -, estar decidido a manter como alternativa política viva aquilo que na "hipótese comunista", como gostam de dizer o Ricardo Noronha e o Zé Neves, pode ser politicamente proposto e passar à acção política, requer como condição de possibilidade que a acção alternativa actualize a livre deliberação e decisão das suas formas pelos seus agentes, e que estes assumam que a afirmação e a conquista da cidadania democrática se faz realizando-a no contexto imediato e particular de cada passo de um caminho que só andando colectivamente se faz, ainda que este fazer colectivo não exclua, mas antes pressuponha e encoraje a iniciativa individual de propostas quanto à direcção dos trilhos que se vão abrindo.
Voltando ao princípio destas linhas: a organização do combate democrático cuja extensão se confunde com a "construção do socialismo" deve ela própria ser democrática e socialista, deve ela própria ser expressão do auto-governo e da autonomia colectivos, os quais, pelo seu lado, estipulam e afirmam a autonomia e a responsabilidade dos indivíduos seus agentes, cidadãos apostados em dar-se, por sua conta e risco próprios, e sabendo que o fazem, a sua própria lei. Nessa medida, o compromisso com a dimensão política do "horizonte do comunismo" (Daniel Bensaïd), da "hipótese comunista" ou da "revolução social", não reconhece direcções superiores nem exteriores ao desenvolvimento da participação, em condições de igualdade de poder, exercida pelos interessados. E a recusa de reconhecer qualquer competência, estatuto, legitimidade ou superioridade de comando ao PCP, como a qualquer outra organização partidária, que se declare proprietária ou instância de administração e condução profissional do "movimento comunista", é bem menos "anticomunista" do aqueles que, em defesa da ordem hierárquica que instituíram em proveito da sua condição de representantes ou dirigentes e candidatos a governantes "mais justos" das "massas" oprimidas e exploradas, não se cansam de denunciar o "anticomunismo" de quem não lhes bate a pala nem, diante deles, se perfila de medo, ou acede a prestar-lhes serviços de sacristia.
Se, no debate sobre os "porcos com asas, que figuram na epígrafe deste blogue, o cepticismo pode invocar argumentos não despiciendos, é, em contrapartida, fora de toda a dúvida que, sobre os usos do termo "anticomunismo", talvez tenhamos ainda de voltar a falar, começando por fazê-lo, por exemplo, com os que, militando no PCP, mantêm viva essa vontade efectiva, anti-classista, anti-burocrática e anti-hierárquica, de liberdade, igualdade e "livre associação" governante que, um dia, os levou a adoptarem como sua a "hipótese comunista".

7 comentários:

Zé Neves disse...

caro miguel,
não diria melhor!
abç

Anónimo disse...

Eu reflicto apenas assim:

Quando um caramelo qualquer (que se diz de esquerda) gasta mais saliva e tinta a desancar no PCP do que no governo Sócrates - como é o caso neste blog - é caso para dizer... "anticomunista"!

Quando antes, durante e após um manif gigantesca da CGTP, um caramelo qualquer (que se diz de esquerda) gasta mais saliva e tinta a desancar nos sindicatos do que nos patrões - como é o caso neste blog - é caso para dizer... "anticomunista"!

Nada nem ninguém está acima da crítica, nem sequer o PCP. Mas há certas coisas que os Serras Pereiras e os Zé Neves nunca vão compreender, portanto... Se a azia for muita tomem uma daquelas pastilhas rennie.

João Tunes disse...

Como diz o Belarmino a cada frase do Jerónimo discursada na Assembleia: Apoiado!

rafael disse...

Caro Miguel

gostaria de me centrar em um ou dois pontos do seu post:

O primeiro que fala da direcçao da luta e da insinuada atitude controlera que o PCP exerce sobre a mesma. Eu acho que o Miguel desenvolve uma leitura simplficada da relaçao do PCP com o que no jargao é conhecido por movimentos ou organizaçao de massas. Sendo eu militante de um pequena organizaçao concelhia, nao tenho problemas nenhuns em reconhecer que em muitas organizaçoes deste tipo (e falamos desde sindicatos até grupos recreativos)o PCP nao tem muita influencia quer pelos seus dirigentes nao serem politcamente proximos ou por outro motivo qualquer. Mas nem por isso, dexa o PCP nos seus contactos de estabelece-los como alvos prioritáros de contacto. Justamente pela questao da direcçao da luta ou das lutas. Localmente muitas destas organizaçoes sao elementos fundamentais para o desenvolvimento e sustentabilidade das pequenas lutas diarias (mas tambem das grandes) e o PCP está com muitas e mutas delas exactamente porque reconhece que têm o seu papel na direcçao da luta. Outro caso diferente, é quando elementos organizados entram na luta com motivo nao de unir-se a um esforço colectivo (seja quem seja o seu dinamizador) de uma parte da sociedade em conseguir vitorias para a sua melhoria de vida ou de condiçao, mas no sentido de expressar uma ideia - um conceito que poderá ser afim mas nunca central. E nesse sentido, creio que nao existe uma vontade legitima de incorporar um projecto pragmatico de unidade temporal que nao é desavenço com a critica, mas sim uma exaltaçao da sua "secta", do seu proposito dentro do proposito total/(izador).

Por isso nao creio que a sua critica seja completamente justa.

Segundo, prende-se com a aspereza, a sistematicidade e a facilidade com que se utilizam por vezes as postulaçoes de "sectário", "hierarquco", "burocrata" defindo um cojunto de dezenas de milhares de pessoas (ou mesmo que se referisse apenas aos cento e picos do CC do PCP) como uma massa uniforme e informe. Nao um conjunto de individuos que partcipam de modo sistematco em reunioes, discussoes e debates, chegando muitas vezes ao conflito, mas uma especie de zombies propagueadores de uma verdade universal quase holistica de caracter artificial/ artificioso.

Mais uma vez, creio que uma analise tao redutora, tao claustrofobica (mesmo quando se fala de ortodoxos e moderados e renovadores e tudo isso) espartilha completamente qualquer hipotese de debate sobre qual o papel do PCP e dos seus militantes na vida do nosso país e dessa forma, essa colagem dos comunistas portugueses a uma especie de liderança extra-terraquea, sim, creio que por vezes pode ser considerada ant-comunista porque parece, por vezes, que o inimigo a abater é o PCP e nao a politica de direita e a ofensiva capitalista.

Eu tenho bem claro o inimigo e claramente nao é nem o MSP nem o JT nem o BE nem os anarquistas. Mutas vezes questiono-me se do lado daqueles que estao contra o capitalismo e fora do PCP existe essa clareza...

Respeituosas saudaçoes

rafael

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Rafael,
pode crer que aprecio sinceramente a sua vontade de diálogo, e que só lamento que seja tão raro aparecer um militante do PCP, ou outro comentador que de um modo ou de outro se reivindica da mesma área, disposto a falar como você. O que não quer evidentemente dizer que não haja outros companheiros de partido ou de jornada seus lamentando o sectarismo de posições oficiais como a assumida no Avante! pelo C.Gongalves e de inúmeras e reiteradas posições oficiosas no mesmo estilo.Você dirá que as posições oficiosas não comprometem o PCP, mas eu entendo que, quando estas invocam explicitamente o Partido ao mesmo tempo que difamam, caluniam e procedem a juízos de intenções infundados, invocam Estaline, etc., etc., seria bom que fossem, não caso a caso, mas, de tempos a tempos e em geral, desautorizadas.
Substancialmente, penso que a luta contra as políticas de governos cada vez mais ao serviço da economia capitalista, que nos governa e corrói cada vez mais os direitos, liberdades e garantias que os trabalhadores e as classes populares foram conquistando ao longo de combates seculares, penso, dizia, que essa luta deve poder contar com partidos ou outras formas de intervenção organizada que proponham acções, enunciem objectivos, demonstrem nas palavras de ordem e no modo como agem, bem como na reflexão que no interior da acção tentem promover, que outro modo de organização da sociedade é possível e desejável, que a esfera económica pode e deve ser gerida democraticamente, que o poder político pode e deve ser um exercício de participação igualitária, que podemos e devemos democratizar o mercado através de uma política de igualização que assegure que nele os votos de todos os cidadãos tenham o mesmo peso, etc., etc.
Mas reconhecer a legitimidade e a necessidade de partidos ou associações políticas organizadas implica que o seu papel, a sua estruturação interna, as suas palavras de ordem, programas, formas de intervenção possam e devam ser discutidos enquanto se anda ou faz caminho, a menos que a ideia seja que os actuais governados (e privados de poder e explorados, etc.) continuem a sê-lo só que sob a direcção de dirigentes diferentes que, pretendendo-se embora mais justos e capazes, reproduzirão a sua (deles, governados) subordinação hierárquica, menoridade política, subalternidade económica e social.
Negar a discussão destes temas como prática anticomunista equivale a fazer do comunismo o contrário da emancipação dos trabalhadores e da democratização radical da economia, etc., etc.

(continua no comentário seguinte)

Miguel Serras Pereira disse...

(continuação do comentário anterior)

Ora, infelizmente, a recusa liminar do debate, a sua substituição pelo insulto, a adopção de uma linha rigidamente sectária são o pão nosso de cada dia da intervenção da maioria dos militantes, apoiantes, companheiros de jornada mais visíveis e audíveis do PCP. Veja, meu caro, o comentário do Anónimo que aparece a abrir a caixa deste post; veja as declarações de um seu ex-camarada transcritas pelo post do João Tunes (http://viasfacto.blogspot.com/2010/06/o-sectarismo-do-pcp-segundo-um-que.html); veja o que aconteceu quando um blogger do 5dias aqui há tempos adiantou a sugestão de uma candidatura presidencial de Carvalho da Silva, veja o que acontece quando, condenando o recente acto de pirataria a mando do governo de Telavive, alguém ressalva que esse acto não nos dispensa de denunciar quando necessário os regimes que rivalizam com o de Israel na opressão das populações que governam ou querem governar na região (consulte, por ex., o post do João Torgal - http://5dias.net/2010/06/05/a-“inocencia”-judaica-o-“humanismo”-americano-e-a-“democracia”-iraniana…/#comments - e os comentários de que foi alvo por difamadores que linkam o Avante! e outros que invocam o PCP ou concepções idênticas da sua luta e estratégia).

Resumindo e concluindo, caro Rafael, felicito-o pela coragem da atitude que tomou e quero que saiba que continuo interessado na discussão que propõe e que, directa ou indirectamente, tentarei continuar consigo e com os que, como você, a consideram uma condição necessária do combate democrático contra a dominação capitalista.

Cordias saudações igualitárias

msp

Anónimo disse...

MS.Pereira e todos em geral:A teoria e a prática do PCP ilude e torpedeia- vamos ser francos e tentar ser claros-o processo de libertação económica, social e cultural da sociedade portuguesa. Como o tem patenteado ao longo dos anos. E não deixa de se acentuar nos tempos que correm, infelizmente. O que invocas como alternativas- hipótese comunista e horizonte comunista- são propostas que visam reler Marx, Engels e Lénine( ou mesmo Trotski), que, à partida, quase que inviabilizam a necessidade de se destruir os elementos teóricos daquilo que,como muito profundamente sublinhas,se estabelece como a " recusa da organização/instituição igualitária e livre da direcção política presente e para a reprodução de formas que perpetuam a hierarquia classista e as formas de divisão do trabalho político ". Ora, meu caro, quem está disposto a assumir um trabalho ciclópico de tal envergadura, que Castoriadis tentou construir com as dificuldades por todos conhecidas? Que mobilização de recursos teóricos e múltiplas capacidades próprias e plurais isso não pode deixar de suscitar? Por exemplo, a história relacional do Comunismo e do Anarquismo: como é possivel assistirmos a uma ocultação tão implacável da verdade histórica concreta? Victor Serge aponta:" Até à Revolução de 1917 e mesmo depois, por um certo espaço de tempo,só os anarquistas se intitulavam comunistas e claramente anti-estatistas. Nunca os propagandistas oficiais do Socialismo se recordavam das passagens de Marx e Engels que se referiam à nocividade e à necessidade do desaparecimento do Estado. Lénine, Zinoviev, Boukharine, proclamando incompatíveis as ideias de Comunismo e do Estado, retomaram a tradição revolucionária do Socialismo que, única, antes do imenso sucesso da sua propaganda, continuava as das diversas tendências anarquistas ". E isto é, tão-só, meus caros, um ponto mínimo de um processo crítico que não se pode adiar nem esquematizar de ânimo leve. Niet