01/03/12

Traidores e traídos

Todos os tradutores cometem erros, têm as suas distracções ou sucumbem à pulsão obscura, ainda que felizmente intermitente, do estado puro daquilo a que, um dia, em conversa, ouvi o meu amigo e confrade José Bento chamar a "vontade de asneirar". Nunca pretendi ser excepção à regra e, no que possam ter de menos injustificado, as minhas traduções muito devem a certas observações de revisores, editores e/ou amigos que me permitiram, antes da publicação, beneficiar de correcções ou sugestões preciosas. À falta desta leitura prévia de outra pessoa que não seja o próprio tradutor, é fatal que este deixe, aqui ou ali, aqui e ali, subsistir no seu trabalho traições supérfluas — que as há também permanentes e consubstanciais, requeridas pela própria fidelidade ao exercício do jogo metamórfico de linguagem aqui em jogo — e escreva "palavra" em vez de "mundo" por ter lido "word" onde estava "world" — como já me aconteceu ao verter um parágrafo de Steiner —, ou de outro modo reitere a presença do diabo nos pormenores.

Mas, hoje, parece ter-se instalado em parte do mundo da edição uma prática funesta, tanto para esses "consumidores", ou co-autores e co-tradutores finais que são os leitores, como para os tradutores "originais" ou propriamente ditos, os quais, por semelhante caminho, além de traírem forçosamente e sempre, numa medida ou noutra, para o melhor e para o pior, devido à natureza impossível da sua profissão, se vêem também traídos por uma espécie de editing que, a coberto da revisão indispensável, certos editores autorizam, senão promovem, sem se darem ao menos ao trabalho de ouvir o tradutor inicial.

Por conseguinte, este último terá de fazer, doravante, saber que, quando, numa tradução por ele assinada, se fala de um doente em "estado de vegetação" em vez de em "estado vegetativo" (ou em vez de um doente "que vegeta"), o leitor deverá creditar à conversão da revisão em editing a inovação da fórmula; idem, no caso em que a "alma", vertendo soul, se transforma em "vida mental"; ou quando, substituindo a opção do tradutor de importar Monsieur ou Madame (ou as abreviaturas M. e Mme.) como forma de tratamento, o resultado é o leitor ver-se confrontado com alguém que trata um(a) professor(a) por "Senhor(a) X"…

Podia multiplicar os exemplos ad libitum (atenção, eu não escrevi: "libidinosamente", mas não é certo que não fosse sob essa forma que o ad libitum se veria editado segundo os critérios de uma parte da aguerrida vanguarda dos novos critérios de edição), mas, para bom entendedor… Desculpem-me, pois, por uma vez, este exercício pro domo, um pouco à laia de pródromo de uma questão a que talvez ainda tenha de voltar. Tanto mais que há outros aspectos menos triviais da "tarefa do tradutor", que se referem aos critérios da sua fidelidade e das suas traições, e que levantam questões filosóficas e políticas cujo alcance cobre um horizonte demasiado amplo para o podermos confiar aos profissionais — aos profissionais da filosofia, da literatura ou da tradução, quero eu dizer, pois que, dos da política, o melhor será que, com a máxima prontidão possível, e para garantirmos uma das condições necessárias da democracia, deles nos vamos livrando.

3 comentários:

Ricardo Viana de Lima disse...

Muito pertinentes estas considerações, tanto mais que se relativamente a tradutores conceituados - como é o caso do A do post - há sempre a possibilidade de admitir que algo de anormal se passou quando o leitor detecta uma das situações referidas, relativamente a outros nomes pouco ou nada conhecidos fora do meio, a tentação do leitor é sempre a de imputar ao tradutor a responsabilidade pelas asneiras que detecta e apenas subsidiariamente à editora por as ter deixado passar.
Mas devo dizer ao Serras Pereira, falando num ramo que não é o seu, que onde se notam as maiores dificuldades é na ficção. Há textos hoje traduzidos do original - estou a falar de grandes nomes da literatura - que são incomparavelmente piores, literariamente falando, do que os textos de 50 ou mais anos traduzidos a partir do francês ou do inglês.
Um jovem leitor que se inicia agora nessa literatura a partir de algumas novas traduções fica muitas vezes com uma ideia deformada do valor literário do A traduzido.

samuel disse...

... e por vezes... há a pura ignorância.

Sou um dos mal-aventurados que teve que ouvir um canal de televisão anunciando os "Tacones lejanos" do Almodóvar... como "Tacões longínquos". E só uma boas horas depois é que alguém, em toda a bendita estação, deu por isso.

joão viegas disse...

A tradução (com o obvio risco de traição que lhe é consubstancial) é o exercicio intelectual mais elevado que se pode conceber.

Logo a seguir à substituição dos jornais televisivos por exercicios obrigatorios de teologia participativa, considero que obrigar todos os cidadãos a traduzir pelo menos uma hora por dia (literatura de preferência, o resto vem por acréscimo), faz parte das raras medidas politicas com um grau de eficacia superior a 98 % para irmos a caminho de um mundo melhor.


Boas