18/09/12

Democracia blasfema


Que responder a isto?

Para Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah libanês, The Innocence of Muslims é o maior insulto de sempre aos muçulmanos. Pior do que as caricaturas do profeta Maomé, pior do que os Versículos Satânicos de Salman Rushdie. Disse-o num apelo ao protesto nos dias que aí vêm — e muitos concordarão com ele, a julgar pelas proporções que a indignação com o filme está a tomar pelo mundo muçulmano.
(…)
Numa rara aparição em público desde a guerra contra Israel de 2006, o líder do Hezbollah exigiu que os sites em que os excertos do filme estão disponíveis sejam bloqueados e que os insultos a qualquer religião ou profeta sejam criminalizados internacionalmente. “O mundo deve saber que a nossa raiva não é passageira, é o início de um movimento sério que vai continuar para defender o Profeta de Deus.” Perante ele, a multidão gritava “América, escuta-nos, não insultes o nosso profeta!”

E que respnder às tentativas da administração americana de um deal que assegure que a vontade do Hezbollah seja feita, ou às declarações das autoridades alemãs, garantindo que recorrerão a todos os meios legais para impedir a exibição do filme em Berlim, propósito ao que parece de um grupo nacionalista local?

A única resposta democraticamente consistente é, em primeiro lugar, que, independentemente do juízo que façamos do filme ou dos grupos que anunciam o propósito de o exibir nas salas de espectáculos, a blasfémia aqui visada é a do próprio exercício da liberdade, pois que esta, nos termos em que Rosa Luxemburgo a fez valer contra o bolchevismo de Lenine e Trotski, é sempre a liberdade de quem pensa de outro modo. E, em segundo lugar, que, nas regiões em que essa liberdade se encontra constitucionalmente garantida e foi duramente conquistada por lutas seculares (em mais do que um sentido do termo), não podemos, os que queremos a manutenção, reforço e extensão dessa liberdade, fazer outra coisa que não seja combater sem tréguas os governantes que se proponham suspender a sua vigência ou contorná-la através deste ou daquele expediente, em nome da estabilidade, da harmonia no concerto das nações, do culto do deus-menino ou do diabo mais velho.

Do mesmo modo e pelas mesmas razões, àqueles que a proíbem aos seus governados, e tentam impor aos outros governos a obediência à mesma lei, a resposta não pode ser outra, salvo que se torna ainda mais simples. Porque a criminalização da blasfémia é o primeiro passo para a sacralização da hierarquia e dos seus princípios, para a criminalização do livre exame e da própria ideia de democracia - blasfema, sem dúvida, aos olhos dos apóstolos da regulação religiosa da política, na medida em que substitui a vontade humana e destitui a autoridade da divina na instituição da cidade e na decisão da(s) sua(s) lei(s).



8 comentários:

Gil H. disse...

Obrigado por este post; já tardava, na blogosfera à esquerda, uma condenação da resposta fundamentalista generalizada a um vídeo não menos patético. Imagine-se se xs feministas se amotinassem e assassinassem embaixadores inocentes de Itália cada vez que o Papa diz algo ofensivo sobre o papel das mulheres!

joão viegas disse...

Ola, caro Miguel,

Aprontava-me para subscrever o seu post nos segintes termos :

"Que responder a isto (Para Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah libanês, The Innocence of Muslims é o maior insulto de sempre aos muçulmanos)?"

Ora bem a resposta acertada é : "Errado, o maior insulto de sempre aos muçulmanos é este que se segue : ... [preencher com deleite]".

Mas ja agora, pensando melhor, julgo dever emitir uma reserva. Com efeito, acho temerario ser assim categorico sem ter visto o filme (escapou-me alguma coisa ou ninguém o viu ainda ?) pois afinal nada nos garante que ele não é, de facto, injurioso. Porquê excluir à partida que seja o caso ?

E' relativamente clara, pelo menos para mim, a fronteira entre a injuria (que se dirije a pessoas e é penalizada, e bem a meu ver) e a expressão de opiniões, crenças ou ideias, ainda que de forma humorista ou satirica (que é e deve ser completamente livre).

Tão clara que não vejo necessidade de transformar o assunto numa guerra santa (obviamente, vejo ainda menos justificação para a gritaria estupida e claramente instrumentalizada por parte daqueles que se dizem ofendidos).

No fundo, a resposta sensata e ponderada devia ser : acha-se injuriado ? Então acione os mecanismos legais, uma vez que a injuria é proibida em todos os paises.

O resto é falacia e, temo, um passo ja dentro da armadilha. Armadilha que neste caso, como quase sempre, resulta muito provavelmente de uma aliança tacita entre extremos opostos.

E, como sabemos, ninguém se opõe tão absolutamente como dois bandos de imbecis, o que resulta normalmente de eles serem fonte de inspiração uns para os outros...

Boas

Miguel Madeira disse...

(a comparação não é totalmente exacta, já que o Papa não vive em Itália, embora viva muito lá ao perto)

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,

é verdade que não vi o filme - ainda que os breves sketches que por aí circulam nada augurem de contrário à hipótese que V. aventa.
Mas, a meu ver, a questão mantém-se. A acusação é a de que o file insulta não este ou aquele, mas o Profeta enquanto símbolo ou personificação do islão. Ora bem, é provável que o faça em termos grosseiros, injustos, cheios de distorções e aleivosias. O que, se nos aconselha a desqualificá-lo e a desaconselhá-lo, não deve levar-nos a reclamar a sua proibição. No poema do Guardador de Rebanhos que cito num post escrito a seguir a este, Alberto Caeiro injuria nada menos do que o Espírito Santo, uma das pessoas divinas dos cristãos. Dir-me-á V. que o faz com arte, ao contrário do que tudo leva a crer que seja o caso do filme. Mas não me parece que uma censura capaz de invocar critérios estéticos — exercida, por exemplo, pelo Carlos Vidal — seja menos liberticida do que a outra - como a exercida, por exemplo, pelo Renato Teixeira. E é que, meu caro, incluir no respeito devido aos cidadãos, assegurando-lhe protecção legal, o respeito pelas suas ideias só pode conduzir aos resultados que contra os quais o meu post procura alertar.

Com um abraço

msp

joão viegas disse...

Caro Miguel,

Corrijo ja o equivoco.

Quando falo em injurias dirigidas contra "pessoas", falo apenas em pessoas de carne e osso (e talvez também no Carlos Vidal), ou seja com personalidade juridica, e nunca no espirito santo, na virgem maria ou no profeta mahomé...

A protecção da liberdade de expressão implica, necessariamente, que ninguém possa ter legitimidade para queixar-se de ser injuriado por quem esta, apenas, a criticar ideias, ou a debater crenças (mesmo que se trate de crenças na realidade ou na sacralização de determinadas figuras).

As pessoas podem no entanto ser injuriadas por alguém que, aparentando criticar ideias ou debater crenças, na realidade profere palavras que visam exclusivamente ferir ou diminuir (ex : "eu sou da opinião que os xxxxxx deviam ser todos mortos"). Esta realidade, infelizmente, é incontestavel. Até porque as palavras não servem apenas (nem talvez mesmo principalmente) para expressar ideias...

A questão da blasfémia reduz-se sem dificuldade à dicotomia que exponho acima e, geralmente, falar na blasfémia como se se tratasse de uma realidade intermédia entre as duas categorias (injurias/expressão de ideias) apenas introduz uma complicação desnecessaria.

Concedo que é por vezes melindroso distinguir, na pratica, o que é expressão de ideias, ou de crenças, ou ainda expressão artistica, e o que é ofensa injuriosa.

Mas para isso existem os tribunais e, neste particular, até não funcionam mal de todo...

Portanto, em conclusão, ninguém pode pode pretender proibir um livro, ou um filme, ou uma obra de arte, a pretexto de que expressa ideias que ferem susceptibilidades, ou que seriam sacrilégios. Isto porque as ideias combatem-se com ideias, como v. diz muito bem.

Mas, em meu entender, devemos sempre preservar espaço para quem se queixa, com fundamento, de que palavras tenham sido proferidas ou impressas, não no sentido de expôr ou debater ideias, crenças ou opiniões, mas com o proposito assumido de ferir, discriminar ou vexar pessoas, em violação da obrigação geral que temos de respeitar a dignidade das mesmas.

E ja agora, por falar nisso, armar-se em procurador de uma divindade pretensamente ofendida não é, também, uma forma de blasfémia ?

Forte abraço.

Miguel Serras Pereira disse...

Bela resposta, João. Sublinho, em particular, a sua interrogação demolidora: "armar-se em procurador de uma divindade pretensamente ofendida não é, também, uma forma de blasfémia ?" E retribuo vigorosamente o seu abraço, claro está

msp

Niet disse...

Hello; MS. Pereira e J. Viegas, meus caros: Acho que as vossas ontológicas interpretações iludem e esquecem um factor(es) capital: o contexto actual social-histórico que baliza as relações políticas( e militares) entre o Ocidente( onde se implicam os efeitos tácticos combinatórios da recta final das presidenciais USA) e as potências emergentes do Próximo Oriente, sobretudo o Irão, que apoia e sustenta a ditadura de Balchar El-Assad, e onde o conflito religioso sunita/chiita, G. Kepel fala mesmo de " ódio ao chiita ", é decisivo e incontornável na cena regional das Primaveras árabes. Se o anti-semitismo foi caracterizado por A. Bebel como o " socialismo dos loucos ", o que dizer sobre a islamofobia que as direitas americano-israelita agora coligadas difundem, implicam e provocam num festim de ódio e perfidia mortífero? Salut! Niet

joão viegas disse...

Salut, caro Niet,

Concordo com o que v. diz. A vigilância tem de ser mantida dos dois lados, até porque, como escrevi acima, "ninguém se opõe tão absolutamente como dois bandos de imbecis, o que resulta normalmente de eles serem fonte de inspiração uns para os outros...".

Nessa perspectiva, a minha opinião é que devemos precaver-nos contra as tentativas de instrumentalização, venham elas de onde vierem.

Normalmente, isto passa por sabermos permanecer firmes nos principios. A tolerância não tem outro remédio senão conciliar liberdade de expressão e combate à intolerância.

Não vejo como abdicar de um dos dois. Muito menos em nome do outro...

Abraços