28/11/12

O tabu da violência


Salazar ficcionou a cómoda brandura dos nossos costumes. Franco, camarada ibérico de barbárie, resumiu-nos como uma nação de cobardes. Governo após governo apostaram no comodismo que nos levaria a preferir o resmungo clandestino às dores e ao sangue do confronto; ideia arriscada, face a um povo que tem por tradição enfrentar touros de mãos nuas. 
 No dia 14, a aposta começou a esgarçar-se sob uma chuva de fogo, pedras e fúria. A resposta policial foi vista pelo bom senso do costume como inevitável, exemplar até. Sempre ordeiras, as almas consensuais tranquilizaram-nos-nos: trata-se apenas de “uma dúzia” de desordeiros; malta sombria, estranha, talvez estrangeira, anarquistas, quiçá criminosos comuns, de cadastro e tudo. Haja obediência, respeitinho. O monopólio estatal da violência é coisa a venerar, pilar da ponte que vai de quem manda a quem obedece. 
E quando os violentos começarem a ser dezenas, milhares? E se andar por aí um rastilho subterrâneo a arder, rumo ao coração de multidões, atiçado por cada novo sopro de insensibilidade, de “ai aguentas”, de desvergonha autoritária? 
Até Gandhi cartografou as fronteiras entre a cobardia e a autodefesa: “arriscaria mil vezes a violência antes de arriscar a castração de uma raça.” E a Constituição garante-nos o direito “de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.” Se esta se couraça e arma até aos dentes com a fúria cega de feras fardadas e bem treinadas, resta o quê?



4 comentários:

Libertario disse...

Não é com manifestações como as como temos visto, nem no contexto social em que vivemos, que alguém pode esperar tomar um mítico Palácio de Inverno ou, mais modestamente, invadir o ex-convento de S. Bento, muito menos pela íngreme escadaria principal, quando existem ruas de acesso mais cómodas...
Gritar “Juntem-se a nós” dirigido a um corpo de polícia especializado na repressão de manifestações é um processo mimético dos sonhos soviéticos de alguns, que nem sequer compreendem que não estão mais perante soldados mobilizados à força e fartos da guerra. Estas são as ilusões ingénuas de algumas vanguardas.

As manifestações esgotam-se ao fim de uma horas ante uma escadaria inacessível e perante uma força policial previsivelmente preparada e equipada para enfrentar este tipo de situações por períodos longos mesmo numa aparente inferioridade numérica. Aparente porque o número daqueles que pareciam decididos a enfrentar um confronto aberto não tem sido certamente superior ao da força de choque da polícia. Uma guerra de posições - é preciso recordar que a guerra de trincheiras acabou em 1918 - termina pela derrota e cansaço do grupo mais fraco, menos preparado, que não consegue sequer repor as suas forças. E aí ao invés do desafio verbal, ou da pequena provocação sem grandes consequências, o que poderia ser uma demonstração de força dos manifestantes era impedir a actuação dos agentes policiais à paisana, e seus provocadores, já que agem isolados, ou numa posição de inferioridade, no meio da multidão sendo por isso viável os manifestantes impedirem activamente as prisões. Para levar à letra o "direito constitucional" referido.

Anónimo disse...


No plano das questões – como direi? – “técnicas e tácticas”, parecem-me ser de considerar os cuidados colocados pelo Libertário.

Já, no plano dos princípios, e parece-me residir aí o busílis da questão, subscrevo com mil assinaturas o essencial do que foi escrito pelo Luís Rainha.

nelson anjos

David da Bernarda disse...

Essa do povo que «tem por tradição enfrentar touros de mãos nuas», diga-se para ser mais preciso: uns quantos ribatejanos, tem piada, mas se olharmos para a história somos realmente dados a resmungar pela calada, falar mal por trás e gritar: «agarra-me se não eu mato-o».
Paciência?, fatalismo?, resignação?
É quase um milénio de cristianismo domesticador, séculos de Inquisição, ditadura salazarista e tudo o resto. Todos sabemos que uma vez ou outra a paciência esgota-se e o caldo entorna...
Mas que aguentamos, aguentamos, como diz o outro, afinal a ditadura salazarenta durou quase meio século. Por mais que nos custe, principalmente aos que idealizam este povo de marinheiros ou olham aquelas imagens neo-realistas de homens e mulheres decididas a mudar o mundo.
Bom no século passado tivemos um regicídio, duas meias revoluções (5 de Outubro e 25 de Abril), um atentado Salazar, umas quantas greves decididas, uns putchs, paredes pintadas, muito papel impresso, um barco e um avião desviados, umas quantas bombas. Contabilidade magra para um século de terror e guerras na Europa.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro e bem aparecido Nelson,

é verdade que quem não está disposto à luta de morte, ou, menos solenemente dito, a arriscar a pele pela democracia - no sentido pleno que sabes que reservo à palavra - preza-a muito pouco e não será capaz de a defender o suficiente. Subscrevo, portanto, a tua declaração de princípio, mas com uma reserva: não basta arriscar a pele, ou dar o corpo ao manifesto, para defender a democracia. O que significa que, neste caso, concordo com o Luís, com as recomendações de racionalidade do Libertário, do mesmo modo que com a tua síntese.

Abraço para os três

msp