10/04/13

A Islândia, hoje

Há anos que circulam mails e posts no Facebook em que a Islândia é apresentada tal como algumas pessoas viam a Albânia nos anos 70 - como uma espécie de farol para a Humanidade (ou pelo menos para a Europa).

Sobretudo no Facebook é frequente deparar-nos com "gostos" a artigos sobre a Islândia que, vai-se depois ver, foram escritos há anos atrás e referindo situações largamente ultrapassadas.

Assim, como está hoje a Islândia?

Em primeiro lugar, a coligação de esquerda que governa o país vai a caminho de uma derrota esmagadora nas eleições marcadas para 27 de abril: as sondagens dão à Aliança Social-Democrata (o PS local) entre 10 e 15% dos votos (contra 30% nas últimas eleições) e à Esquerda Verde (que pode ser considerado como uma espécie de BE) entre 5 e 10% (contra 21% nas últimas eleições). O primeiro lugar anda a ser disputado entre as duas tradicionais formações da direita: o Partido da Independência (liberal-conservador, que governou o país durante grande parte da sua história, nomeadamente nos anos que levaram à crise financeira) e o Partido Progressista ("centrista" agrário).

E outro assunto que se tem falado de vez em quando - a nova constituição islandesa?

Para esse assunto, é melhor dar a palavra Kristin Vala Ragnarsdottir, que no seu artigo A New Post-Crash Constitution in Iceland? (via Al Jazeera), dá uma explicação de como está o processo:
This bleak outlook was, however, tempered by the new left-wing government’s decision to embark on a constitution-writing process, which satisfied a demand of the “pots-and-pans” revolution and initiated an important process of envisioning a new direction for Iceland.

The current constitution[2] of Iceland was adopted from the Kingdom of Denmark in 1944, with the promise to revise it shortly. The constitution has long been seen as unfit for a parliamentary democracy because it is, to a large extent, built on the Royal Danish constitution.

The rewriting process started in October 2010, with the establishment of a National Assembly of 1,000 randomly selected individuals (with some tweaking to ensure the right gender and age distribution). The aim of this gathering was to open discussion of the values and pillars upon which to build the new Iceland. The assembly, in turn, submitted its findings to a Constitutional Committee comprised of seven people from different political persuasions and headed by Gudrun Petursdottir, director of the Institute of Sustainable Development at the University of Iceland. A strong message was duly delivered the following year: the public should have ownership of the natural resources and the electoral process should be more transparent.[3]

The problems started with the next, crucial step in the constitution-writing process: election to the Constitutional Assembly of the 25 people that would actually draft the document. There were 523 candidates, including myself, and a new electoral methodology was used: single transferable vote (STV),[4] which had previously been tested in Ireland, Scotland, and Australia. Yet media coverage was scant, limiting campaigns to Facebook and Twitter. Voter turnout was a disappointingly low 30 percent.

More discouraging was the behavior of the formerly ruling right-wing parties after the results were declared. The Independence and Progressive Parties have been able to count around 60 percent of combined votes for parliament for the past 60 years. The Independence Party led the Icelandic government for 16 years to state collapse and, with the Progressives, they were responsible for selling Iceland’s three banks, which paved the way for superheating the economy. These two parties have a stake in the constitution remaining as it is due to their connection with the dubious privatization of the banks, and links to the former banking leadership as well as to powerful fishing and farming consortiums, which also own much of the media. People connected with the Independence Party filed a technical court complaint about the voting procedures. The High Court, whose judges had been appointed primarily by the Independence and Progressive Parties in their reign prior to the collapse, deemed the Constitutional Parliament elections null and void, demonstrating the power of vested interest, nepotism, and corruption in Iceland. The parliament, led by the two left-wing parties, responded by appointing the 25 elected to the Constitutional Assembly to the Constitutional Council.

The Draft Constitution

Could the draft constitution help wrench back some of the power to the people? After four months, the Council proposed a new draft constitution[5] that built on earlier proposals for public ownership of natural resources. It defines specifically what the natural resources of Iceland are—marine stocks, resources of the ocean and its floor, water and water-harnessing rights, the rights to geothermal energy and mining—and stipulates that their use must be in accordance with sustainable development principles using a permit system. The rights of nature and coming generations to healthy ecosystems are also enshrined in a proposed law for the first time.

Regarding transparency, the new draft constitution has stronger checks and balances between the three branches of government and more clearly defined accountability for politicians should they make the sort of bad decisions that led to the collapse. The draft constitution also has important articles concerning the rights to information, freedom of the media, appointment to public office, and the independence of key state agencies. (...)

But despite the pressure, the two right-wing political parties appear to have regained their influence and are predicted to gain a majority again in upcoming elections in 2013. Whether they can derail the draft constitution remains to be seen. In a referendum in October 2012 the majority of those who voted (49 percent) wanted the proposal for the constitution to be the grounding for a new constitution with natural resource ownership devolved to the people. Since much resistance has come from the Conservative and Progressive Parties, the likelihood of a new constitution being accepted by this parliament is increasing. The constitution will have to be voted for in two consecutive parliaments. The government has promised a national referendum on the constitution bill and hopefully it will take place at the parliamentary elections on April 27, 2013. In the meantime, the tepid pace of the national recovery continues. Unemployment is now at 5.6 percent, although this figure is skewed by the fact that many have left Iceland and gone to work in Norway and other countries. A more sustainable political system remains a possibility, but it may require more banging of pots and pans to bring it about.

A grande questão que, a meu ver, interessa discutir acerca da experiência islandesa é o mais que provável regresso em força da direita ao poder (e durante vários meses, o "camisola amarela" nas sondagens era mesmo o partido mais comprometido com as politicas pré-crise). Qual será a causa disso?

Como bom esquerdista, a minha reação instintiva é dzer que é culpa da esquerda islandesa ter traído os seus eleitores - afinal, foi este governo supostamente de esquerda que negociou acordos gravosos com os representantes do gande capital multinacional, que só não passaram devido à resistência popular, logo para que é que as pessoas haveriam de votar neles?

Mas é provável que esta ideia ("a chamada esquerda vai perder porque não foi verdadeiramente de esquerda") seja simplesmente misturar os desejos com a realidade...

Diga-se que, durante esta legislatura, houve deputados da Esquerda Verde que abandonaram o partido e criaram novos, mas estes novos partidos - politicamente muito ambiguos - também não tiveram sucesso (um nem concorreu, e outro anda pelos zero e tal %).

Será boa ideia, quando surgirem os resultados, seguir o conselho do nosso leitor Libertário, e ver também a evolução das abstenções, brancos e nulos - entre outras coisas, para ver se a queda da esquerda foi porque os eleitores deslocaram-se para a direita ou se foi, antes, muitos antigos eleitores da esquerda que ficaram em casa (pensado "são todos iguais").

Outro factor que provavelmente está a influenciar é a questão da UE; o governo atual tem feito negociações para a adesão, mas parece que a população não está entusiasmada.

3 comentários:

Paulo Marques disse...

A razão é que o povo é estúpido. É o mal da democracia, vai ter que se esperar umas centenas de anos até se chegar a algum lado.

Libertário disse...

«Nos conflitos sociais, é pois um grupo potencialmente unificado que irá enfrentar as organizações dos trabalhadores, sempre divididos pela compartimentação nacional, política e ideológica. Dada a sua competência exclusivamente nacional, os governos só em fraca medida fazem ofício de mediadores. Quanto aos órgãos internacionais ou supranacionais, as contradições de interesses entre os governos que aí estão representados e a falta de poder condenam-nos a uma eficácia limitada. Nos domínios em que a sua intervenção é possível, depara-se-lhes a indústria e o capital, que graças às suas organizações comuns ou às suas condições de acção idênticas, têm maiores hipóteses de impor a sua vontade. Com efeito, nenhum movimento sindical comunitário exerce um contrapeso… Graças à sua estrutura transnacional, as grandes empresas (que tenham a forma de uma sociedade comercial europeia ou qualquer outro estatuto consolidam mesmo individualmente a sua posição de força relativamente aos assalariados e às suas organizações.»

Consequências duma União Económica e Monetária, Heinz Kuby, 1972

Está tudo dito neste pequeno artigo de 1972, curiosamente publicado em Portugal na época...

Niet disse...

Este breve apontamento-Flash revelado pelo Libertário tem uma clarividência assustadora e maravilhosa. Ainda por cima data de 1972, no rescaldo do abrupto fim do ciclo mais fatástco da economia mundial," Os trinta anos de ouro ". Michel Rocard, no seu livro de Anti-Memórias,não se afasta do parágrafo de Heinz Kuby, e o seu texto data de 2008,atenção, 36 anos depois...Grande descoberta do intrépido Libertário,poranto, sem dúvida. Rocard sublinha:" Não se deve esquecer que a gigantesca construção europeia tem por cimento essencial a livre-troca,e que a livre-troca não precisa, na verdade, da existência de Estado para nada, tão-só um pouco de policia comercial. Existiu, pois, uma contradição evidente entre a esperança de ver emergir uma possante federação,potência pública de direito internacional,intervindo nos negócios do mundo em pé de igualdade com a Rússia, os Estados Unidos, a China, etc, - e face a esses países - e a preocupação de fazer funcionar o grande Mercado Único com o menos possível de administração, de regulamentação pública e de subvenções. Ora, nós conseguimos pôr a funcionar o nosso Mercado Único.(...) a ausência de uma condução/pilotagem macro-económica comum na Zona Euro coloca-a numa situação de fragilidade.(...)as instituições e as competências definidas pelos sucessivos tratados jamais colocaram, quer a Comunidade quer a União, numa situação de poder fazer funcionar os instrumentos que tivessem uma real capacidade integradora. Assim, não existe imposto europeu.E o orçamento da União atinge tão-só 1 por cento do produto bruto da dita.Ficamos, por conseguinte agarrados numa escala do irrisório, e o uso de tais meios de forma nenhuma consegue pesar suficientemente para provocar um movimento integrador cumulativo ". Salut! Niet