Exprimindo e fundamentando a justificada preocupação que devemos assumir quando, como hoje, nos desconcerta que "contra tanta indignação haja tantos elementos capazes de conduzi-la à mais perfeita impotência política", o Passa Palavra acaba de publicar uma análise, assinada pelo seu colectivo, intitulada "Protestos virtuais e impotência política", cuja leitura integral só posso recomendar aos frequentadores deste blogue. Retomo a seguir, quase sem alterações,as observações que deixei na caixa de comentários do artigo.
Considero que se trata de um texto muito importante e que, nas grandes linhas, aprovo sem hesitar. No entanto, parece-me menos feliz na apreciação exclusivamente negativa que faz do termo “cidadãos” tomando-o como expressão de individualismo e privatização. Permitam-me, pois, que passe a tentar esclarecer as minhas razões.
1. O “cidadão” é uma instituição social e colectiva por excelência, e, nesse sentido, exprime que o indivíduo socializa e politiza ou retoma explícita e criticamente, tornando-a uma questão comum, a sua socialização de partida e as condições sociais de existência que partilha com outros. Mais ainda: ao afirmar-se como cidadão activo reivindica participar em pé de igualdade no governo dos assuntos e problemas colectivos, e começa a afirmar-se como governante, ou a reivindicar o exercício do poder político pelos governados como condição da sua legitimidade. A cidadania activa – potencialmente governante – é, pois, a recusa da condição hierárquica de súbdito, pressupõe a acção comum, concebe e pratica a política como liberdade e responsabilidade não-profissional e igualitária de todos, rejeita a especialização classista dos representantes que a tornam prerrogativa de uns quantos sobre a instauração da passividade geral.
2. Assim entendida, a cidadania não ignora, mas levanta e põe na ordem do dia a questão das classes e da sua abolição. É, por definição, anti-classista. A igualdade e a participação igualitária dos cidadãos no exercício do poder é inseparável da recusa da hierarquia entre governantes e governados, proprietários e proletários, gestores e geridos, e assim por diante. A conquista da cidadania activa e plena implica a destruição da sociedade de classes, da sua divisão política do trabalho e da sua divisão do trabalho político.
3. Por tudo isto, parece-me que, em vez de rejeitada como expressão ou sintoma de “individualismo” ou de “privatização”, a reivindicação da cidadania governante deve ser assumida e adoptada como aspecto necessário da democratização anticapitalista que este texto nos propõe como tarefa. É de uma sociedade de classes e contra a condição de classe que, no actual regime de relações de forças, nos define como expropriados — enquanto "assalariados", "trabalhadores precários", "geridos", "explorados" ou "governados" — que partimos, mas terá de ser como cidadãos e iguais, e já não como classe ou membros de uma classe, que nos auto-organizaremos, se quisermos ser nós a governar-nos. Ou, por outras palavras, é transformando as condições de classe que nos fazem dominados que, como cidadãos governantes, sacudimos a dominação e nos libertamos.
03/04/13
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Não é possível que este magnifico e profundo texto do MS Pereira fique sem rede. Nós bem sabemos que os novos " doutrinários " lisboetas se rogam aos pés dos Jameson,Taylors e Cia dos terriveis e equivocos tempos que correm... Por nós, para combater as novas seduções dos vendedores de ilusões, sublinhamos a clareza e subversão das proposições de C. Castoriadis, insertas numa grande entrevista de 1977, coligida no volume " Uma sociedade à deriva ".
" Qual é a raíz do conflito social no regime actual,para além da simples oposição de interesses? A contradição fundamental da sociedade capitalista- quer seja capitalista burocrática fragmentada, como no Ocidente, quer seja capitalista burocrática total e totalitária,como existia no Leste ou hoje na China, Coreia do Norte, por exemplo, nos países abusivamente chamados socialistas- é imanente à própria organização desta sociedade; à divisão entre dirigentes e executantes. Trata-se de uma divisão que implica a exclusão das pessoas da sua própria vida, individual e colectiva. Falo de divisão entre dirigentes e executantes, e não da velha oposição da filosofia política entre dirigentes e dirigidos. É possível ser-se dirigido, não é possível ser-se puramente executante. Ora o regime tenta reduzir as pessoas a puros executantes - é obrigado a fazê-lo - exclui-las da direcção das suas próprias actividades; e ao mesmo tempo, não poderia sobreviver se conseguisse realizar plenamente esse fim, impôr às pessoas uma passividade total. Vemo-lo claramente a partir do exemplo da organização do trabalho na empresa contemporânea). (...) Não haverá transformação da sociedade sem actividade política explicita e elucidada. A actividade política é necessariamente colectiva.Precisamos, portanto,de uma colectividade politica que lute e aja tendo em vista a transformação da sociedade, a instauração de uma sociedade autónoma.(...) o projecto da transformação radical da sociedade, revela-se nisto mesmo, no facto de encarnar,ainda que de modo parcial, fragmentário,balbuciante, estas novas significações políticas centrais: autogestão, auto-organização, auto-governo, auto-instituição . ( ...) Esta organização colectiva terá uma série de tarefas a desempenhar: difundir e fazer conhecer o verdadeiro conteúdo das lutas e dos movimentos que se desenrolam, discutir a sua significação, as suas eventuais fraquezas, as razões do seu sucesso ou do seu fracasso, apreender a sua exemplaridade. A sua universalidade não lhe chegará da posse de uma " teoria verdadeira " definida de uma vez por todas- mas do facto de ela se esforçar por explicitar o que está já presente, de modo implicito, como universal imanente na actividade das pessoas, como significação dessa actividade que supera as circunstâncias particulares em que encarnou ". Salut! Niet
Niet,
obrigado pelo teu comentário, apesar de demasiado lisonjeiro, tendo em conta o que escrevi. Mas a citação do Castoriadis - ou melhor, o texto da entrevista que referes -, seria bom que fossem mais debatidos e divulgados.
Saúde e liberdade
msp
MS.Pereira: Como sabes, de vez em quando acerto. Aquelas teses que unifiquei do" Corneille " sobre o que é ser chefe,dirigente e revolucionário, antes e depois da revolução encheram-me o coração, acredita. O pior é que não gravo os comentáriosinhos...E isso obriga-me a ter que ler e interpretar sem cessar. Aliàs,para comentar(inho) qualquer coisinha, cada vez levo mais tempo.E depois, há que evitar os alçapões do marxismo " oficial "...Tenho vários volumes do Dewey, do Putnam e do Lukacs para ler...Salut! Niet
muito obrigado aos dois, pela indicação da entrevista e também pela reflexão em torno do que é o cidadão.
um abraço
Enviar um comentário