Em tempos de neurastenia em que os
apóstolos do there is no alternative parecem próximos de conseguir
enfiar-nos o colete de forças do come-e-cala, livros como O socialismo
selvagem são uma verdadeira lufada de ar fresco. Livros que lembram de
forma inteligente, bem documentada e não resignada, que o poder verdadeiro, o
poder autêntico, o poder real, apenas jaz provisoriamente nas mãos das
autoridades estabelecidas, que o pervertem para servir interesses refastelados
nas poltronas do imobilismo. O verdadeiro poder não está no tronco prometido a
uma morte grotesca. Está na seiva. Está na vida. Assim imagino que tenha soado
o Elogio da loucura de Erasmo para os seus leitores entorpecidos no
sórdido comércio da palavra divina transformada em ritual oco e vazio. Da mesma
forma, o empolgante ensaio de Charles Reeve (pseudónimo do nosso querido Jorge
Valadas) vem lembrar-nos que o socialismo não foi cunhado pelos Doutores da
Lei, nem concebido em forma estandardizada, pronto a ser enlatado... ou
engavetado.
Tout
ça n’empêche pas Nicolas
Qu’la
Commune n’est pas morte !
Há quem se borre de medo com a perspectiva
de ver o poder cair na rua. Mas, felizmente, há também quem tenha convicções genuinamente
democráticas e lembre que a soberania nasce na rua, a quem cabe restitui-la
regularmente. Os primeiros costumam pedir socorro a generais peritos em
aquartelar a turba nas fortalezas do possível. Os segundos procuram antes
desarmar os terratenentes do conformismo e retardar o momento em que a plebe
regressará do Aventino. Estes últimos –
e Charles Reeve/Jorge Valadas é incontestávelmente um deles – sabem que a efervescência do poder
revolucionário, indisciplinado, indomável, selvagem, é o fabuloso
laboratório do amanhã, porque sabe pintá-lo com as cores vivas e contrastadas
do impossível. Percorrendo a história dos movimentos populares, o livro mostra
com inteligência e rigor como isso se verificou sempre : em 1789-1795, e outra
vez em 1871, em França, em 1917-8 na Rússia, em 1918-21 na Alemanha, em 1936 em
Espanha, em 1968 novamente em França, em 1974-75 em Portugal, em 1994-96 no
México, etc. Sem nunca ocultar que, em cada uma dessas occorrências, muito cedo
se manifestaram as forças reaccionárias que acabaram por abafar ou desvirtuar o
movimento.
Se o livro se contentasse com
expor essa História, já seria o suficiente para recomendar acaloradamente a sua
leitura, no panorama actual de demissão intelectual e de reverência generalizada
diante do arcanjo engravatado que combate, supostamente para o nosso bem, o
mostrengo da percentagem do défice. Mas o livro faz muito mais. Demonstra que
essa História é actual, hoje mais do que nunca. Atento aos movimentos populares
que, do Ocupy Wall Street ao Nuit debout, passando por outros,
teimam em manter acesa a chama do inconformismo, o autor procura ouvir o que
eles dizem em substância, a maneira como as suas reivindicações, longe de serem
quimeras utópicas, actualizam e elucidam os anseios mais arcaicos e mais
profundos do povo em movimento. Utópicas são as igrejas que nos tentam vender o
céu às postas ! Quando o povo se levanta, nunca é para sonhar, mas para
realizar, para alcançar, para cumprir. Nesse sentido, vale a pena ler com
atenção as páginas dedicadas às reflexões sobre a problemática dos comuns
e sobre a crise da representação política. Sem furtar-se à crítica dos inevitáveis
disparates, que tantas vezes são por onde o sectarismo escolástico consegue
infectar o movimento, Reeve mostra como o pensamento vivo se caracteriza pela
propensão para reanimar concepções antigas, quando não ancestrais, e dar-lhes
uma insuspeitada e inteligente actualidade. Não sei até que ponto há no Socialismo
selvagem uma alusão consciente ao Pensamento selvagem de C. Levi-Strauss,
mas o parentesco parece-me
evidente. Num caso como noutro, vemos
como a espontaneidade criativa do homem em sociedade, nas suas manifestações mais
genuinas, que tantas vezes são consideradas “toscas” pela corja dos instalados,
revela aquilo que ele tem de mais nobre e de mais promissor, que é fatalmente
rebelde à instituição estabelecida.
Um livro que ilustra a célebre
frase de O. Wilde, ou seria de W. de Faulkner, ja não sei, nem interessa : “a
sabedoria é ter sonhos suficientemente grandes para não se perderem de vista
quando os perseguimos”.
Escrito em francês e publicado em
França em 2018 (por L’échappée), o livro acaba de ser publicado em
Portugal pela Antígona (2019), numa tradução de Luís Leitão.
1 comentários:
Boa tarde. Um bom aperitivo para ler esta obra que pode ajudar a ler,a nossa realidade o olhar o futuro com a inquietação necessária. JP
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