As opções políticas tomadas ao longo das últimas décadas e, com maior gravidade, depois da crise de 2008, levaram à degradação dos serviços públicos. O Estado Português, apesar da existência da Geringonça entre 2015 e 2019, optou por desinvestir nos serviços públicos. O caso da saúde é um dos mais chocantes, mas se falarmos de educação ou de habitação vamos chegar a conclusões semelhantes.
A crise que estamos a viver tem sido motivo para uma mobilização colectiva com o objectivo de minimizar as condições de propagação da pandemia. A declaração do estado de emergência pelo Presidente da República - habilmente doseada e condicionada pelo primeiro-ministro, diga-se - e uma resposta quase geral aos apelos para um auto-confinamento de cada família nas suas casas, paralisaram o país. Nas principais cidades não há vida urbana e o movimento tradicional dos cidadãos pura e simplesmente desapareceu. Não será por falta de resposta dos portugueses que a contenção do coronavirus deixará de acontecer. Futuras medidas de prolongamento e eventual agravamento das condições da emergência não serão responsabilidade dos portugueses. Não serão alguns casos pontuais de violação das condições de isolamento social que justificarão essas opções políticas.
Há razões mais profundas para que o vírus venha a fazer um número elevado de vitimas. A primeira de todas as razões radica na incapacidade do Serviço Nacional de Saúde. Como me dizia um médico, no início desta semana, o Serviço Nacional de Saúde estava no "osso" no início desta crise.
Todos os portugueses percebem esta realidade. São, no entanto, diferentes as perspectivas dos portugueses relativamente a esta realidade.
Uns acham bem, já que, por outro lado, a medicina privada tem vindo a florescer. Habitualmente os seus seguros de saúde permitem-lhe um acesso facilitado aos melhores especialistas sem terem que "interagir" com o SNS. São aqueles que em cada discussão estão sempre prontos para argumentar: "Nenhum SNS está preparado para uma crise desta dimensão". A realidade interessa pouco para este tipo de argumento. Há respostas diferentes ao nível mundial e no contexto europeu.
Infelizmente para os defensores desta tese não há hospitais de referência entre os privados quando estamos perante pandemias como esta. Tal como não há para tratar com eficácia algumas das doenças mais penalizadoras para a vida humana. Para aqueles que adoecem de forma grave é no SNS que encontram a resposta e a solução para a sua doença. Mesmo os mais poderosos se o SNS não os curar irão morrer. Passam a ser iguais aos outros.
Os outros são os que acham mal a degradação do SNS. Para eles o acesso a um serviço nacional de saúde universal foi um dos maiores progressos sociais de que beneficiaram com o 25 de Abril e a democracia. O esvaziamento progressivo do SNS tem para estes cidadãos um custo terrível nas suas vidas, na sua esperança de vida, no tempo de vida com qualidade de que podem dispor. Neste preciso momento, com a ameaça de uma pandemia devastadora, temem que o SNS ultrapasse o seu limite de resposta e que os médicos tenham que fazer opções semelhantes às que já fazem em Itália e Espanha: a quem desligar dos imprescindíveis equipamentos?
Passados estes primeiros quinze dias de crise já podemos traduzir por dados concretos aquela expressão mais genérica e até rotineira: desinvestir no SNS. O que é que isso quer dizer?
Quer dizer que o SNS não tem os profissionais de saúde - médicos e enfermeiros - em número capaz de responder às necessidades e de assegurar aos utentes a melhor resposta possível. Uma evidência que resulta do desinvestimento do SNS feito ao longo de décadas. Faltam milhares de profissionais no SNS.
Quer dizer que o SNS não tem o número de camas suficientes para doentes do COVID-19 e em particular de camas para doentes que carecem de cuidados intensivos. Portugal era o País da Europa com menor taxa de camas de cuidados intensivos por 100 mil habitantes.
Quer dizer que o SNS não tinha, à data em que a pandemia se declarou, um stock de equipamentos de protecção individual e testes em número capaz de permitir que rapidamente um número mais alargado de cidadãos fossem testados. Ainda agora esperamos que cheguem da China equipamentos de protecção individual, ventiladores e as infraestruturas que irão permitir realizar mais testes estão a ser ultimadas em vários concelhos.
Quer dizer que a privatização dos serviços de apoio aos idosos através das instituições de solidariedade social não garante aos seus utentes, em situações como esta, uma adequada protecção. Apesar da massiva transferência de dinheiros públicos, e dos escandalosos preços praticados que as transformam em eficazes máquinas de segregação social.
Há doentes afectados por doenças graves com necessidade de intervenção cirúrgica em áreas como a cardiologia ou outras que viram as suas listas de espera sofrerem uma dilação no tempo? Quem tem essa experiência e contactou com o SNS foi imediatamente informado que a unidade em questão "está sob um plano de contingência". Há que esperar.
Muitos mais exemplos podem ser dados. À dimensão, que todos gostamos de exaltar, da dedicação dos profissionais, da sua competência, há que somar a ineficácia e a injustiça que resultam da opção política de desinvestimento no SNS e da progressiva privatização da saúde.
Esta pandemia vai acentuar os factores de desigualdade existentes na sociedade portuguesa. Esses factores foram drasticamente acentuados com a crise de 2008. As opções políticas nos tempos da Troika acentuaram essas desigualdades a níveis nunca sentidos desde o 25 de Abril. O governo da Geringonça promoveu uma acção paliativa, que se evitou uma agudização dessas desigualdades, não foi além de uma pálida atenuação dessas desigualdades. Aqui chegados os mais pobres e os remediados são os que mais perdem com a paragem do país e com os efeitos da pandemia.
Quando a crise passar, Portugal será um País mais desigual do que era no início de Março de 2020.
Não há um único sinal que nos permita recusar esta previsão.
Com a mesma política não iremos a lado nenhum. Este é o momento para discutirmos a verdadeira dimensão do vírus que corroí a democracia, que degrada a justiça social, que escraviza milhões de cidadãos e que torna uma vaga químera nunca alcançada a pretensão que muitos alimentam de verem os seus níveis de vida melhorarem, ainda que a longo prazo.
Esse vírus tem um nome: chama-se neoliberalismo. Adquiriu várias formas com a sua capacidade camaleónica de se adaptar a todas as circunstâncias para prosseguir a sua cruzada contra a justiça e a equidade. A mais trágica de todas foi a da Terceira Via, essa quinta-essência da responsabilidade social, do sentido de estado, do compromisso com uma visão estratégica e outras vulgaridades que apenas servem para esconder uma realidade pura e dura: a cedência aos interesses do Mercado à custa da traição dos interesses dos cidadãos.
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