11/06/10

A ideologia do jacarandá

António Barreto não pregou em vão. O sociólogo que se emociona com jacarandás em flor e difunde calúnias toscas (fê-lo, pelo menos, numa crónica miserável sobre Rosa Coutinho) como quem planta manjericos tem, afinal, bons discípulos onde menos se esperaria que saltassem. Inclusive, enterneceu o duro esquerdista Daniel Oliveira. Que, normalmente bélico e belicoso (com as “boas causas”), faz um apelo à uniformização pela amnésia:

“Passados 36 anos, está chegada a hora do País fazer as pazes com a sua memória. E fazer justiça à geração da guerra. Sabendo que a guerra colonial não foi decidida por eles e que eles foram, com os povos das ex-colónias, as suas principais vítimas.”

Não há peça sem actores. E os actores não são todos iguais. Sobretudo quando se trata de uma má peça. Tão má que nem quanto ao título há (haverá) maneira de nos entendermos (uns chamam-lhe “guerra colonial”, outros “guerra do ultramar”, os africanos preferem designá-la como “guerra de libertação”). Digamos que sabemos quem decidiu a guerra e a prolongou até que um golpe de estado lhe pusesse termo, embora estas responsabilidades estejam bem mitigadas e demasiadamente restringidas nos registos históricos e quase apagados da memória colectiva (onde estão os nomes dos generais da “brigada do reumático” que, após o “golpe das Caldas” e após a publicação de “Portugal e o Futuro”, foram apoiar Marcello para que este prolongasse a guerra colonial? onde se registam os promotores e animadores do “Congresso dos Combatentes”, iniciativa de extrema-direita que ajudou a despoletar e politizar o MFA?). Sabemos que, além dos militares profissionais, a grande maioria dos ex-combatentes cumpriu e sofreu a guerra por disciplina, por falta de consciência política e por ausência de alternativa, ou seja, fez o que lhe mandaram fazer, com “carne de obedecer”. Como sabemos que um elevado número de mancebos desertaram e emigraram, recusando-se a participar na guerra. Como houve os que, na guerra, lutaram contra a guerra. Como existiram organizações que enfrentaram com armas o regime e fizeram do aparelho militar colonial os seus principais alvos (casos da ARA e das BR). Mas um número não negligenciável fez a guerra com gosto por matar, matando com gosto (Wiriamu, “nó górdio” e “mar verde” não foram ficções e são meros exemplos da face mais negra da guerra). E houve a PIDE, fundamental na guerra, não se podendo falar dela sem referiu o papel crucial da PIDE, que praticou em África os seus crimes maiores. E se o 25 de Abril foi feito por oficiais de baixa e média patente, isso significa que a esmagadora maioria de oficias com patente de tenente-coronel para cima estava com a “ideologia da guerra”. Mas além das responsabilidades individuais e de grupo, a guerra colonial, em si mesma, foi, primeiro, um crime contra África e os africanos, depois, um sacrifício inútil, doloroso e prolongado que se pediu à juventude portuguesa. Um crime contra África e os africanos que se prolonga nos dias de hoje porque Portugal largou as suas colónias pela força e até que a força lhe faltasse e disso são vítimas os povos que acederam à independência e construíram e constroem os seus países a partir das cinzas da guerra. E essa mancha medonha, essa sombra do nosso passado, não só não é motivo de orgulho como não pertence ao nosso património patriótico. Porque um crime colectivo não é integrável no nosso orgulho enquanto povo.

Não se trata, hoje, de julgar quem quer que seja, além do julgamento da História, a que não se apaga nem se emenda. E é plenamente justo que o Estado português, sem complexos e na continuidade dos seus deveres para quem o serviu, seja justo nas reparações, prestações e auxílios devidos aos antigos combatentes. Outra coisa, bem diferente, contraditória até, é a recuperação revisionista e negacionista do que representou a guerra colonial, com as suas facetas contraditórias e sem um todo unicista. E é esse negacionismo recuperador que está em marcha há um bom par de anos. Aproveitando sobretudo os ressentimentos e lides mal feitas com fantasmas e consciências, uma boas e outra más, até péssimas. Comandada por militares anti-abrilistas, seguida pelas direitas saudosas do império, mais os exaltadores da glória castrense, procura-se integrar a guerra colonial (agora, outra vez, “guerra do ultramar”) no património histórico dos grandes serviços prestados à pátria. Que o adorador de jacarandás queira a integração uniformizante da complexidade multifacetada da guerra não surpreende, embora indigne. Nivelando comportamentos, atitudes, sofrimentos, num pacto de amnésia destinada a "apaziguar" a memória, sob o chapéu diáfano da "pátria comum". Quando a memória o que pede menos é "paz", antes vive e alimenta-se das vivências, dos actos, dos testemunhos, dos juízos cruzados e do contraditório. Sobretudo quando a gesta foi sofrida e sacrificada mas nada abonatória do nosso comportamento de povo em contacto (por domínio) com outros povos. Que a procissão já arraste o Daniel Oliveira, é sinal preocupante sobre a extensão e penetração da operação de nivelamento do processo histórico português. Com frontalidade, e como ex-combatente, lho digo.

(publicado também aqui)

2 comentários:

Joana Lopes disse...

João,

Deixo aqui o diálogo que mantive no Facebook (eu, JL) com o DO, a propósito do post que linkas. Continuar para quê? Mas pode ser que leia este teu post…

JL - Extraordinário, Daniel, que, aparentemente, tenhas passado ao lado de algumas enormidades do discurso de Barreto.

DO - Infelizmente li um resumo, por isso não comentei o discurso, mas apenas a questão dos ex-combatentes. Tens link para ele?

DO - Joana, mas nos textos que li a comentar ainda não encontrei nada que achasse propriamente relevante.

JL - Daniel, Eu ouvi o discurso EM DIRECTO e garanto que as notícias dos jornais referiram alguns pontos (escandalosamente) importantes. Linkei o Público, mas a notícia é mais ou menos igual noutros. E, para tua informação, houve vários blogues que comentaram e de forma bem mais violenta que eu - sou mansa no estilo. Daí, o meu espanto ao ler o teu texto.
O meu post

DO - Joana: eu li os comentários violentos. Só não li nenhum que me convencesse. E que me caia o céu em cima se sou fã do António Barreto.

João Tunes disse...

Obrigado pela partilha, Joana.