27/09/10

A democracia dos campos (sem flores...) e do "estado de urgência".

 Na manifestação parisiense contra as recentes medidas repressivas e as acções de limpeza étnica do governo francês podia-se ler numa faixa : « Somos todos um descampado! ». Dias depois, aquando da primeira grande manifestação contra a nova lei das pensões de reforma, um grupo de operários da Peugeot desfilava com um cartaz « Não são os Roms que devem ser expulsos mas os banqueiros ».
As sucessivas mobilizações de rua contra a nova lei têm vindo a cristalizar um profundo descontentamento social. Um sinal que não engana é a importância das manifestações em todo o país. Vários são os exemplos de cidades de província com 40 000 / 50 000 habitantes, onde metade da população vem à rua protestar. As motivações ultrapassam o terreno da nova lei, para exprimir uma insatisfação geral das condições de vida, do rumo da política oficial e das sinistras perspectivas de futuro. Os manifestantes contestam também as políticas repressivas, vistas como uma derivação contra a incompetência, ou a incapacidade, do governo para afrontar os problemas sociais da crise económica. Como é sabido, o medo é hoje uma táctica de governação. O conceito de “insegurança” é assim laboriosamente reduzido aos ladrões de supermercado e de sacos de velhas senhoras. Deixando de lado a insegurança social engendrada pelo sistema. Mais ainda, a grande delinquência da qual faz parte a corrupção da classe política. O extraordinário folhetim Bettencourt tem vindo a mostrar a que ponto os políticos são servidores bem remunerados dos proprietários do sistema económico.
Assim, não é estranho que os sectores mais combativos do mundo assalariado continuem a radicalizar-se politicamente no decurso destas movimentações contra a nova lei das pensões. Confirmação de que os valores de justiça e igualdade social permanecem profundamente enraizados na memória social da sociedade francesa. Uma sociedade que aceita mal a justificação de sacrifícios em nome do chamado « interesse geral » que se revela ser o interesse de uma classe capitalista, cada vez mais rica, numa sociedade que nunca foi tão rica. A propósito tinha eu já feito algumas considerações no texto « Reflexões em tempo de gripe permanente » (17 de Março de 2010), publicado em Passa Palavra, (http://www.passapalavra.info/).

Quando numa dada sociedade, milhões de pessoas se encontram nas ruas para protestar, gritar mas também para discutir, as condições são evidentemente propícias ao desenvolvimento do espírito crítico. Desta ebulição social emergem interrogações, dúvidas e certezas. Destaco aqui dois temas que me parecem estar no ar. Um questionamento sobre o significado do trabalho assalariado num mundo moderno decadente e doente, e, acessoriamente, uma outra interrogação sobre o futuro do sistema. Vivemos hoje em sociedades nas quais a mercadoria « futuro radioso » desapareceu das prateleiras dos supermercados, nas quais, pela primeira vez após a segunda Guerra mundial, as jovens gerações sabem que irão viver pior que a dos seus pais. Como diriam os « especialistas », há como que uma crise de confiança…
A recusa de trabalhar mais anos e até mais tarde, levanta também a crítica ao carácter alienante da condição assalariada. Ainda que esta condição constitua muitas vezes a única identidade de proletários, esvaziados de todas as suas energias criativas. O argumento oficial, que também a esquerda ortodoxa repete em voz baixa e que as médias apresentam como verdade científica, martela : «Se vivemos até mais tarde devemos trabalhar mais tempo ». Por que razão é esta lógica tão mal aceite ? Justamente porque reduz claramente o sentido da vida à condição de explorado. Como se lia num cartaz individual de um manifestante, « Não vale a pena viver até mais tarde se é para trabalhar ! ». E a perspectiva angustiante de «morrer trabalhando», acaba por despertar os espíritos para a evidência filosófica radical segundo a qual existe um antagonismo fundamental entre a vida e o trabalho. Se a sociedade é mais rica, se a palavra « progresso » tem ainda algum sentido, então porquê defender esta lógica sádica que associa mais anos de vida a mais anos de exploração, de negação de vida ? O argumento oficial é de resto desvalorizado pelo conhecimento do facto de que o aumento médio da esperança de vida não tem tido repercussões na idade média de vida de um trabalhador com saúde, a qual se têm mantido estável nos últimos anos. O que se explica pela crescente violência das condições de trabalho, tanto no plano psicológico como físico. E que é ilustrado pelo aumento dos suicídios e dos acidentes de trabalho nas empresas. Assim desmontada a propaganda, torna-se evidente que o verdadeiro objectivo desta « Reforma » é o de reduzir globalmente as pensões e aumentar a pobreza social. Considerando que, com a aumento do desemprego e da precariedade, da violência das condições de trabalho, poucos serão aquela(e)s, mesmo os masoquistas, que estarão em condições de continuar a trabalhar para lá dos 60 anos de idade. E, deste ponto de vista, as consequências da nova lei para as mulheres serão particularmente violentas.
Estes apontamentos, que podem passar por optimistas, não devem esconder o facto que estas manifestações repetidas exprimem uma fraqueza do movimento social em França, uma relação de forças desfavorável aos trabalhadores em geral. A amplitude das manifestações, pacíficas até agora, é uma resposta insuficiente à violência do ataque contra as condições de vida dos assalariados. De entre os milhões que saem à rua, muitos são os que sentem a impotência do momento. Sentem que a rua não é o lugar onde pode ser modificada a relação de força com o governo e com o patronato, que só o bloqueio da máquina económica pela greve poderá ter peso. A ideia da greve e da greve geral, que paira sobre os movimentos dos últimos 10 anos, é cada vez mais presente. Ainda que ela domine os espíritos, não se concretiza na realidade. Encontra a frontal oposição dos grandes aparelhos sindicais e dos partidos da esquerda clássica, que vêem esta probabilidade não como um reforço do movimento mas como um perigo extremista que é necessário evitar. Argumento que incansavelmente repetem nas propostas que fazem ao governo, pensando assim oferecer uma garantia de responsabilidade e de moderação. Tudo se passa como se os sindicatos tentassem mostrar a sua força na rua, quando são cada vez mais fracos nas empresas. Acabando por provar que, tanto na rua como nas empresas, são incapazes de dar uma resposta positiva aos novos rumos de um capitalismo em crise que procura reduzir os custos do trabalho.
O desenvolvimento da esquerda sindical, que tem no sindicato SUD (Solidaires-Unitaires-Démocratiques) a sua expressão mais concreta, resulta da convergência da radicalização de sectores minoritários dos trabalhadores e do sentimento de impotência que resulta da estratégia dos aparelhos burocráticos. Nas empresas e nos serviços públicos, a presença de SUD têm obrigado os grandes sindicatos tradicionais, a redobrar de esforços para defender as suas posições de compromisso e preservar a sua imagem de « responsabilidade ». Sem sucesso, os militantes de SUD, aliados a nucleos minoritarios da CGT, têm tentado prolongar as gréves de um dia. E a atitude da grande massa dos trabalhadores mantêm-se pouco combativa.
A palavra de ordem de «resistência» avançada pela esquerda traduz justamente esta impotência e esta fraqueza. Assenta na ideia de defesa de uma situação passada que era já insuportável e que levou justamente ao desastre actual. Resistir significa hoje aceitar a continuação da derrota, significa abdicar da opção ofensiva. É neste ambiente de pessimismo político que as forças da esquerda se agitam, prometendo um harmonioso restabelecimento do passado aos proletários desorientados, canalizando a revolta para o campo eleitoralista. Como se a derrota de hoje pudesse vir a ser contabilizada como vitória eleitoral da esquerda amanhã, como se perder agora garantisse a vitória mais tarde. Só que, neste jogo de improváveis probabilidades, os que perdem e os que ganham não serão os mesmos. O elemento central na demagogia socialista é a promessa de restabelecer, em caso de vitória eleitoral, os 60 anos como idade da reforma. Sem precisar que tal restabelecimento seria implicitamente acompanhado de uma diminuição do nível das reformas. Que nos países do sul da Europa, sejam os partidos socialistas a aplicar as mesmas políticas do governo de Sarkozy, é facto que não parece confundir os chefes socialistas franceses.
Duas tendências opostas estão assim presentes na mobilização actual. A via integradora, institucional, que tenta aposta na derrota para canalizar as energias da contestação para o terreno eleitoral e as tendências combativas que procuram uma via ofensiva, capaz de ultrapassar a impotência, inverter a relação de forças, passando da rua para o terreno da economia.
Evidentemente que a compreensão dos limites actuais da força de contestação social deve partir das condições das lutas, da sucessão de derrotas dos últimos anos, das condições degradadas de vida e de trabalho, da atomização e da individualização que a violência da crise impõe ao quotidiano. Mas não é de por de lado a importância da luta ideológica que a classe dirigente tem orquestrado. Campanha de propaganda ideológica que se reforça ao mesmo tempo que a classe política e a burguesia se mostram incapazes de afrontar as causas da crise capitalista e as suas consequências sociais. A crise como fetichismo é o primeiro termo desta propaganda. Acontecimento que é explicado por causas exteriores ou como o resultado de perturbações de uma pseudo « ordem natural » do sistema capitalista ; provocado por uma « imoralidade » ou « excesso » de tal ou tal sector capitalista, financeiro de preferência. Consequentemente, a crise, a instabilidade, não é inerente à própria natureza do sistema de exploração e do mecanismo de reprodução da acumulação capitalista. Esta ideia da crise como acontecimento anormal é o fundamento de toda a propaganda ideológica que justifica as medidas políticas actuais. Uma situação anormal exige políticas excepcionais. Nada de escolhas políticas, discutidas, negociadas, como no passado, trata-se agora de decisões inelutáveis perante uma situação anormal. A propósito recupero aqui algumas ideias de um interessante texto vindo de Atenas, de Yannis Thanassekos, « Politique, bureaucratie et « état d’urgence », que encontrei numa pequena revista confidencial, das que nos fazem reflectir mais do que a imprensa instalada com o poder (A Contre-courant, Mulhouse) (http://www.acontrecourant.org).
Começa Y.Thanassekos por lembrar a teoria elaborada, entre 1920 e 1930, pelo jurista nazi Carl Schmitt, segundo a qual o poder que decide sobre o « estado de excepção » é soberano e autojustifica assim todas as decisões que tome. Nesta situação, « a excepção », ou « a urgência », é a regra. Curiosamente, a situação que vivemos apresenta similitudes profundas com esses anos, de uma outra grande crise. Como não notar o regresso à prioridade da repressão na administração dos problemas sociais ? Como não ver o regresso simbólico dos « campos » ao centro da política de ordem ? Vivemos assim situações em que regimes formalmente democráticos se afirmam progressivamente autoritários, « obrigados » que são, pelas circunstâncias, a tomar as « medidas de urgência » ou de « excepção ». O discurso político acompanha esta evolução, devendo somente explicar e justificar as decisões. O « estado de excepção » liberta as decisões de toda deliberação ou negociação. O país está “ameaçado pela crise”, não há outra solução nem portanto escolha, são estas decisões ou o caos, o apocalipse ou a submissão às decisões. Fortalecido pela sua própria experiência - que é obviamente confirmada por outras experiências europeias e não só -, Y. Thanassekos lembra a rapidez com a qual a quase totalidade das forças políticas e dos medias, adoptou esta versão modernista do « estado de excepção » elogiado em seu tempo por Carl Schmitt e seus amigos, a facilidade com que a nomenclatura dos partidos, os socialistas em particular, se adaptou a esta retórica. Obedecendo a uma série de argumentos que ele expõe.
Primeiro, a crise, a dívida pública, são « factos », como « factos naturais », indiscutíveis, independentes da actividade humana e do sistema. O carácter fetichista do raciocínio prossegue, apresentando todos os outros aspectos da vida económica como « factos ». Os problemas levantados por estes “factos”, devem ser resolvidos, que seja os do mercado do trabalho ou os do funcionamento do sistema bancário. Para tal é necessário « reformar », isto é destruir as condições do passado, através de decisões de urgência. Toda oposição é vista como imobilismo e toda revolta contra a degradação da vida como atitude “conservadora”. A manipulação e inversão do conteúdo dos conceitos, em tempos analisada por Orwell na sua crítica do modelo totalitário, ganha aqui realidade. Terceiro nível de argumentação, estas decisões indiscutíveis e não negociáveis, são elas mesmo determinadas por outro “facto” natural, a mundialização e a submissão dos podes locais a poderes supranacionais, o FMI, a Comissão europeia, etc. Finalmente, as decisões de urgência, de excepção, impostas pelos “factos” devem ser aplicadas e executadas sem recurso. As instituições tradicionais do modelo democrático, os parlamentos, servem apenas para caucionar as decisões. As manifestações de oposição às medidas devem ser ignoradas, reprimidas. Os políticos transformam-se em tecnocratas que administram o estado de « excepção » ; as questões sociais, políticas e económicas são reduzidas a simples problemas técnicos que devem ser resolvidos. Nesta evolução, a legitimidade da burocracia política depende da sua eficácia. Assim, a esfera política reduz-se a uma esfera burocrático-tecnocrática, a única discussão é a dos « meios » e das « técnicas » e a finalidade das acções fica fora do campo da reflexão política.
Se as reflexões de Y. Thanassekos sobre a evolução autoritária da democracia parlamentar têm sentido, é óbvio que entramos num período histórico no qual, não só a famosa « autonomia do político » desapareceu da cena, como mesmo a política perdeu autonomia. O presente caso lusitano é uma perfeita ilustração disto mesmo.
Mas estas decisões « de urgência » são insuficientes, as concessões de hoje são a porta aberta às concessões de amanha, como o exemplo irlandês mostra também. Aqui temos um poder político que aplicou rapidamente as medidas de urgência de austeridade, reduziu as despesas públicas, diminuiu em 15% os salários da função pública, passou a idade da reforma de 65 a 67 anos cortou as prestações sociais, tudo isto sem oposição social. Com aplausos e felicitações dos patrões das instituições capitalistas europeias e mundiais. Mistérios da economia burguesa, o país encontra-se hoje em recessão e com o sistema bancário à beira da falência. Então?
Que a crise do capitalismo se instale no tempo, com um progressivo empobrecimento das sociedades, desaparecimento das « classes » médias financiadas pelos déficites do passado, e estas questões não poderão ser evitadas. Que democracia parlamentar será possível sem mecanismos de integração e de promoção social ? Inversamente, uma economia de produção privada de lucro será compatível com um sistema político fundado num « estado de urgência » ? Os campos, de roms hoje, de pobres amanhã, serão suficientes para incitar os outros pobres a trabalhar até morrer com salários de miséria ?
Como observou Marx em seu tempo, as formas de dominação política estão ligadas às formas das relações sociais. A evolução a que assistimos confirma esta análise. Hoje, tal como nos anos 30, a violência das formas de exploração não pode ser separada da evolução autoritária dos sistemas políticos. Da mesma maneira que as antigas formas da luta sindical se revelam incapazes de responder às novas formas de exploração, também a velha vida política parlamentar, assente no eleitoralismo e na delegação permanente de poder, está cada vez mais esvaziada de conteúdo na situação actual. O princípio fundamental de todas estas formas de poder, a negociação entre classes e a congestão, está dinamitado pelo recurso ao « estado de excepção » e à « urgência ».
É evidente que estas transformações se repercutem mais lentamente nas consciências do que na vida real de cada dia. Mas para a(o)s que têm como exigência a perspectiva da emancipação social, a discussão destes temas é fundamental para preservar a arma da crítica. Desleixando os espectáculos de circo eleitoral para o qual se continua a convidar o povo a datas fixas. Os quais justificam e alimentam a reprodução de classes políticas, cuja função é cada vez mais limitada e determinada pelas reais forças económicas. Que as mímicas do palhaço triste ou as do palhaço contente, desviem as nossas atenções é só o sinal de que a vida nos escapa um pouco mais.

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