14/01/12

Como acordar desta anestesia?

Quando chegou a emergência, a crise, o ataque, começaram por nos aplicar uma ligeira solução de treta. Culparam germes estrangeiros – os mercados, os especuladores, tudo agentes patogénicos incontroláveis pelos nossos esforçados terapeutas. Mudámos de especialista a meio da intervenção, largando um charlatão de diploma questionável por um estagiário que destes procedimentos sabe ainda menos. Temendo estertores incómodos do paciente, aquele tratou logo de reforçar a anestesia: aumentou a concentração da mágica “inevitabilidade” e juntou-lhe outros princípios activos garantidos: “exigência”, “rigor”, “reformas”. Funciona. Mesmo sabendo que o paciente antes sujeito à mesma operação jaz morto-vivo e cada vez mais enterrado, continuamos hipnotizados pelo gráfico minguante dos nossos sinais vitais, sem respirar, à espera do milagre que por certo vem aí. E nada nos desperta. Sabemos que tudo continua a “derrapar”, a deteriorar-se, levando a que afinal a nossa carne tenha de sofrer cortes suplementares; que aos pobres amputam muito mais do que aos prósperos; que agora aproveitam o nosso sono para vender património de todos, a troco de uns pratos de lentilhas para uma tribo de gafanhotos sempre viciada em lagosta; que os companheiros insulares do cirurgião meteram o dinheiro dos medicamentos nos bolsos de empreiteiros amigalhaços. E nós dormimos. Só não acordaremos a tempo de ver a festa no bloco operatório, com bom champanhe, caviar e folia a rodos, porque estaremos então bem defuntos.

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