29/05/12

O "modelo alemão do pleno emprego precário" beneficia todos os alemães?

Em resposta às objecções que lhe têm sido postas por alguns dos seus mais fiéis e interessados leitores, entre os quais me incluo, JM Correia Pinto escreve no seu Politeia:

(…) alguns leitores ficam manifestamente irritados quando aqui se fala na Alemanha e não no capital financeiro ou quando se toma como referência de análise o quadro nacional. A primeira coisa importante que todos nós aprendemos com Maquiavel, o primeiro grande pensador político moderno, é que em política desprezar a realidade é fatal. Obviamente que não se trata de negar o importante papel que nesta crise está sendo desempenhado pelo capital financeiro nem as alianças que ele tem conseguido fazer nos Estados mais prejudicados por ela, umas facilitadas pelas convicções ideológicas dos governates, outras pela promiscuidade de interesses. Trata-se apenas de sublinhar que as consequências desta crise não se repartem indo todas as vantagens para o capital financeiro, seus aliados e acólitos e as desvantagens para os demais. Não: elas têm, umas e outras, uma incidência fortemente desigual no quadro nacional de tal modo que há países onde todos, globalmente,  tiram vantagem das manobras do capital financeiro, a ponto de os seus eleitores não quererem mudar nada e há outros onde todos ou quase todos sofrem as desvantagens dessas manobras, embora cada qual à sua escala.

Ora bem, basta que pensemos um momento para se tornar claro que, se é verdade que "as consequências desta crise (…) tem (…) uma incidência fortemente desigual no quadro nacional", é, pelo contrário, inaceitável a conclusão de que, sendo assim,  "há países onde todos, globalmente, tiram vantagens das manobras do capital financeiro (…) e há outros onde todos ou quase todos sofrem as desvantagens dessas manobras, embora cada qual à sua escala". Com efeito, para admitirmos sem falsear a percepção do problema o "grão de verdade" que há nas palavras citada, seria necessário, no mínimo, precisar alguns aspectos fundamentais que JM Correia Pinto não precisa.

1. Assim, nos países "privilegiados", as vantagens extraídas das manobras do capital financeiro estão longe de ser distribuídas igualmente "por todos, globalmente": é possível que as camadas mais desfavorecidas sofram um pouco menos do que as mesmas camadas nos países "subprivilegiados" ou "periféricos"; mas isso não pode fazer-nos esquecer, não só que o seu quinhão na "repartição do produto" não aumenta, mas também que as ditas "manobras do capital financeiro" asseguram, em benefício dos blocos oligárquicos governantes, a instauração de um desequilíbrio cada vez mais nas relações de poder, desarmando cada vez mais a subordinação dos "governados".  Isto é tão verdade que, justamente na Alemanha, o país "beneficiado" por excelência, assistimos ao  ao rápido progresso da constitucionalização de um novo "pacto social", a que melhor seria chamar diktat constitucional da oligarquia financeira,  e das medidas que visam a consagração à escala da Europa do "modelo" (por muito verdade que seja que a aplicação do "modelo" se revele no imediato mais dolorosa nas periferias do que no centro).

Trata-se, de resto, de um processo que deu passos significativos ainda na época de Schröder, ainda que as consequências mais pesadas só agora comecem a fazer-se sentir na Alemanha. Vejam-se, por exemplo, os dados do texto de introdução, "Dívida e Austeridade: o Modelo Alemão do Pleno Emprego Precário", ao trabalho de Maurizio Lazzarato La fabrique de l’homme endetté, essai sur la condition néolibérale, retomado pela página da Coordination des Intermittents et Précaires de Île de France, e traduzido pelo "pessoal da Vila Vudu", e pergunte-se depois que sentido tem falar, a propósito da Alemanha, de uma situação em que "todos, globalmente, tiram vantagens das manobras do capital financeiro".

Entre 1999 e 2005, o governo “vermelho-verde”, apoiado no “Fördern und fordern” [promover e exigir], promoveu quatro reformas no seguro-desemprego e no mercado de trabalho (as quatro Leis Harzt), cada uma delas especialmente catastrófica.
Em janeiro de 2003, a Lei Harzt II introduziu os contratos “Mini-job” [mini-tarefa], que são uma espécie de trabalho escravo legal (a lei dispensa os empregadores das contribuições sociais e não garante nem aposentadoria nem salário-desemprego aos trabalhadores) e “Midi-job” [midi-tarefa], com salários entre 400 e 800 euros/mês, para “estimular” todos a converterem-se em “empresários” da própria miséria.
Em janeiro de 2004, a Lei Hartz III reestruturou as agências nacionais e federais de emprego, para ampliar o controle e acompanhar a vida e o comportamento dos trabalhadores pobres. Construídos esses dispositivos de governo impostos aos trabalhadores pobres, o governo “vermelho-verde” aprovou várias leis para “produzir” número cada vez maior de pobres.

Estima-se que 6,6 milhões de pessoas – entre as quais 1,7 milhões de crianças – sejam beneficiários do auxílio social formatado pela Lei Hartz IV. Os 4,9 milhões de adultos são, de fato, trabalhadores pobres, empregados durante menos de 15 horas/semana. Em maio de 2011, as estatísticas mostravam que havia 5 milhões de Mini-jobs, com aumento de 47,7%, depois de um boom Midi-jobs que alcançou 134%. (…)
Essas formas de contrato são também muito numerosas entre os aposentados: 660 mil aposentados combinam a aposentadoria e um Mini-job [8]. Parte importante da população, 21,7%, trabalhou só em meio-período, em 2010.
A agência alemã Destatis (equivalente ao Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos, INSEE francês) mediu o aumento da precariedade na Alemanha e das formas que ela recobre: entre 1999 e 2009, todas as formas atípicas de trabalho aumentaram, no mínimo, 20% [9] . Os dois grupos mais atingidos são as famílias monoparentais (com mulheres como chefe-de-família) e os velhos. Sob condições do atual pleno emprego precário, a taxa oficial de desemprego, divulgada como ‘prova’ do “milagre econômico alemão” pouco significa!
Em rápida expansão, esse exército de trabalhadores pobres não é composto exclusivamente de empregados a título precário, mas também de trabalhadores sob Contrato por Tempo Determinado e de jornada integral. Em agosto de 2010, relatório do Instituto do Trabalho da Universidade de Duisbourg-Essen estabelecia que, na Alemanha, mais de 6,55 milhões de pessoas recebem menos de 10 euros brutos/hora – mais de 2,26 milhões de trabalhadores a mais, que há dez anos. São, na maioria, desempregados há mais tempo, que o sistema Hartz conseguiu “ativar”: de menos de 25 anos, estrangeiros e mulheres (69% do total).Além disso, em Outre-Rhin, 2 milhões de empregados recebem menos de 6 euros/hora; e na ex-RDA, muitos são os que sobrevivem com menos de 4 euros/hora, quer dizer, menos de 720 euros/mês, para jornada de tempo integral. Resultado: os trabalhadores pobres são cerca de 20% dos empregados alemães.
Durante a crise financeira, o governo recorreu massivamente ao desemprego parcial, que permite que as empresas paguem apenas 60% da remuneração normal aos assalariados e fiquem dispensadas de pagar metade das contribuições sociais.
Outra consequência das políticas de Schröder, desde 2002: o total de salários caiu para menos de 5% do PIB.
As mudanças introduzidas pelos “vermelho-verdes” são qualitativas: depois de anos de desenvolvimento caótico e selvagem da precariedade, dos subempregados e dos subassalariados, chegou a hora de introduzir alguma regulação e alguma racionalização da miséria e da precariedade. Constituindo um “verdadeiro” e “coerente” mercado de emprego dos “mendigos”, empurram agora também os mais bem empregados na direção da “flexibilidade” e da razão economicista. Todo o universo da população, precários, trabalhadores pobres, trabalhadores qualificados, todos tornam-se flutuantes, prontos a serem flexibilizados para sempre. Os diferentes vetores que compõem a “força de trabalho” social já não passam de simples variável de ajustamento da conjuntura econômica.
O programa “vermelho-verde” faz por merecer o nome. Segundo a Agenda 2010 [10], 10 anos depois da primeira Lei Hartz os resultados são mortais. E não se trata de simples metáfora! A esperança de vida para os mais pobres – menos de 2/3 da renda média – recuou, na Alemanha: para os de baixa renda, caiu, de 77,5 anos em 2001, para 75,5 anos em 2011, segundo estatísticas oficiais; nos Lander do leste do país, a situação é ainda pior: a esperança de vida caiu, de 77,9 anos, para 74,1 anos.

2.  Nos países "subprivilegiados" ou mais "sacrificados", a lógica é a mesma. Quer dizer,  ao contrário do que sugere JM Correia Pinto, não se pode dizer que "todos, globalmente" sofram ou sejam prejudicados pelas "manobras do capital financeiro". Basta considerarmos o entusiasmo que os governantes portugueses e boa parte dos oligarcas mais activos põem na exploração da oportunidade que a crise lhes dá de redefinirem e empreenderem a constitucionalização das relações de poder e dos critérios de "repartição do produto" em seu proveito para vermos que a realidade é muito diferente. E também que, para combater "o modelo alemão do pleno emprego precário", em torno do qual as oligarquias governantes cerram fileiras e unificam a sua hegemonia, é fundamental não nos deixarmos aprisionar pelos quadros do Estado-nação e das identidades nacionais. 

3. Por fim, o argumento eleitoral de JM Correia Pinto também não colhe. Com efeito, se se disser que os resultados eleitorais na Alemanha provam que "todos, globalmente" beneficiam com o governo de Merkel e com a promoção dos interesses que o movem, terá de se dizer o mesmo de Portugal, Espanha, Irlanda, etc. Ou seja, os resultados eleitorais que levaram à formação do actual governo português ou deram, em Espanha, a maioria ao PP, provariam que estes governos garantem as vantagens, senão de "todos, globalmente", pelo menos da grande maioria dos cidadãos dos países considerados. Aqui, basta-me remeter para um post ainda recente, intitulado As Limitações da Democracia Representativa, que JM Correia Pinto publicou e cuja leitura nunca será demais recomendar — e a começar, na circunstância, ao seu próprio autor.







1 comentários:

Anónimo disse...

Invocando Maquiavel, o dr. JM Correia Pinto sinaliza involuntariamente a sua espantosa auto-limitação. Como bem nos ensina J-C- Milner, " Uma citação é luminosa na exacta medida onde em que é mal compreendida ".Para quem trabalhou na REPER em Bruxelas nos golden days a coisa pode ser...estimulantemente grave. O " realismo " que apregoa e sugere é, justa e paradoxalmente, o passe-partout da política monetarista aplicada pela eng.a Merkel, a golpes de audácia e sadismo.Nem os coriféus ultra-liberais do Financial Times a suportam, como se sabe.E eu a pensar que o dr. JM Correia Pinto era um imaculado justicialista neo-kantiano à la Rawls... Niet