Este post pretende ser um comentário a este artigo do Luís Aguiar-Conraria; entretanto o LA-C já declarou a sua falta de vontade em continuar a discussão, mas mesmo assim escrevo-o já que muitos dos argumentos que ele usa também são usados por outras pessoas (e, mais importante ainda, já tinha o post largamente feito a minha cabeça).
O LA-C escreve que o "burquini é um símbolo da opressão das mulheres e é socialmente identificado com o extremismo islâmico com quem estamos em guerra. Claro que o burquini não faz das famílias que os usam cúmplices dos atentados terroristas, mas torna-as cúmplices dos avanços do fundamentalismo islâmico e de um retrocesso de décadas na luta pelos direitos das mulheres. Isso não tem qualquer comparação com as roupas das freiras ou das judias ortodoxas ou com os fatos de surf. Dizer que para se proibir uma coisa se tem de proibir as outras é o mesmo que dizer que para se proibir a cruz suástica se tem de proibir todas as cruzes. E se, por exemplo, é ilegal passear nas ruas de Berlim com uma cruz suástica na t-shirt, não consta que tenha problemas se passear com uma cruz vermelha estampada na roupa. E, se quiser passear com uma suástica, escusa de alegar se trata de um símbolo do hinduísmo ou de uma qualquer tribo índia norte-americana, como os Navajo. Simplesmente, a conotação que tem no actual mundo europeu não é essa."
Portanto, se percebo, o argumento para proibir o burkini não será o burkini em sí, mas o facto de ser um símbolo do extremismo islâmico - note-se que isso poderia servir para proibir, não apenas o burkini, mas todos os trajes religiosos islâmicos, incluindo as barbas compridas dos homens (aliás, suspeito que as barbas compridas estão ainda mais associadas visualmente ao extremismo islamita do que as vestes femininas). Apesar de tudo, acho que há uma diferença para com a suástica - enquanto a suástica, usado num contexto ocidental, implica quase automaticamente a defesa da ideologia política nacional-socialista, não estou certo que o uso do burkini implique uma adesão ao islamismo político (em vez de uma islamismo apenas "social", de querer viver a sua vida privada de acordo com as regras islâmicas, mas sem as querer plasmar nas leis do estado); e, de qualquer maneira, quer dizer que aí a ideia é mesmo proibir, não tanto um vestuário, mas a expressão pública da adesão a uma dada ideologia ou religião, algo que me parece um mau principio, por mais reprovável que possa ser essa ideologia ou religião (diga-se que eu também tenho muitas dúvidas em geral face a proibições como a da suástica ou dos "discursos de ódio").
Uma nota especial para as roupas das judias ortodoxas - aí nem me parece que se possa falar de ter um significado simbólico diferente: a posição dos judeus ortodoxos e dos muçulmanos "ortodoxos" face à subordinação das mulheres aos homens é largamente similar, e a semelhança de vestuário reflete essa semelhança ideológica. Aliás, em larga medida quase que poderemos dizer que o islamismo é simplesmente o judaísmo ortodoxo menos a parte da exclusividade étnica (e algumas diferença de pormenor - poder-se comer marisco, não se poder beber álcool, poder-se anestesiar os animais antes de os sangrar até à morte, etc. - talvez a parte da afiliação religiosa vir do pai em vez da mãe não seja "de pormenor", mas penso que faz mais diferença na teoria do que na prática). Diga-se que as semelhanças entre o judaísmo e o islamismo, face às diferenças que ambos têm do cristianismo, são uma boa razão para se considerar que expressões como "civilização judaico-cristã" não fazem grande sentido, mas já estou a fugir do tema central.
"A questão é mesmo a de saber se acreditamos que a escolha de tal
indumentária é, verdadeiramente, uma opção individual e não o resultado
de repressão familiar e religiosa. No caso dos desacatos na praia
francesa, vale a pena lembrar que tudo aconteceu porque os maridos das
mulheres de burquini se indignaram com os jovens que lhes tiraram
fotografias. Assim, à primeira vista, até parece que não são tanto as
mulheres que se incomodam com os olhares, mas sim os maridos delas."
Quando muito, isso será indicativo dessa praia específica (e mesmo aí não aceitariam isso como prova definitiva - em certas culturas é esperado que sejam os homens a ir discutir com estranhos, mesmo que as mulheres também se sintam incomodadas; mesmo na cultura "latina" tradicional era assim).
Já agora, isto é frequentemente posto em termos de "são as mulheres que querem usar, ou são os homens que as obrigam?", mas convém não esquecer outras hipóteses, como serem algumas mulheres (como mães ou sogras) a abrigarem outras mulheres (como filhas e noras) a usarem (muitas vezes o domínio masculino a nível macro é mantido a nível micro por mulheres, tal como na África do Sul do apartheid a repressão dos negros era muitas vezes feita por polícias negros - pelo menos na cultura ocidental, quase que aposto que é muito mais frequente as mães do que os pais virem com conversas do tipo "fica mal uma rapariga andar sozinha a essas horas").
De qualquer maneira, a ideia de que as mulheres gostariam de ir para a praia de bikini mas que são os maridos que as obrigam a andar de burkini parece-me ter implícita a ideia que haverá uma enorme quantidade na Europa de mulheres muçulmanas mas culturalmente ocidentalizadas e de homens muçulmanos tradicionalistas, e que as primeiras acabam frequentemente casadas com os segundos; é possível, mas duvido muito - até prova em contrário, tendo a assumir que o grau de tradicionalismo na comunidade muçulmana será provavelmente o mesmo entre homens e mulheres (se não for até maior entre as mulheres, por um conjunto de fatores), e que a quantidade de maridos que querem que as esposas usem burkini não será substancialmente maior do que o número de esposas que querem mesmo usar burkini. Atenção que o ideia de que os pais (ou as mães) obrigam as filhas a usar burkini contra a vontade delas já me parece mais plausível, já que é de esperar que as gerações mais novas sejam menos tradicionalistas (da mesma maneira, também acho bastante provável que, em casamentos em que o marido seja substancialmente mais velho que a mulher, ela seja realmente obrigada a usar burkini contra a sua vontade - esses casamentos são comuns nos países muçulmanos, mas não sei se serão igualmente comuns entre as comunidades muçulmanas europeias).
"Este segundo argumento faz-me lembrar uma discussão que houve há alguns
anos em Portugal sobre a natureza pública da violência doméstica. A
partir do momento em que a violência doméstica passou a ser crime
público, deixou de depender de queixa da vítima. Ou seja, se um homem
der uma bofetada na esposa, isto não é tratado como qualquer outra
bofetada num outro contexto. A mulher está impedida de perdoar e de não
apresentar queixa. É o Ministério Público que decide. O principal
argumento para defender a natureza pública desta bofetada tem a ver com o
facto de se considerar que, num contexto familiar de violência e de
dependência, a mulher não é, verdadeiramente, autónoma e livre. Daí que a
polícia e os tribunais metam a colher. (...) Não há motivos para considerar que as mulheres são autónomas para
decidir usar o burquini e que não são autónomas para escolher se
apresentam queixa contra o marido."
Tal como esse argumento é posto, creio que poderia ser usado para, legalmente, proibir uma mulher casada (ou eventualmente com qualquer espécie de compromisso afetivo) de fazer seja o que for, já que nunca saberíamos se ela estava a agir por vontade própria ou obrigada pelo marido. Acho que a violência física representa um salto qualitativo que se distingue de outras situações: porque aí não temos apenas a suspeita que o marido a estará a obrigar a fazer alguma coisa, sabe-se mesmo que o marido recorre à coação física e a figura do "crime público" pode ser a maneira de quebrar o ciclo vicioso "ela não se queixa de ele lhe bater porque tem medo que ele lhe bata" (no fundo, para alguém obrigar/impedir outro a/de fazer alguma coisa, quase sempre é necessário a ameaça latente de violência física, pelo que suprimir essa ameaça de violência física é frequentemente necessário para saber o que é que uma pessoa realmente quer).
28/08/16
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4 comentários:
A França é mais um país para a colecção aonde REINA A BANDALHEIRA:
- não sendo uma sociedade (nativa) sustentável (média de 2.1 filhos por mulher)... existe critica da repressão dos Direitos das mulheres... todavia, em simultâneo, para cúmulo, defende que... no aproveitar da 'boa produção' demográfica proveniente de determinados países {nota: 'boa produção' essa... que foi proporcionada precisamente pela repressão dos Direitos das mulheres - ex: islâmicos}... É QUE ESTÁ A 'SALVAÇÃO' para resolver o problema do deficit demográfico na Europa!?!?!
.
.
CORTAR COM A BANDALHEIRA ANTES QUE SEJA TARDE DEMAIS:
- http://separatismo--50--50.blogspot.com/.
[o legítimo Direito à sobrevivência das Identidades Autóctones]
Ola,
As dificuldades que os nossos liberais de trazer por casa têm quando se trata de lidar com a noção de liberdade, é para mim uma fonte inesgotavel de pasmo. E o LAC nem é dos mais burros...
Abraço
A posição do LA-C, apesar de tudo, faz mais sentido vindo dele do que faria se viesse de algum dos liberais mais conservadores.
Se fosse daqueles liberais que passam a vida a falar de direitos das famílias (em vez de dos indivíduos), e que protestam contra a "engenharia social" e a "tirania do politicamente correto" sempre que se fala de alguma lei contra a discriminação sexual/racial/religiosa/etc./etc., seria muito mais díficil fazer os argumentos apresentados no artigo sem entrar em total dissonância cognitiva.
Ola Miguel,
Como disse, e mantenho (com base nas poucas discussões blogosféricas que tive com ele), o LA-C não é burro nenhum. Agora neste caso, tenho muita pena, mas não existe conciliação possivel com os principios do liberalismo, que recomendam que apenas se poiba uma conduta quando ela constitui uma séria ameaça para a liberdade de outrem. O argumento estapafurdio de o burquini ser "um simbolo da opressão de mulheres" não resiste a dois segundos de analise. O burquini foi criado ha uns anitos atras e o objectivo (comercial antes de mais) era atingir a clientela das mulheres que não vão à praia porque não se despem. Onde é que isso é um simbolo da opressão ?
Resta o argumento ; trata-se de cobrir o corpo, logo de um gesto que implica a desvalorização ou mesmo a diabolização do corpo da mulher e tralala. Ora bem, e a parte de cima do biquini, o que é, ao certo ? Vamos então proibir o uso da parte de cima do biquini nas praias europeias ?
E finalmente, como tu proprio apontaste muito bem, estamos a falar de uma medida de proibição que implica, tão so, sancionar mulheres que decidam livremente usar a coisa. As mulheres que a isso são forçada, num ordenamento liberal, dispõem, e muito bem, do direito de pedir auxilio à policia. Ninguém põe isso em causa, nem que assim deveria também acontecer nas Arabias Sauditas deste mundo. Posto é que saibamos do que falamos quando falamos em liberdade. Ora o nosso querido amigo LA-C, neste particular, aparenta ignorar completamente o que seja...
Abraço
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