Merece o repúdio mais veemente o ataque, em águas internacionais, dos seis barcos que procuravam romper o bloqueio a Gaza. A desproporção dos meios (um ataque de unidades de elite de Israel contra cidadãos indefesos) e as vítimas causadas é, além do mais, um acto que envergonha os defensores do direito à soberania do Estado de Israel. Mesmo que o "combóio náutico" comportasse, além do humanitarismo, doses de provocação e desafio, utilizando "escudos humanos" que se consideravam eficazes. A indignação internacional causada por este acto injustificável e miserável, mostra para onde aponta a escalada dos “falcões israelitas”: o isolamento de Israel e o crescimento em apoios propagandísticos dos amigos dos fanáticos islâmicos do Hamas, mais prosaicamente do fascismo terrorista islâmico, espalhados por todos os sítios onde o antisemitismo medrou, bebendo nas paranóias da Inquisição, dos "progroms", de Hitler ou de Estaline. Portanto, o que aconteceu foi um crime de Israel contra Israel, a Palestina e contra a comunidade internacional. Ou seja, uma estupidez manchada de sangue. Assim? Não!
(também publicado aqui)
31/05/10
Réplica ao Miguel Cardina e à Joana Lopes, camaradas destas e outras vias
por
Miguel Serras Pereira
Miguel e Joana,
O post que aqui deixei esta manhã foi objecto da vossa parte de uma demarcação tão radicalmente formulada que penso ser saudável trazê-la da caixa de comentários para a primeira linha.
Escreveu o Miguel: "Isto é de uma insensibilidade inesperada em ti. Achas mesmo que a transexualidade e as questões da identidade sexual se podem equiparar aos exemplos que apontas?". E a Joana, não menos contundente: "É o post mais infeliz de todos os que alguma vez li, assinados por ti. Para além de brincares com coisas que são sérias para muitas pessoas, O que raramente aprecio".
Ora, acontece, camaradas, que a minha ideia não é denegrir a transexualidade ou outras orientações sexuais. É denunciar os impasses e os absurdos da multiplicação dos direitos identitários. Ou a tese segundo a qual as opções, preferências, gostos individuais devem ser tutelados como direitos desta identidade ou daquela e não, muito simples e democraticamente, ao abrigo da liberdade individual.
Indo um pouco mais longe: em sociedade, ninguém escolhe uma identidade cultural livremente; pode - e, numa sociedade em vias de democratização, deve - contribuir para a sua redefinição, dessacralizando as instituições, refazendo as leis, reinventando usos e costumes, transformando radicalmente, em sendo caso disso, os traços e condições da identidade cultural recebida.
Mais ainda, querer uma sociedade democrática ou autónoma significa querer uma sociedade que impõe a todos os seus membros a cidadania como identidade política e cultural primeira, uma sociedade que forma e educa os seus membros enquanto cidadãos e que politicamente é como cidadãos que, sem distinções, os reconhece.
Quer isto dizer que reprima, desencoraje, asfixie as outras dimensões dos indivíduos seus membros que, em cada um deles, coexistem com a cidadania? É evidente que não. Muito pelo contrário, o que faz é tornar a sua identidade (cultural, colectiva, etc.) de cidadãos legisladores e autogovernados garante das diferenças individuais; da liberdade de costumes na esfera informal da convivência modulada pelas afinidades particulares de cada um; da autonomia na esfera da subjectividade, e assim por diante. Mas sem condicionar as escolhas individuais ou de grupos e categorias particulares a um reconhecimento legal categorial ou particular que, positiva ou negativamente, as discrimina, regulamenta e codifica (seja subalternizando-as, seja privilegiando-as, seja fazendo uma coisa por um lado e outra pelo outro - mantenho e sublinho).
Noutra ordem de ideias, uma coisa é dizer que a orientação sexual é diferente, mais complexa e rica, do que as diferenças sexuais enquanto caracteres anatómico-funcionais biologicamente determinados; outra, muito diferente, é não reconhecer (nas fronteiras da psicose) que essas diferenças estão ou estiveram lá e não reconhecer que é diferente (embora normativamente a instituição da cidadania o torne irrelevante para efeitos políticos) nascer-se homem ou mulher, independentemente do que cada um venha livremente a fazer daí em diante. Sem dúvida, o direito democrático e a política da autonomia criam e afirmam, fazem ser e impõem, uma realidade nova que modifica as relações entre os termos em presença: por exemplo, a igualdade de direitos entre mulheres e homens - mas sem que esses termos e as suas diferenças deixem de existir noutros planos da realidade. A igualdade de direitos entre as mulheres e os homens não precisa de negar que uns e outros nasceram portadores de caracteres sexuais distintos, não-equivalentes, e não é a igualdade desses caracteres, mas sim uma igualdade independente deles, que estabelece. O mesmo vale no caso dos transexuais e noutros semelhantes do ponto de vista que aqui nos ocupa.
Quem entende, ao contrário do que é a minha posição, que o direito à transexualidade passa pelo BI, deveria ir um pouco mais longe, e defender uma das duas seguintes soluções: ou o BI registaria a condição de transexual e as suas diferenciações internas - e também outras orientações sexuais que viessem a formular-se na base de outros traços identitários; ou o BI registaria o sexo que qualquer adulto maior entendesse ser o seu, independentemente de tutela psicoterapêutica ou psiquiátrica (discriminatórias), ao longo dos diversos períodos da vida. Além de que deveria interrogar-se sobre o que fazer perante o grupo ou "identidade sexual" cujos membros entendessem reivindicar a possibilidade para cada deles de se declarar dos dois sexos (de resto, a iniciativa legislativa a que me referi deveria este tema na ordem do dia de quem entende que o mesmo deve ser objecto de legislação especial).
Por fim, é precisamente porque entendo que cada um deve ter o direito de viver, consigo próprio e nas suas relações com os outros, tão livremente quanto possível a sua sexualidade que penso que as suas orientações e todos os aspectos que relevam de uma escolha individual nesse domínio devem ter por garantia os direitos fundamentais e não disposições que os tornam membros de uma categoria jurídico-política à parte, como é inevitável que venha a ser o caso com o reconhecimento oficial de "identidades sexuais".
A última observação tem a ver com o reparo que a Joana me faz: "… Para além de brincares com coisas que são sérias para muitas pessoas, O que raramente aprecio". Aqui podia remeter simplesmente para o que escrevi ontem Sobre as reciclagens fracturantes da censura puritana. Mas, tratando-se da minha camarada de luta anti-clerical que se distinguiu no exercício do humor ao mesmo tempo subtil e implacável que todos lhe conhecemos contra coisas que são as mais sérias do mundo para muito do catolicismo da casa, limito-me a perguntar-lhe por que razão deveríamos brincar menos com a sexualidade do que com as crenças religiosas, e por que razão não reivindica para estas o mesmo tratamento.
Em suma, enquanto não me forem apresentadas melhores razões que, no todo ou em parte, me façam corrigir o tiro, não vejo maneira de não persistir e reassinar o que escrevi esta manhã.
Honestamente e sans rancune
miguel serras pereira
O post que aqui deixei esta manhã foi objecto da vossa parte de uma demarcação tão radicalmente formulada que penso ser saudável trazê-la da caixa de comentários para a primeira linha.
Escreveu o Miguel: "Isto é de uma insensibilidade inesperada em ti. Achas mesmo que a transexualidade e as questões da identidade sexual se podem equiparar aos exemplos que apontas?". E a Joana, não menos contundente: "É o post mais infeliz de todos os que alguma vez li, assinados por ti. Para além de brincares com coisas que são sérias para muitas pessoas, O que raramente aprecio".
Ora, acontece, camaradas, que a minha ideia não é denegrir a transexualidade ou outras orientações sexuais. É denunciar os impasses e os absurdos da multiplicação dos direitos identitários. Ou a tese segundo a qual as opções, preferências, gostos individuais devem ser tutelados como direitos desta identidade ou daquela e não, muito simples e democraticamente, ao abrigo da liberdade individual.
Indo um pouco mais longe: em sociedade, ninguém escolhe uma identidade cultural livremente; pode - e, numa sociedade em vias de democratização, deve - contribuir para a sua redefinição, dessacralizando as instituições, refazendo as leis, reinventando usos e costumes, transformando radicalmente, em sendo caso disso, os traços e condições da identidade cultural recebida.
Mais ainda, querer uma sociedade democrática ou autónoma significa querer uma sociedade que impõe a todos os seus membros a cidadania como identidade política e cultural primeira, uma sociedade que forma e educa os seus membros enquanto cidadãos e que politicamente é como cidadãos que, sem distinções, os reconhece.
Quer isto dizer que reprima, desencoraje, asfixie as outras dimensões dos indivíduos seus membros que, em cada um deles, coexistem com a cidadania? É evidente que não. Muito pelo contrário, o que faz é tornar a sua identidade (cultural, colectiva, etc.) de cidadãos legisladores e autogovernados garante das diferenças individuais; da liberdade de costumes na esfera informal da convivência modulada pelas afinidades particulares de cada um; da autonomia na esfera da subjectividade, e assim por diante. Mas sem condicionar as escolhas individuais ou de grupos e categorias particulares a um reconhecimento legal categorial ou particular que, positiva ou negativamente, as discrimina, regulamenta e codifica (seja subalternizando-as, seja privilegiando-as, seja fazendo uma coisa por um lado e outra pelo outro - mantenho e sublinho).
Noutra ordem de ideias, uma coisa é dizer que a orientação sexual é diferente, mais complexa e rica, do que as diferenças sexuais enquanto caracteres anatómico-funcionais biologicamente determinados; outra, muito diferente, é não reconhecer (nas fronteiras da psicose) que essas diferenças estão ou estiveram lá e não reconhecer que é diferente (embora normativamente a instituição da cidadania o torne irrelevante para efeitos políticos) nascer-se homem ou mulher, independentemente do que cada um venha livremente a fazer daí em diante. Sem dúvida, o direito democrático e a política da autonomia criam e afirmam, fazem ser e impõem, uma realidade nova que modifica as relações entre os termos em presença: por exemplo, a igualdade de direitos entre mulheres e homens - mas sem que esses termos e as suas diferenças deixem de existir noutros planos da realidade. A igualdade de direitos entre as mulheres e os homens não precisa de negar que uns e outros nasceram portadores de caracteres sexuais distintos, não-equivalentes, e não é a igualdade desses caracteres, mas sim uma igualdade independente deles, que estabelece. O mesmo vale no caso dos transexuais e noutros semelhantes do ponto de vista que aqui nos ocupa.
Quem entende, ao contrário do que é a minha posição, que o direito à transexualidade passa pelo BI, deveria ir um pouco mais longe, e defender uma das duas seguintes soluções: ou o BI registaria a condição de transexual e as suas diferenciações internas - e também outras orientações sexuais que viessem a formular-se na base de outros traços identitários; ou o BI registaria o sexo que qualquer adulto maior entendesse ser o seu, independentemente de tutela psicoterapêutica ou psiquiátrica (discriminatórias), ao longo dos diversos períodos da vida. Além de que deveria interrogar-se sobre o que fazer perante o grupo ou "identidade sexual" cujos membros entendessem reivindicar a possibilidade para cada deles de se declarar dos dois sexos (de resto, a iniciativa legislativa a que me referi deveria este tema na ordem do dia de quem entende que o mesmo deve ser objecto de legislação especial).
Por fim, é precisamente porque entendo que cada um deve ter o direito de viver, consigo próprio e nas suas relações com os outros, tão livremente quanto possível a sua sexualidade que penso que as suas orientações e todos os aspectos que relevam de uma escolha individual nesse domínio devem ter por garantia os direitos fundamentais e não disposições que os tornam membros de uma categoria jurídico-política à parte, como é inevitável que venha a ser o caso com o reconhecimento oficial de "identidades sexuais".
A última observação tem a ver com o reparo que a Joana me faz: "… Para além de brincares com coisas que são sérias para muitas pessoas, O que raramente aprecio". Aqui podia remeter simplesmente para o que escrevi ontem Sobre as reciclagens fracturantes da censura puritana. Mas, tratando-se da minha camarada de luta anti-clerical que se distinguiu no exercício do humor ao mesmo tempo subtil e implacável que todos lhe conhecemos contra coisas que são as mais sérias do mundo para muito do catolicismo da casa, limito-me a perguntar-lhe por que razão deveríamos brincar menos com a sexualidade do que com as crenças religiosas, e por que razão não reivindica para estas o mesmo tratamento.
Em suma, enquanto não me forem apresentadas melhores razões que, no todo ou em parte, me façam corrigir o tiro, não vejo maneira de não persistir e reassinar o que escrevi esta manhã.
Honestamente e sans rancune
miguel serras pereira
Massacre no mediterrâneo
por
Ricardo Noronha
Pelo menos 19 pessoas morreram depois de a Marinha israelita ter disparado sobre alguns barcos que activistas pró-palestinianos tinham fretado para levar ajuda à Faixa de Gaza, diz a televisão israelita. Há também 26 feridos. Um comunicado do Governo turco denuncia que o Exército israelita usou a força contra um grupo de ajuda humanitária, incluindo "idosos, mulheres e crianças".
Várias organizações, entre elas o Comité de Solidariedade com a Palestina, convocaram uma concentração para hoje, às 17h30, em frente à embaixada de Israel em Lisboa para denunciar mais este crime.
Repressão preventiva, diz o professor
por
Ricardo Noronha
"Chama-se a isto guerrilha urbana", diz, sem hesitar, José Manuel Anes, presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT). "Estes grupos são uma ameaça à segurança, particularmente nesta época, de crise económica e social. Apesar de poucos, são perigosos, violentos e estão sempre prontos a aproveitar-se de situações de confronto com as autoridades e ajuntamentos, para lançarem a confusão e a desordem", afiança o dirigente do OSCOT. Para este especialista em segurança, "devem ser vigiados e reprimidos enquanto o grupo ainda tem uma dimensão controlável". O Serviço de Informações e Segurança (SIS) estima serem na casa da centena os elementos mais activos.
«Grupos radicais fizeram emboscada à polícia» (Diário de Notícias)
Já conhecíamos as capacidades de Valentina Marcelino no domínio da ficção e do policial negro. Mas não se esperava de José Manuel Anes uma incursão tão evidente no território dos psicotrópicos. O que terão posto na água do Observatório?
There is no such thing as society
por
Miguel Serras Pereira
Leio no DN (assinada por J.P. Henriques e com data de 27 de Maio passado) a seguinte notícia:
"(…) há um novo tema fracturante na agenda parlamentar: o reforço dos direitos de identidade dos transexuais.
O Bloco de Esquerda apresenta na próxima semana um projecto que prevê que quem mudar de sexo, mesmo sem ter feito uma operação, terá direito a ver a mudança consagrada oficialmente nos documentos de identificação. Hoje, é impossível fazê-lo: um homem português que se torne mulher continua identificado no BI como tendo um sexo masculino (ou vice-versa).
Depois do BE será a vez do PS a seguir na mesma direcção. (…)
Ambos os projectos prometem polémica. E isto por causa da forma como se reconhecerá que alguém mudou de sexo. Não será exigida nenhuma cirurgia: um homem poderá passar a ser oficialmente mulher mantendo o pénis; uma mulher poderá passar a ser reconhecida oficialmente como homem mantendo a vagina.
O reconhecimento - seguindo, aliás, legislação europeia - será feito socialmente. Um médico e/ou um psicólogo que acompanhem o transexual vão ter de atestar legalmente que a vida social do requerente já não está conforme o seu sexo "oficial". Ou seja, revelando, por exemplo, que faz tratamentos hormonais. E então a mudança será reconhecida nos documentos de identidade".
Muito bem. Ocorrem-me imediatamente outros reconhecimentos oficiais a reclamar, tendo em vista a extensão deste caderno reivindicativo, talvez capaz de levar, ao contrário de temas mais clássicos da democracia e do socialismo, à unidade da esquerda, senão nas ruas (exceptuadas algumas performances e outras instalações manifestantes) e no plano da transformação das instituições, pelo menos no Parlamento e nos lares de numerosos agregados familiares das mais diversas orientações sexuais:
— o reconhecimento oficial do direito de cada um à data de nascimento por que optar em função dos seus valores e convicções pessoais. (Será justo impor a um tipo como eu, por exemplo, uma data de nascimento que remonta à primeira metade do século passado, injuriando a sua juventude de espírito e impondo-lhe em nome de uma objectividade cronológica, que nada tem de neutro, a terceira idade?Será justo negar à Inês de Medeiros ou ao João Galamba, ao Bernardino Soares ou à Ritinha Rato a provecta idade cujo reconheciento a sua argúcia política sobejamente confortaria?)
— idem quanto ao direito dos cidadãos adultos ao registo no BI de uma filiação optativa, quando este seja mais consentânea com o seu comportamento social do que a filiação biológica. (Porque não há-de poder um artista declarar-se filho de Estaline e Eva Braun, ou de Maria Madalena e da Virgem Maria, ou de Hitler & Hitler Co, se for essa a sua legítima preferência estética? Porque não deverá um@ cartomante ou naturist@, já discriminad@ pela racionalidade ainda dominante em sectores minoritários, mas activos da nossa sociedade, poder declarar como filiação electiva o casal Curie ou a trindade dos pastorinhos de Fátima? Ou um pobre agente da ordem ser oficialmente reconhecido como rebento do matrimónio Aníbal e Senhora de Cavaco Silva?)
— idem quanto ao direito à inscrição de uma etnia ou cor de pele livremente escolhida a pretexto de especiosos argumentos iliberais, que negam a dimensão afectiva de cada um, ao arrepio do que poderíamos chamar os direitos naturais e/ou inerentes à legitimidade histórica do fim das "grandes narrativas".
Não foi minha intenção aqui ser exaustivo, mas apenas chamar a atenção para a timidez, senão reformismo calculado, dos projectos em fila de espera. E aproveitar o ensejo para reiterar a oportunidade inadiável da consagração constitucional - que nos colocaria de novo no quadro de honra da Europa - do princípio thatecheriano: There is no such thing as society - de resto adoptado, já de longa data, pelos costumes do grosso da nossa classe política, mas cuja adequada difusão pedagógica oficial junto da população é ainda muito insuficiente.
"(…) há um novo tema fracturante na agenda parlamentar: o reforço dos direitos de identidade dos transexuais.
O Bloco de Esquerda apresenta na próxima semana um projecto que prevê que quem mudar de sexo, mesmo sem ter feito uma operação, terá direito a ver a mudança consagrada oficialmente nos documentos de identificação. Hoje, é impossível fazê-lo: um homem português que se torne mulher continua identificado no BI como tendo um sexo masculino (ou vice-versa).
Depois do BE será a vez do PS a seguir na mesma direcção. (…)
Ambos os projectos prometem polémica. E isto por causa da forma como se reconhecerá que alguém mudou de sexo. Não será exigida nenhuma cirurgia: um homem poderá passar a ser oficialmente mulher mantendo o pénis; uma mulher poderá passar a ser reconhecida oficialmente como homem mantendo a vagina.
O reconhecimento - seguindo, aliás, legislação europeia - será feito socialmente. Um médico e/ou um psicólogo que acompanhem o transexual vão ter de atestar legalmente que a vida social do requerente já não está conforme o seu sexo "oficial". Ou seja, revelando, por exemplo, que faz tratamentos hormonais. E então a mudança será reconhecida nos documentos de identidade".
Muito bem. Ocorrem-me imediatamente outros reconhecimentos oficiais a reclamar, tendo em vista a extensão deste caderno reivindicativo, talvez capaz de levar, ao contrário de temas mais clássicos da democracia e do socialismo, à unidade da esquerda, senão nas ruas (exceptuadas algumas performances e outras instalações manifestantes) e no plano da transformação das instituições, pelo menos no Parlamento e nos lares de numerosos agregados familiares das mais diversas orientações sexuais:
— o reconhecimento oficial do direito de cada um à data de nascimento por que optar em função dos seus valores e convicções pessoais. (Será justo impor a um tipo como eu, por exemplo, uma data de nascimento que remonta à primeira metade do século passado, injuriando a sua juventude de espírito e impondo-lhe em nome de uma objectividade cronológica, que nada tem de neutro, a terceira idade?Será justo negar à Inês de Medeiros ou ao João Galamba, ao Bernardino Soares ou à Ritinha Rato a provecta idade cujo reconheciento a sua argúcia política sobejamente confortaria?)
— idem quanto ao direito dos cidadãos adultos ao registo no BI de uma filiação optativa, quando este seja mais consentânea com o seu comportamento social do que a filiação biológica. (Porque não há-de poder um artista declarar-se filho de Estaline e Eva Braun, ou de Maria Madalena e da Virgem Maria, ou de Hitler & Hitler Co, se for essa a sua legítima preferência estética? Porque não deverá um@ cartomante ou naturist@, já discriminad@ pela racionalidade ainda dominante em sectores minoritários, mas activos da nossa sociedade, poder declarar como filiação electiva o casal Curie ou a trindade dos pastorinhos de Fátima? Ou um pobre agente da ordem ser oficialmente reconhecido como rebento do matrimónio Aníbal e Senhora de Cavaco Silva?)
— idem quanto ao direito à inscrição de uma etnia ou cor de pele livremente escolhida a pretexto de especiosos argumentos iliberais, que negam a dimensão afectiva de cada um, ao arrepio do que poderíamos chamar os direitos naturais e/ou inerentes à legitimidade histórica do fim das "grandes narrativas".
Não foi minha intenção aqui ser exaustivo, mas apenas chamar a atenção para a timidez, senão reformismo calculado, dos projectos em fila de espera. E aproveitar o ensejo para reiterar a oportunidade inadiável da consagração constitucional - que nos colocaria de novo no quadro de honra da Europa - do princípio thatecheriano: There is no such thing as society - de resto adoptado, já de longa data, pelos costumes do grosso da nossa classe política, mas cuja adequada difusão pedagógica oficial junto da população é ainda muito insuficiente.
Proença
por
Miguel Cardina
O Hugo Dias escreveu um post simples e certeiro sobre as declarações de João Proença relativamente à manifestação de 29 de Maio. Vale a pena ler.
A larga avenida da liberdade
por
Ricardo Noronha
A manifestação de Sábado foi um sucesso para os seus organizadores e demonstrou o descontentamento acumulado em largas camadas da população. Pouco interessa se lá estavam 200 000 ou 300000, até porque num espaço destas características não cabe tanta gente, pelo que qualquer contabilidade teria que ter em conta a saída e a entrada num lado e outro da manifestação. O professos Stoleroff e a ex-sindicalista não estariam nunca em condições de o fazer, pelo que só a própria CGTP e a polícia poderiam avançar um cálculo. Em tempos os jornalistas organizavam-se em vários pontos do percurso para chegar a conclusões aproximativas. Agora põem uma setinha para a direita ao lado da fotografia do Carvalho da Silva. Mudam-se os tempos...
Isto dito, passo à concentração anticapitalista. Parece-me um pouco lamentável que um serviço de ordem não tenha chegado para conversar com quem apenas queria integrar um protesto com o qual minimamente se identificava. Estou certo que a concentração poderia ter simplesmente entrado na manifestação quando tivessem acabado de desfilar todos os sindicatos, sem incidentes ou problemas de qualquer tipo, do modo mais natural do mundo. Natural é aliás a palavra que me parece mais apropriada para definir a presença daquelas pessoas ali e a sua vontade de integrar um protesto colectivo, exprimindo os seus próprios pontos de vista.
Em vez disso, quem se concentrou em frente ao «DN» viu-se rodeado por um cordão de seguranças que poderão ter muitas qualidades, mas não a de estarem integrados na actividade sindical. Tratava-se de um grupo de pessoas que a custo se distinguia de polícias à paisana, que não estavam identificadas enquanto elementos do serviço de ordem da CGTP e recusaram qualquer diálogo com as pessoas que vigiaram durante 3 horas. O tipo de pessoa que se encontra habitualmente à porta de uma discoteca.
E tudo isto em vão, uma vez que uma parte das pessoas que ali se encontrava decidiu efectivamente entrar e fê-lo, um pouco mais abaixo, não perdendo a oportunidade de insultar os seus interlocutores e esboçar um pequeno confronto. Tudo isto é certamente lamentável, mas previsível a partir do momento em que se resolve recorrer aos homens da segurança. Muita energia desperdiçada num combate em que ninguém tinha nada a ganhar. A não ser, evidentemente, os que ali foram ganhar um dia de trabalho enquanto outros se manifestavam.
A outra parte da concentração anticapitalista fez exactamente aquilo que se tinha proposto. Aguardou até ao fim, dialogou com os membros do serviço de ordem que ali ficaram e desceu a Av. da Liberdade sem incidentes, gritando as palavras de ordem que decidiu colectivamente. O ambiente era excelente. Vários manifestantes que regressavam aos autocarros apoiaram o que se gritava - com o destaque evidente para o apelo à realização de uma greve geral. A indignação era o sentimento mais evidente e, não por acaso, foi a palavra mais repetida por todos os observadores. As companhias eram, nalguns casos, as mais improváveis, mas assim mesmo se faz a luta. Posso dizer que as apreciei a todas.
Hoje, o Público resolveu chamar à capa Cristiano Ronaldo, para surpreender os seus leitores no dia a seguir a uma das maiores manifestações de sempre. O Nuno já disse quase tudo. Mas o descaramento é tão gritante que não há mesmo como evitar mencioná-lo. É esse o fado destes jornalistas: como demonstrar que é a realidade que se engana quando tudo parece apontar o contrário?
Sobre infiltrações e histórias mal contadas
por
Ricardo Noronha
Diz-nos a RTP que um grupo extremista se terá infiltrado na manifestação da CGTP no passado Sábado, provocando depois desacatos nas Portas de Stº Antão.
Seguindo uma fonte policial e delineando o perfil de uma ameaça difusa, de uma conspiração oculta, a TV do Estado transformou uma carga policial sobre todas as pessoas que se encontravam naquela rua no resultado das acções maléficas das tenebrosas forças do mal. Há já algum tempo que a agência de comunicação da PSP vai ganhando tempo noticioso para informar os portugueses dos terríveis perigos que correm, devido à nebulosa aglomeração de alguns meliantes que conspiram contra a paz e a ordem pública.
Simplesmente, desta vez há relatos de várias pessoas das mais diversas opiniões e sensibilidades, que contam todas o mesmo, pela simples razão de o terem visto. Na impossibilidade de converter os olhos das testemunhas em ecrãs televisivos, a manobra parece ter falhado. E assim é que tanto um jornalista do SOL, como uma blogger do Jugular nos falam do que realmente aconteceu ao fim da tarde em frente ao Restaurante «Asia».
Uma detenção aparatosa provocou a indignação dos presentes. O medo que a polícia tem de multidões fez o resto. Rodeados por pessoas vindas da manifestação - e para o bem e para o mal, não consta que 300 mil extremistas tenham descido a Av. da Liberdade naquele dia - chamaram o serviço de intervenção rápida, cujos agentes fizeram exactamente aquilo que o seu nome sugere.: serviram rapidamente com a sua intervenção o conjunto das pessoas que ali se encontrava a observar a cena e que apenas teve tempo de esboçar um gesto de reacção. Não sem antes terem retirado as suas identificações, que como se sabe são incómodas e desnecessárias em momentos desta natureza. Hoje em dia vêm-se tantas coisas na rua.
Quando começaram a empurrar a primeira fila, uma senhora de idade que observava a cena desfaleceu e ficou caída no chão, precisamente no trilho que eles procuravam abrir para fazer passar o carro onde seguia o detido. Como as pessoas não se afastassem imediatamente e protestassem pela demonstração gratuita de violência, iniciaram uma carga policial que só terminou no largo de S. Domingos. Os agentes da PSP devem estar orgulhosos de si próprios, já que demonstraram pela enésima vez a sua especial vocação para espancar turistas, idosos, transeuntes e comerciantes. Os imigrantes sentiram-se desta vez um pouco menos sós.
Quando começaram a empurrar a primeira fila, uma senhora de idade que observava a cena desfaleceu e ficou caída no chão, precisamente no trilho que eles procuravam abrir para fazer passar o carro onde seguia o detido. Como as pessoas não se afastassem imediatamente e protestassem pela demonstração gratuita de violência, iniciaram uma carga policial que só terminou no largo de S. Domingos. Os agentes da PSP devem estar orgulhosos de si próprios, já que demonstraram pela enésima vez a sua especial vocação para espancar turistas, idosos, transeuntes e comerciantes. Os imigrantes sentiram-se desta vez um pouco menos sós.
E se pensarmos que ainda não há uma semana fomos informados do espancamento de dois miúdos pela polícia e corre célere o boato de novos incidentes verificados na noite de Sábado, no Bairro Alto, tudo isto terá porventura a sua lógica. Sim, aquelas mãos que carregam cassetetes têm subido e descido amiúde, num movimento que prenuncia talvez que algo está para acontecer, algo imprevisível e cujas consequências a custo se imaginam. Ventos e tempestades e etc. e tal...
Num curto momento, nas Portas de Stº Antão, todo o ruído mediático que tem procurado persistentemente inventar a existência de um grupo de indivíduos que seria portador da desordem e provocador de desacatos, os jornalistas que escrevem como polícias, os comentadores que assumem um ar grave para falar do perigo de um surto de violência, tudo isso se revelou em toda a sua estúpida efabulação. É a rua cheia, que se indigna e se revolta, que os assusta. E nessa rua, os únicos infiltrados estão fardados de azul.
Adenda: O boato sobre espancamentos verificados na noite de Sábado no Bairro Alto, por agentes da PSP, parece confirmar-se. É caso para dizer que cada escavadela uma minhoca - os anarquistas, extemistas e radicais parecem multiplicar-se como coelhos. Ainda hão-de chegar à conclusão de que o Inspector-Geral da Administração Interna faz parte de um grupo infiltrado. Aqui fica, à atenção da jornalista Valentina Marcelino
Adenda: O boato sobre espancamentos verificados na noite de Sábado no Bairro Alto, por agentes da PSP, parece confirmar-se. É caso para dizer que cada escavadela uma minhoca - os anarquistas, extemistas e radicais parecem multiplicar-se como coelhos. Ainda hão-de chegar à conclusão de que o Inspector-Geral da Administração Interna faz parte de um grupo infiltrado. Aqui fica, à atenção da jornalista Valentina Marcelino
30/05/10
Sobre as reciclagens fracturantes da censura puritana
por
Miguel Serras Pereira
Tive notícia, através de um post da Fernanda Câncio, de que uns quantos activistas fracturantes e zeladores dos direitos de minorias, que se auto-definem reclamando-se de uma identidade para a qual reivindicam o reconhecimento do Estado, encaram a hipótese de incriminar perante os tribunais a difusão de uma cantiga que falta ao respeito ao contrato matrimonial entre pessoas do mesmo sexo, ou às ideias e convicções dos que o defendem, e que injuria os homossexuais.
É assim que a avidez de direitos particulares, muitas vezes redobrada pelos apetites das discriminações positivas, abre caminho à erosão e restrição da concepção democrática dos direitos de cidadania, e, no caso em apreço, à censura generalizada.
É, com efeito, muito simples: se proibimos o desrespeito - de bom ou mau gosto - pela homossexualidade, como não o proibiremos pela sexualidade em geral? Se o proibimos pelo casamento homossexual, como não o proibiremos pelo casamento tout court? Ou pelas convicções políticas e religiosas? Ou pelas tradições culturais? E, avançando um pouco mais, se proibimos a expressão de concepções politicamente incorrectas, que têm como corolário, a serem aplicadas, a opressão ou discriminação de certos grupos ou mesmo do conjunto do género humano, a quem confiaremos senão às autoridades do Estado a definição da correcção política, legitimando o seu poder de limitar a liberdade ao que a sua autoridade entender como correcto?
Pierre Vidal-Naquet, que insistiu como poucos na necessidade de desmontar as efabulações dos negacionistas do extermínio nazi e deu um raro exemplo nessa matéria, sempre criticou a posição daqueles que criminalizavam juridicamente e reclamavam a punição legal do negacionismo. E, de facto, parece-me evidente que, salvaguardadas as devidas proporções, a mesma atitude é de rigor no caso que nos ocupa. Tanto mais que o proibicionismo do politicamente correcto, além de legitimar a extensão da censura, permite aos partidários da discriminação apresentarem-se como defensores da liberdade.
Voltando a um plano mais imediato, basta pensar no que seria preciso proibir para limitar a liberdade de expressão nos casos em que fosse usada para veicular concepções discriminatórias frente às identidades que cada um entenda reivindicar. Para não irmos mais longe, uma porção não despicienda de criações discursivas que foram obra de homossexuais não escaparia à aplicação dos critérios de censura que seria necessário legitimar para criminalizar as cantigas imbecis do tipo atrás referido. Como não escapariam à censura muitas das canções de Brassens, que tão frequentemente tomam por alvo tanto as versões puritanas como as reciclagens fracturantes da servidão voluntária e da imbecilidade auto-satisfeita do "sexualmente correcto".
É assim que a avidez de direitos particulares, muitas vezes redobrada pelos apetites das discriminações positivas, abre caminho à erosão e restrição da concepção democrática dos direitos de cidadania, e, no caso em apreço, à censura generalizada.
É, com efeito, muito simples: se proibimos o desrespeito - de bom ou mau gosto - pela homossexualidade, como não o proibiremos pela sexualidade em geral? Se o proibimos pelo casamento homossexual, como não o proibiremos pelo casamento tout court? Ou pelas convicções políticas e religiosas? Ou pelas tradições culturais? E, avançando um pouco mais, se proibimos a expressão de concepções politicamente incorrectas, que têm como corolário, a serem aplicadas, a opressão ou discriminação de certos grupos ou mesmo do conjunto do género humano, a quem confiaremos senão às autoridades do Estado a definição da correcção política, legitimando o seu poder de limitar a liberdade ao que a sua autoridade entender como correcto?
Pierre Vidal-Naquet, que insistiu como poucos na necessidade de desmontar as efabulações dos negacionistas do extermínio nazi e deu um raro exemplo nessa matéria, sempre criticou a posição daqueles que criminalizavam juridicamente e reclamavam a punição legal do negacionismo. E, de facto, parece-me evidente que, salvaguardadas as devidas proporções, a mesma atitude é de rigor no caso que nos ocupa. Tanto mais que o proibicionismo do politicamente correcto, além de legitimar a extensão da censura, permite aos partidários da discriminação apresentarem-se como defensores da liberdade.
Voltando a um plano mais imediato, basta pensar no que seria preciso proibir para limitar a liberdade de expressão nos casos em que fosse usada para veicular concepções discriminatórias frente às identidades que cada um entenda reivindicar. Para não irmos mais longe, uma porção não despicienda de criações discursivas que foram obra de homossexuais não escaparia à aplicação dos critérios de censura que seria necessário legitimar para criminalizar as cantigas imbecis do tipo atrás referido. Como não escapariam à censura muitas das canções de Brassens, que tão frequentemente tomam por alvo tanto as versões puritanas como as reciclagens fracturantes da servidão voluntária e da imbecilidade auto-satisfeita do "sexualmente correcto".
O Bloco de Esquerda e a manifestação de ontem
por
Miguel Madeira
Ali em baixo, eduardo reis escreve:
1 - As condições da participação do BE na manifestação de ontem foram combinadas com a CGTP
2 - Os aderentes do Bloco não usavam nenhuma marca que os identificasse como sendo do BE, tirando placards feitos a partir de cartazes onde não aparecia qualquer referência ao partido (ou seja, só quem andasse à procura do BE na manifestação é que "veria" lá o BE; para quem não fosse esse o caso, veria apenas uma carrada de gente com uns placards azuis); um pormenor - penso que uma corrente do BE desfilou agregada em subsector dentro do sector do partido, e antes da manifestação esses efectivamente distribuíram o jornal da corrente (ignoro se o fizeram durante a manifestação propriamente dita).
3 - Extracto do mail que o BE enviou ao seus aderentes convocando-os para a manifestação:"...Os camaradas que têm intervenção sindical são encorajados a participar nos respectivos desfiles sindicais. Os camaradas que são trabalhadores precários são encorajados a participar nas iniciativas que tomarem os movimentos de precários. Todos os activistas de movimentos sociais que se integrem nesta jornada de protesto são encorajados a mobilizar e animar a presença destes movimentos sociais...." Ou seja, só os "bloquistas" que não estivessem integrados em outras organizações promotoras da manifestação é que eram supostos participar no "cortejo" do BE (isto é, quem se manifestou integrado no sector do BE foi quem provavelmente não se teria ido manifestar se esse partido não tivesse organizado uma participação na manif).
fico agora à espera que os mesmos comentem o facto de, numa manifestação oraganizada exclusivamente pela CGTP, o Bloco de Esquerda ter voltado na desfilar organizadamente com os seus militantes ou simpatizantes agregados em bloco ou sector da manifestação.Eu penso ser o único membro do blogue ligado ao Bloco de Esquerda (e estive lá). A esse respeito digo:
1 - As condições da participação do BE na manifestação de ontem foram combinadas com a CGTP
2 - Os aderentes do Bloco não usavam nenhuma marca que os identificasse como sendo do BE, tirando placards feitos a partir de cartazes onde não aparecia qualquer referência ao partido (ou seja, só quem andasse à procura do BE na manifestação é que "veria" lá o BE; para quem não fosse esse o caso, veria apenas uma carrada de gente com uns placards azuis); um pormenor - penso que uma corrente do BE desfilou agregada em subsector dentro do sector do partido, e antes da manifestação esses efectivamente distribuíram o jornal da corrente (ignoro se o fizeram durante a manifestação propriamente dita).
3 - Extracto do mail que o BE enviou ao seus aderentes convocando-os para a manifestação:"...Os camaradas que têm intervenção sindical são encorajados a participar nos respectivos desfiles sindicais. Os camaradas que são trabalhadores precários são encorajados a participar nas iniciativas que tomarem os movimentos de precários. Todos os activistas de movimentos sociais que se integrem nesta jornada de protesto são encorajados a mobilizar e animar a presença destes movimentos sociais...." Ou seja, só os "bloquistas" que não estivessem integrados em outras organizações promotoras da manifestação é que eram supostos participar no "cortejo" do BE (isto é, quem se manifestou integrado no sector do BE foi quem provavelmente não se teria ido manifestar se esse partido não tivesse organizado uma participação na manif).
O Partido Tripeiro (em formação)
por
João Tunes
"Atendendo à situação do Norte, que tem regredido nos últimos dez anos, e à incapacidade dos partidos a nível distrital de estabelecer acordos, era imperioso criar uma força pragmática, sem limitações ideológicas, para a defesa dos interesses da região", explicou ao JN Pedro Baptista, militante do PS e um dos principais mentores do projecto, a par de João Anacoreta Correia, do CDS.
Aquilo que um transmontano-duriense como eu mais pode desconfiar é, sob a bandeira do Norte, assistir aos sinais do centralismo portuense a erguer-se. Como diz o cantor: “para melhor, está bem, está bem / para pior, já basta assim”. Não lhes bastou terem conseguido impor que ao vinho do Douro se chamasse vinho do Porto?
Foto: Os membros da “Confraria Gastronómica Tripas à Moda do Porto”
(publicado também aqui)
Aquilo que um transmontano-duriense como eu mais pode desconfiar é, sob a bandeira do Norte, assistir aos sinais do centralismo portuense a erguer-se. Como diz o cantor: “para melhor, está bem, está bem / para pior, já basta assim”. Não lhes bastou terem conseguido impor que ao vinho do Douro se chamasse vinho do Porto?
Foto: Os membros da “Confraria Gastronómica Tripas à Moda do Porto”
(publicado também aqui)
29/05/10
Patriotismo nacionalista versus internacionalismo
por
João Tunes
O Miguel Serras Pereira foi buscar um meu post noutro blogue para me atribuir a intenção de culpar o PCP de hoje (via discurso de Jerónimo de Sousa na Voz do Operário) de uma deriva nacionalista face ao histórico lastro internacionalista (proletário) que levou Cunhal a, em 1968/69, aderindo ou submetendo-se à doutrina Brejnev acerca das “soberanias limitadas”, justificar, numa forma miserável porque subserviente, a invasão e ocupação da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia (que repetiria, em 1979, quando da invasão do Afeganistão pela URSS ou da intervenção militar cubana na Etiópia). E remete-me, a propósito, para estudar e entender a impregnação atávica do PCP pelo nacionalismo, para a leitura do académico José Neves. Levanto-me, portanto, para pedir a palavra para “defesa da honra” (mesmo sem ter lido Neves, o que farei em breve, juro aqui).
Primeiro, apesar de me considerar um cosmopolita tendencial, não tenho fixações condenatórias prévias perante o nacionalismo, o regionalismo, até o bairrismo. Pelo contrário. Sem que isso me iniba de ser um adepto do federalismo europeu. Mas acho que os processos de integração se fazem com impulsos de agregação intercalados com reforços de identificações próximas e localizadas, numa necessidade de se respirar umas vezes a diferença e noutras a unidade, mesmo que implique afirmações intermédias de soberania. Com avanços e recuos, como tudo deve ser feito. Sem violência nem comando, pai e mãe dos extremismos e das guerras fraticidas. Para não me alongar, direi que sou tão adepto do federalismo europeu quanto me entusiasma a experiência soberana, embora microscópica mas simbólica, do Kosovo.
Segundo, o “internacionalismo proletário” passou a retórica vazia própria de propagandas intensas, desde que Estaline, no início da década de 30 do século XX, afastando Zinoviev do comando do Komintern e exilando Trotsky, feriu o velho leninismo e impôs a teoria de “socialismo num só país”. Que, quanto a expressão internacional e internacionalista, passou a impor a co-habitação de um centro imóvel e inamovível (Moscovo) com as viagens de satélites que, nas suas órbitas próprias e limitadas, se deviam adaptar às condições locais (nacionais). Cunhal, para Portugal, mais tarde e já depois da morte de Estaline, mas mantendo-se-lhe fiel, teorizou curto mas foi incisivo acerca desta questão, ao discursar e escrever sobre a natureza bipolar do comunismo português, destinado a ser simultaneamente patriótico e internacionalista, esmagando veleidades de discussão acerca da contradição, ou potencial de contradição, implícita. O que não impediu que em todas as ocasiões em que a contradição se levantou, aqui ou algures, ele tivesse optado pelo predomínio do “centro”. Ou seja, o nacionalismo era bom (patriótico) porque ajudava à implantação local do comunismo mas se colidisse com o “centro”, este tinha o direito a esmagar as forças centrífugas.
Terceiro, a referida afirmação nacionalista e desbragada de Jerónimo de Sousa, além da distância ciclópica de talento e liderança entre este e Cunhal, não é desconforme com o pensamento clássico e conservador do PCP na gestão da duplicidade relativamente ao patriotismo e ao internacionalismo. Faltando-lhe o “centro”, resta ao comunismo português uma viagem internacionalista errática (onde cabe quase tudo, o que mexe contra os Estados Unidos e Israel, mas também os pólos formais de poder comunista aparentado ou longínquo, como Angola, a Venezuela e a China, e onde partidos comunistas conservam as suas ditaduras), uma esperança apocalíptica no desmoronar do capitalismo que leve para a cova as democracias e o primado da liberdade (daí a “esperança grega”), mais um reforço do patriotismo serôdio para sensibilizar o “bom povo português”. Sem dúvida que Cunhal faria e diria melhor (não é imaginável ele a debitar os medíocres e repetitivos discursos sindicalistas de Jerónimo). Mas não substancialmente diferente (lembre-se que o seu primeiro acto em termos de relações internacionais do PCP após a implosão da URSS foi viajar para a China, o velho demónio da degenerescência maoísta, tentando readaptar-se a um novo “centro”). Assim, não assinalei uma dicotomia mas sim uma (velha) duplicidade.
Primeiro, apesar de me considerar um cosmopolita tendencial, não tenho fixações condenatórias prévias perante o nacionalismo, o regionalismo, até o bairrismo. Pelo contrário. Sem que isso me iniba de ser um adepto do federalismo europeu. Mas acho que os processos de integração se fazem com impulsos de agregação intercalados com reforços de identificações próximas e localizadas, numa necessidade de se respirar umas vezes a diferença e noutras a unidade, mesmo que implique afirmações intermédias de soberania. Com avanços e recuos, como tudo deve ser feito. Sem violência nem comando, pai e mãe dos extremismos e das guerras fraticidas. Para não me alongar, direi que sou tão adepto do federalismo europeu quanto me entusiasma a experiência soberana, embora microscópica mas simbólica, do Kosovo.
Segundo, o “internacionalismo proletário” passou a retórica vazia própria de propagandas intensas, desde que Estaline, no início da década de 30 do século XX, afastando Zinoviev do comando do Komintern e exilando Trotsky, feriu o velho leninismo e impôs a teoria de “socialismo num só país”. Que, quanto a expressão internacional e internacionalista, passou a impor a co-habitação de um centro imóvel e inamovível (Moscovo) com as viagens de satélites que, nas suas órbitas próprias e limitadas, se deviam adaptar às condições locais (nacionais). Cunhal, para Portugal, mais tarde e já depois da morte de Estaline, mas mantendo-se-lhe fiel, teorizou curto mas foi incisivo acerca desta questão, ao discursar e escrever sobre a natureza bipolar do comunismo português, destinado a ser simultaneamente patriótico e internacionalista, esmagando veleidades de discussão acerca da contradição, ou potencial de contradição, implícita. O que não impediu que em todas as ocasiões em que a contradição se levantou, aqui ou algures, ele tivesse optado pelo predomínio do “centro”. Ou seja, o nacionalismo era bom (patriótico) porque ajudava à implantação local do comunismo mas se colidisse com o “centro”, este tinha o direito a esmagar as forças centrífugas.
Terceiro, a referida afirmação nacionalista e desbragada de Jerónimo de Sousa, além da distância ciclópica de talento e liderança entre este e Cunhal, não é desconforme com o pensamento clássico e conservador do PCP na gestão da duplicidade relativamente ao patriotismo e ao internacionalismo. Faltando-lhe o “centro”, resta ao comunismo português uma viagem internacionalista errática (onde cabe quase tudo, o que mexe contra os Estados Unidos e Israel, mas também os pólos formais de poder comunista aparentado ou longínquo, como Angola, a Venezuela e a China, e onde partidos comunistas conservam as suas ditaduras), uma esperança apocalíptica no desmoronar do capitalismo que leve para a cova as democracias e o primado da liberdade (daí a “esperança grega”), mais um reforço do patriotismo serôdio para sensibilizar o “bom povo português”. Sem dúvida que Cunhal faria e diria melhor (não é imaginável ele a debitar os medíocres e repetitivos discursos sindicalistas de Jerónimo). Mas não substancialmente diferente (lembre-se que o seu primeiro acto em termos de relações internacionais do PCP após a implosão da URSS foi viajar para a China, o velho demónio da degenerescência maoísta, tentando readaptar-se a um novo “centro”). Assim, não assinalei uma dicotomia mas sim uma (velha) duplicidade.
28/05/10
Exercícios Espirituais
por
Miguel Serras Pereira
Tenho vindo a encontrar com frequência crescente em discussões que são os exercícios espirituais de cada dia de alguma gente empenhada em várias subversões ou desconstruções preliminares um tipo de "discurso" que revela que o verdadeiro alvo da crítica é o "império do sentido" ou a "tirania do Logos".
As suas formulações acompanham-se, as mais das vezes, de citações explícitas ou cifradas a autores mitificados, cujos nomes basta proferir ou evocar entre iniciados para dispensar outras explicações.
Refiro-me a enunciados do tipo:
"Devemos aprender a detectar a acção de um mecanismo do Poder na imposição que a sociedade faz à criança da mediação da linguagem como forma necessária das suas relações com os outros e a realidade dada - o que significa que, obrigando a dizer, 'toda a linguagem é fascista' (Roland Barthes), e que a destruição do Poder, sempre fascista, passa pela destruição da linguagem"; ou: "A Escola de Frankfurt mostrou, contra o reformismo social-democrata, que uma satisfação generalizada das necessidades básicas não só é compatível com reprodução do capitalismo, como passa hoje a consolidá-la, mas tanto T.W. Adorno e Max Horkheimer como, de certo modo, o próprio Walter Benjamin não souberam ver a que ponto a sua frustração - como indica a releitura lacaniana de Hegel por Zizek - se impõe como tarefa revolucionária preliminar, abrindo novos horizontes também à acção sindical "; ou: "Aqueles que se serviam de argumentos pseudo-revolucionários para contestar a direcção revolucionária de Estaline eram, na realidade, contra-revolucionários, como demonstra o facto de terem sido implacavelmente liquidados pelos verdadeiros continuadores da Revolução de Outubro"; ou ainda: "A participação livre e igualitária do poder político não abolirá as leis nem as instituições; limitar-se-á a democratizá-las, atribuindo aos cidadãos a actividade governante; por isso, o que importa não é instituir a democracia, mas, na esteira de Michel Foucault, antecipar a nova disciplina ou mecanismos de (auto-)controle que a transferência para cada um e todos os cidadãos das responsabilidades democráticas governantes não podem deixar de acarretar".
Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente, mas julgo poder ficar por aqui, contentando-me com sugerir que estamos perante uma variante da empresa de destruição da linguagem e do pensamento, através da rarefacção e redução codificadas das palavras e do seu regime de significação, que George Orwell descreveu na sua análise do Newspeak. Aqui o vocabulário pode ser abundante, promover neologismos e mots-valises, multiplicar as alusões a bibliografias eruditas e as citações de autores, opiniões e doutrinas diferentes, contanto que o faça irresponsável e inconsistentemente q.b.: quer dizer, reduzindo o sentido e a exigência de dar conta e razão da linguagem e do pensamento comuns, bem como a sua capacidade de imaginar outras razões que verdadeiramente o sejam, efectivamente alternativas frente às razões da dominação, a um capricho gratuito e ornamental, ou a um rito de inversão que se limita a exasperar - entre o monstruoso e o grotesco - a ordem que contesta, esgotando-se na apologia do terror absurdo dos seu delírio de omnipotência ou na recitação inócua de um fantasiar indiferente.
As suas formulações acompanham-se, as mais das vezes, de citações explícitas ou cifradas a autores mitificados, cujos nomes basta proferir ou evocar entre iniciados para dispensar outras explicações.
Refiro-me a enunciados do tipo:
"Devemos aprender a detectar a acção de um mecanismo do Poder na imposição que a sociedade faz à criança da mediação da linguagem como forma necessária das suas relações com os outros e a realidade dada - o que significa que, obrigando a dizer, 'toda a linguagem é fascista' (Roland Barthes), e que a destruição do Poder, sempre fascista, passa pela destruição da linguagem"; ou: "A Escola de Frankfurt mostrou, contra o reformismo social-democrata, que uma satisfação generalizada das necessidades básicas não só é compatível com reprodução do capitalismo, como passa hoje a consolidá-la, mas tanto T.W. Adorno e Max Horkheimer como, de certo modo, o próprio Walter Benjamin não souberam ver a que ponto a sua frustração - como indica a releitura lacaniana de Hegel por Zizek - se impõe como tarefa revolucionária preliminar, abrindo novos horizontes também à acção sindical "; ou: "Aqueles que se serviam de argumentos pseudo-revolucionários para contestar a direcção revolucionária de Estaline eram, na realidade, contra-revolucionários, como demonstra o facto de terem sido implacavelmente liquidados pelos verdadeiros continuadores da Revolução de Outubro"; ou ainda: "A participação livre e igualitária do poder político não abolirá as leis nem as instituições; limitar-se-á a democratizá-las, atribuindo aos cidadãos a actividade governante; por isso, o que importa não é instituir a democracia, mas, na esteira de Michel Foucault, antecipar a nova disciplina ou mecanismos de (auto-)controle que a transferência para cada um e todos os cidadãos das responsabilidades democráticas governantes não podem deixar de acarretar".
Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente, mas julgo poder ficar por aqui, contentando-me com sugerir que estamos perante uma variante da empresa de destruição da linguagem e do pensamento, através da rarefacção e redução codificadas das palavras e do seu regime de significação, que George Orwell descreveu na sua análise do Newspeak. Aqui o vocabulário pode ser abundante, promover neologismos e mots-valises, multiplicar as alusões a bibliografias eruditas e as citações de autores, opiniões e doutrinas diferentes, contanto que o faça irresponsável e inconsistentemente q.b.: quer dizer, reduzindo o sentido e a exigência de dar conta e razão da linguagem e do pensamento comuns, bem como a sua capacidade de imaginar outras razões que verdadeiramente o sejam, efectivamente alternativas frente às razões da dominação, a um capricho gratuito e ornamental, ou a um rito de inversão que se limita a exasperar - entre o monstruoso e o grotesco - a ordem que contesta, esgotando-se na apologia do terror absurdo dos seu delírio de omnipotência ou na recitação inócua de um fantasiar indiferente.
O candidato com os seus pregos
por
João Tunes
No seu último livro, uma prosa intimista a que também ele tem direito (e nós, leitores, sobretudo), que é, diga-se, prosa de primeira fila (e não vale a pena andar sempre a repetir-me, dizendo que o prefiro mil vezes como poeta na prosa que enquanto poeta de poesia), Manuel Alegre fixa e repete a sua grande memória de infância, a de quando miúdo se entretinha a pregar pregos numa tábua. Eu não fiz isso, naturalmente por falta de tábua e de pregos e não me permitirem brincadeiras de tamanho risco. Mas lembro-me que, para vencer o tédio infantil, brincava com as molas de estender a roupa. Fazia com elas infindáveis e renovadas construções, erguendo figuras que se desmoronavam a partir de uma certa complexidade mas que logo se recompunham em novas e imprevistas formas e recriava batalhas e jogos de futebol, que me davam o gozo de ganhar sempre, antecipando os legos que ainda era cedo no tempo para me calharem à mão, tanto mais que a fábrica dinamarquesa de sucesso ainda não abrira as portas. Mas obviamente que entendo, apesar da globalização dos modelos, que cada criança reproduz à sua maneira as suas vitórias contra o medo e pela aventura de vencer por via da representação e da teimosia, a arma de coragem dos fracos que querem libertar-se. Este livro de Alegre, entrando no cruzamento de afectos, ele a virar-se para si e os leitores a virarem-se para eles no mais fundo de si mesmos, numa espécie de mimetismo paralelo e unipessoal, deixou-me essa marca simbólica inapagável do miúdo Manuel a pregar pregos numa tábua, numa aparente inutilidade mas com a força dos símbolos que, se impregnados, fazem a força de uma pessoa que quer crescer e ser.
Depois de lhe ler este livro, o seu livro mais intimista, vejo e oiço Alegre sempre como o cidadão a pregar pregos numa tábua. Até na exposição mais pública e no projecto mais vasto e mais colectivo. Como ontem o vi e ouvi ao vivo num acto de homem solidário a apresentar o livro de Carlos Brito acerca de Cunhal, não para bajular o autor e seu amigo mas para, inclusive, apresentar as suas discordâncias relativamente a partes da obra, sujeitando-se depois a ouvir galhardamente o competente contraditório. Mas sobretudo nessa ambição, que se quer dele e colectiva, de libertar Belém dessa figura triste, caricata, professoralmente provinciana e estruturalmente reaccionária que hoje habita o palácio e apequena o país e o seu povo. E se o acompanho, porque vou acompanhá-lo, na caminhada de Alegre à presidência, sei que não prego os pregos de Alegre na tábua de Alegre. Ele não me pede isso nem eu lhe pediria outro tanto. Com as minhas “molas de estender roupa”, outros muitos mais com as suas fábulas e símbolos que habitam os sonhos da solidariedade, capazes de fazermos uma távola redonda de ambição de mudança perante o torniquete do sufoco, havemos de chegar ao fim da canção, a que não tem praça com ursos amestrados a dançarem o baile mandado, por chefes ou por exigências de prévias identificações ideológicas micro, mínimas, médias ou máximas. Simplesmente porque um alfinete não serve como prego.
(publicado também aqui)
Depois de lhe ler este livro, o seu livro mais intimista, vejo e oiço Alegre sempre como o cidadão a pregar pregos numa tábua. Até na exposição mais pública e no projecto mais vasto e mais colectivo. Como ontem o vi e ouvi ao vivo num acto de homem solidário a apresentar o livro de Carlos Brito acerca de Cunhal, não para bajular o autor e seu amigo mas para, inclusive, apresentar as suas discordâncias relativamente a partes da obra, sujeitando-se depois a ouvir galhardamente o competente contraditório. Mas sobretudo nessa ambição, que se quer dele e colectiva, de libertar Belém dessa figura triste, caricata, professoralmente provinciana e estruturalmente reaccionária que hoje habita o palácio e apequena o país e o seu povo. E se o acompanho, porque vou acompanhá-lo, na caminhada de Alegre à presidência, sei que não prego os pregos de Alegre na tábua de Alegre. Ele não me pede isso nem eu lhe pediria outro tanto. Com as minhas “molas de estender roupa”, outros muitos mais com as suas fábulas e símbolos que habitam os sonhos da solidariedade, capazes de fazermos uma távola redonda de ambição de mudança perante o torniquete do sufoco, havemos de chegar ao fim da canção, a que não tem praça com ursos amestrados a dançarem o baile mandado, por chefes ou por exigências de prévias identificações ideológicas micro, mínimas, médias ou máximas. Simplesmente porque um alfinete não serve como prego.
(publicado também aqui)
Amour amour
por
Miguel Cardina
O grupo parlamentar do Futebol Clube do Porto reuniu-se ontem na sede da Assembleia da República. A comunicação social salientou uma qualquer declaração sobre futuros treinadores da equipa, esquecendo-se de realçar a verdadeira notícia: o facto de uma sessão como aquela ter acontecido. Parece que o jantar já é «tradição» e até houve anos em que a coisa foi tão ou mais condenável. Mas é no mínimo degradante ver a forma como deputados de vários partidos apaparicam o «Presidente», prescrutando com um olhar doce a mente obstinada do homem. Apenas o Bloco de Esquerda faltou, julgo que por sentido de decência e não tanto pela ausência de deputados portistas nas suas hostes. Só lhe ficou bem. É que não se trata (só) de manter uma distância higiénica de corrupções, compras de árbitros ou «fruta» descascada. Neste caso como em tantos outros, e por mais dúvidas que possam existir, «o juíz decidiu, está decidido». O que arrepia mesmo é o modo como ali os poderes se entrelaçam em proveito mútuo, numa estratégia de legitimação em que ambos se escondem atrás do espelho que os unifica. Eu dou, tu dás, ele vê. Vale tudo?
Fábula negra dos três anões
por
João Tunes
A clonagem na sucessão dos medíocres ambiciosos não pára. Antes, de Santana Lopes para Sócrates, agora, de Sócrates para Passos Coelho. Politicamente falando, de anão em anão, corremos o risco de, numa manhã de nevoeiro, e a efeméride de hoje não ajuda nada a bons presságios, acordarmos com um Gauleiter - entre os gritos de aclamação do povo cansado e desesperado - vestido de Branca de Neve. Tirando os vitalinos, esses metidos no baú da decadência próprio para guardar os que apodrecem de pé, o PS é mesmo um partido de surdos?
(publicado também aqui)
(publicado também aqui)
O mito, o interdito e a curiosidade
por
João Tunes
O livro de Carlos Brito sobre Álvaro Cunhal, pelas razões habituais nestes casos, estava destinado a muitos interditos, externos ou íntimos. O anúncio pelo editor (um editor individual, não uma grande empresa editora) de que, ao fim da primeira semana de venda, já avançou a impressão da segunda edição, demonstra que nem todos os índex funcionam. Podem haver muitos a lê-lo no recato e à socapa (só pode), numa clandestinidade mansa e doméstica de desafio íntimo ao centralismo do santo ofício e ao longo braço do império do silêncio, mas lê-se. Portanto, uma boa notícia. Que pode não a ser para o sacrossanto, actual e monolítico Comité Central mas que é, sem dúvida, importante para a memória histórica e política sobre Álvaro Cunhal: Com menos mito nem deificação feita por vivos petrificados no poder do contra-poder, viva Cunhal!
(também publicado aqui)
(também publicado aqui)
Uma Frente Nacionalista
por
Miguel Serras Pereira
Em dois posts certeiros, a Joana Lopes e o João Tunes - este contrastando/conjugando as recentes declarações de Jerónimo de Sousa com um discurso "histórico" de Álvaro Cunhal, justificativo da invasão da Checoslováquia, em 1968, pelas tropas do Pacto de Varsóvia - põem em evidência o reforço da componente nacionalista na propaganda e argumentário ideológico do PCP. Para uma análise, ao mesmo tempo rigorosa e crítica, do papel do nacionalismo na história do PCP, a obra de referência é a que começou por ser o texto de uma tese de doutoramento do Zé Neves e que entretanto se tornou acessível no mercado livreiro (José Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no Século XX, Lisboa, Tinta da China, 2008). Aqui, basta acentuar que este elemento não é novo, antes uma constante que tem conhecido formulações diversas ao longo da existência da organização, conjugando-se sempre numa relação mais ou menos complexa - de tensão, complementaridade, etc. - com outros traços "ideológicos". Mas importa também insistir em que, nos últimos tempos, os conteúdos nacionalistas e a sua formulação apologética têm vindo a intensificar-se cada vez mais.
Este aspecto torna-se ainda mais significativo - e maior a ameaça de assistirmos ao recrudescimento de um nacionalismo de protesto reforçando confluências "para além da esquerda e da direita", um pouco do tipo das que acompanharam a maré negra das ditaduras e dos totalitarismos do perído anterior à Segunda Guerra Mundial - quando nos damos conta de que o fenómeno não se limita ao PCP. A favor do descontentamento e das brutais frustrações impostas a camadas cada vez mais amplas da população, em resultado de sucessivos governos que, fazendo da Europa profissão de fé, a usam ao mesmo tempo como alibi das suas medidas mais regressivas do ponto de vista económico e social, e, do mesmo modo, a favor também das políticas activas e das "omissões" e "défices" da própria União Europeia, conjugando uma burocratização autoritária e cada vez menos transparente com um neo-liberalismo erigido em necessidade científica meta-constitucional - a verdade é que, tanto à direita, entre os nostálgicos da soberania musculada de um Estado-nação autoritário, como garante das "forças vivas" e dos "interesses legítimos", como em diversas áreas e/ou tendências da oposição ao actual governo e aos seus antecessores, um nacionalismo cada vez mais intenso informa boa parte das soluções propostas para a crise e as representações ideológicas do que seria uma alternativa para o actual estado de coisas.
O nacionalismo tem no seu activo ter desarmado nas organizações e forças políticas que se reclamavam do movimento operário e outras afins a vontade política internacionalista, que, desmantelando a prioridade da defesa do Estado-nação e dos representantes dos superiores interesses nacionais, poderia ter feito abortar, entre outras realizações sinistras, os milhões de mortos das duas guerras mundiais do século passado, escandidas pela de Espanha, e também, de então para cá, inúmeros outros conflitos regionais, bem como o reforço da miséria, do crescimento das desigualdades à escala mundial, a submissão a essa mesma escala dos movimentos populares e de contestação e, nos últimos anos, a absolutização do governo global do capitalismo, que, esse sim, aprendeu a internacionalizar-se e a recorrer à força acrescida desse internacionalismo perante resistências que só muito precariamente têm logrado articular-se para além da escala nacional.
Tendo assim presente que o "nacionalismo de protesto" só pode servir o internacionalismo capitalista global, vai-se tornando mais do que tempo, pois, de combater o vírus e de prevenir o renascimento do monstro híbrido, combatendo politicamente, e para começar no plano das ideias, através da desmistificação das soluções do "nacionalismo de protesto", as propostas que, voluntária ou involuntariamente (como é frequente ser o caso), alimentam este último.
Assim, as mesmas razões que levaram a Joana e o João a denunciar as declarações de Jerónimo de Sousa - e o seu nacionalismo demagógico - são as que me levam a dizer aqui que um "nacionalismo de protesto" muito semelhante compromete também a candidatura de Manuel Alegre, uma vez que este não deu até ao momento o mínimo sinal de estar disposto a mudar de orientação na matéria ou a rever o que tem sido, desde os seus primeiros passos políticos, uma marca distintiva das suas propostas e intervenções.
O actual candidato dizia, em 1978 (para não recuarmos demasiado), numa sessão solene da AR: "Desde que um príncipe subversivo teve a ousadia de se revoltar contra a mãe e desobedecer ao Papa para fundar um reino e uma pátria, sempre os momentos decisivos da nossa história foram momentos de ruptura, de revolta, de insubmissão e inconformismo (…) Momentos de revolta e iniciativa histórica, como 1383, 1640, 1820, 1910. Assim se fez esta pátria, este povo e esta história, que é o nosso património mais precioso".
Em 2006, apresentando um livro sobre um pretendente ao trono de Portugal, reiterava: "é preciso preservar o nosso património comum, renovar a cidadania e afirmar sem complexos o orgulho de ser português.É por isso que eu, que sou republicano, partilho muitas das preocupações expressas por um autor monárquico e também de valores defendidos por D. Duarte. É que essas preocupações e esses valores estão para alem do ser monárquico ou republicano. São de todos os portugueses que não precisam de encomendar sondagens para saber que querem continuar a ser portugueses e a fazer de Portugal hoje, tal como no passado, uma Nação de vanguarda, uma Nação Piloto".
E já no contexto da sua presente candidatura, em Dezembro de 2009:"Os portugueses estão cansados dos profetas da desgraça, daqueles que estão constantemente a decretar o fim iminente de Portugal (…) Mas nada disto é novo. Profetas da desgraça já houve muitos, em todas as épocas da nossa história. E, no entanto, passaram mais de oito séculos e ainda cá estamos. Portugal é uma magnífica obra da vontade humana. E enquanto for essa a vontade do nosso povo, Portugal continuará a existir. Mesmo contra a vontade de alguns grandes interesses privados, que em vários momentos da nossa história foram 'entreguistas'".
O que é que distingue decisivamente estas afirmações das de Jerónimo de Sousa, que a Joana, depois de as citar, considera justamente "de um nacionalismo bacoco a que já nos habituou"? Ou, salvo aspectos menores, do de Fernando Nobre, igualmente evocado pela Joana? Considerando, enfim, que Cavaco Silva não será alternativa e, antes, rivalizará com Fernando Nobre no grotesco das formulações do "acima de tudo Portugal", só posso concluir que as candidaturas presidenciais até agora apresentadas na região portuguesa são uma verdadeira frente nacionalista - ainda que, felizmente, fragmentada - de combate ao internacionalismo político e ao cosmopolitismo cultural que, hoje mais do que nunca, são inseparáveis de qualquer combate que valha a pena contra os desígnios absolutistas de governo global da economia política dominante.
Actualização: Já depois de publicado este post, dei com este outro, de leitura indispensável, que a Joana escreveu no Brumas, e cujo "aviso à navegação" sublinho: "Tendemos a encolher os ombros quando surge mais uma iniciativa da «nacionalistas e salazaristas», crentes que estamos no insucesso garantido da extrema-direita em Portugal. Mantenhamos essa fé e alimentemos a respectiva esperança. Mas convém talvez não esquecer que, ao longo da História, tem sido em tempos de crises, por vezes bem menores do que aquela que estamos agora a atravessar, que projectos deste tipo acabam por agregar muitos descontentamentos e outros tantos contidos desesperos".
Este aspecto torna-se ainda mais significativo - e maior a ameaça de assistirmos ao recrudescimento de um nacionalismo de protesto reforçando confluências "para além da esquerda e da direita", um pouco do tipo das que acompanharam a maré negra das ditaduras e dos totalitarismos do perído anterior à Segunda Guerra Mundial - quando nos damos conta de que o fenómeno não se limita ao PCP. A favor do descontentamento e das brutais frustrações impostas a camadas cada vez mais amplas da população, em resultado de sucessivos governos que, fazendo da Europa profissão de fé, a usam ao mesmo tempo como alibi das suas medidas mais regressivas do ponto de vista económico e social, e, do mesmo modo, a favor também das políticas activas e das "omissões" e "défices" da própria União Europeia, conjugando uma burocratização autoritária e cada vez menos transparente com um neo-liberalismo erigido em necessidade científica meta-constitucional - a verdade é que, tanto à direita, entre os nostálgicos da soberania musculada de um Estado-nação autoritário, como garante das "forças vivas" e dos "interesses legítimos", como em diversas áreas e/ou tendências da oposição ao actual governo e aos seus antecessores, um nacionalismo cada vez mais intenso informa boa parte das soluções propostas para a crise e as representações ideológicas do que seria uma alternativa para o actual estado de coisas.
O nacionalismo tem no seu activo ter desarmado nas organizações e forças políticas que se reclamavam do movimento operário e outras afins a vontade política internacionalista, que, desmantelando a prioridade da defesa do Estado-nação e dos representantes dos superiores interesses nacionais, poderia ter feito abortar, entre outras realizações sinistras, os milhões de mortos das duas guerras mundiais do século passado, escandidas pela de Espanha, e também, de então para cá, inúmeros outros conflitos regionais, bem como o reforço da miséria, do crescimento das desigualdades à escala mundial, a submissão a essa mesma escala dos movimentos populares e de contestação e, nos últimos anos, a absolutização do governo global do capitalismo, que, esse sim, aprendeu a internacionalizar-se e a recorrer à força acrescida desse internacionalismo perante resistências que só muito precariamente têm logrado articular-se para além da escala nacional.
Tendo assim presente que o "nacionalismo de protesto" só pode servir o internacionalismo capitalista global, vai-se tornando mais do que tempo, pois, de combater o vírus e de prevenir o renascimento do monstro híbrido, combatendo politicamente, e para começar no plano das ideias, através da desmistificação das soluções do "nacionalismo de protesto", as propostas que, voluntária ou involuntariamente (como é frequente ser o caso), alimentam este último.
Assim, as mesmas razões que levaram a Joana e o João a denunciar as declarações de Jerónimo de Sousa - e o seu nacionalismo demagógico - são as que me levam a dizer aqui que um "nacionalismo de protesto" muito semelhante compromete também a candidatura de Manuel Alegre, uma vez que este não deu até ao momento o mínimo sinal de estar disposto a mudar de orientação na matéria ou a rever o que tem sido, desde os seus primeiros passos políticos, uma marca distintiva das suas propostas e intervenções.
O actual candidato dizia, em 1978 (para não recuarmos demasiado), numa sessão solene da AR: "Desde que um príncipe subversivo teve a ousadia de se revoltar contra a mãe e desobedecer ao Papa para fundar um reino e uma pátria, sempre os momentos decisivos da nossa história foram momentos de ruptura, de revolta, de insubmissão e inconformismo (…) Momentos de revolta e iniciativa histórica, como 1383, 1640, 1820, 1910. Assim se fez esta pátria, este povo e esta história, que é o nosso património mais precioso".
Em 2006, apresentando um livro sobre um pretendente ao trono de Portugal, reiterava: "é preciso preservar o nosso património comum, renovar a cidadania e afirmar sem complexos o orgulho de ser português.É por isso que eu, que sou republicano, partilho muitas das preocupações expressas por um autor monárquico e também de valores defendidos por D. Duarte. É que essas preocupações e esses valores estão para alem do ser monárquico ou republicano. São de todos os portugueses que não precisam de encomendar sondagens para saber que querem continuar a ser portugueses e a fazer de Portugal hoje, tal como no passado, uma Nação de vanguarda, uma Nação Piloto".
E já no contexto da sua presente candidatura, em Dezembro de 2009:"Os portugueses estão cansados dos profetas da desgraça, daqueles que estão constantemente a decretar o fim iminente de Portugal (…) Mas nada disto é novo. Profetas da desgraça já houve muitos, em todas as épocas da nossa história. E, no entanto, passaram mais de oito séculos e ainda cá estamos. Portugal é uma magnífica obra da vontade humana. E enquanto for essa a vontade do nosso povo, Portugal continuará a existir. Mesmo contra a vontade de alguns grandes interesses privados, que em vários momentos da nossa história foram 'entreguistas'".
O que é que distingue decisivamente estas afirmações das de Jerónimo de Sousa, que a Joana, depois de as citar, considera justamente "de um nacionalismo bacoco a que já nos habituou"? Ou, salvo aspectos menores, do de Fernando Nobre, igualmente evocado pela Joana? Considerando, enfim, que Cavaco Silva não será alternativa e, antes, rivalizará com Fernando Nobre no grotesco das formulações do "acima de tudo Portugal", só posso concluir que as candidaturas presidenciais até agora apresentadas na região portuguesa são uma verdadeira frente nacionalista - ainda que, felizmente, fragmentada - de combate ao internacionalismo político e ao cosmopolitismo cultural que, hoje mais do que nunca, são inseparáveis de qualquer combate que valha a pena contra os desígnios absolutistas de governo global da economia política dominante.
Actualização: Já depois de publicado este post, dei com este outro, de leitura indispensável, que a Joana escreveu no Brumas, e cujo "aviso à navegação" sublinho: "Tendemos a encolher os ombros quando surge mais uma iniciativa da «nacionalistas e salazaristas», crentes que estamos no insucesso garantido da extrema-direita em Portugal. Mantenhamos essa fé e alimentemos a respectiva esperança. Mas convém talvez não esquecer que, ao longo da História, tem sido em tempos de crises, por vezes bem menores do que aquela que estamos agora a atravessar, que projectos deste tipo acabam por agregar muitos descontentamentos e outros tantos contidos desesperos".
Um português nazificado e nazificante apanhado em contramão
por
João Tunes
O último livro de José Pedro Castanheira (JPC) de investigação jornalística (*), sobre a trajectória atribulada, misteriosa e pouco conhecida do médico Ayres de Azevedo (1911-1978), desbrava o caminho pouco percorrido pela investigação histórica acerca dos nexos com o nazismo em Portugal. As próprias dificuldades que JPC encontrou na sua pesquisa (dificuldade de encontrar fontes e documentação, muita dela misteriosamente desaparecida ou feita desaparecer, inibições de testemunhos) são reveladoras de como a ditadura, perante a derrota do nazi-fascismo e a viragem para a aliança com a Inglaterra e os Estados Unidos, com Salazar a encostar-se aos vencedores (os "ocidentais"), se encarregou de apagar os vestígios dos sinais da fracção germanófila pró-hitleriana. O que tem o efeito secundário de facilitar a vida aos que tentam impor a tese de que a ditadura de Salazar e Caetano não foi um fascismo, tese esta tão cara a muitos historiadores portugueses (incluindo decididos antifascistas).
Pouco se tem investigado e publicado sobre a participação dos “legionários viriatos” na guerra civil de Espanha e dos que, embora muito poucos, sobretudo integrados na “divisão azul” dos franquistas, participaram na ofensiva hitleriana na frente leste. Menos ainda tem sido levantado sobre a real e profunda influência que a germanofilia pró-hitleriana teve nas cúpulas do poder e da academia, enfim das elites, entre a ascensão de Hitler ao poder e a reviravolta de Estalinegrado que ocasiona a reviravolta de Salazar para o lado anglo-americano. E que não foram mais que a expressão política e ideológica das afinidades entre as ditaduras de extrema-direita (com fascismos locais mitigados pelas suas particularidades) europeias nos anos 30 e 40 do século XX e que contavam com o beneplácito, mais ou menos orgânico e ideológico, da Igreja Católica. Assim, o tratamento por JPC sobre o “caso Ayres de Azevedo” tem a relevância da novidade e do pisar caminho evitado ou subestimado. Feito com preocupações de rigor e encanto jornalístico.
Essencialmente, o “drama de Ayres de Azevedo” é, em si, a destruição de uma carreira de um cientista talentoso apanhado numa reviravolta política e diplomática (a mudança de campo do salazarismo após Estalinegrado). Bom aluno, bom médico e professor e cientista promissor, fascista convicto (foi mais nacional-sindicalista que salazarista, como notou a PIDE na sua ficha), apaixonado pelas teses raciais do nazismo e ansioso por as transpor para a realidade portuguesa, Ayres de Azevedo obtém do Instituto de Alta Cultura (dominado por germanófilos) e com apoio da Faculdade de Medicina do Porto (onde, igualmente, a germanofilia era forte) uma bolsa de estudo para desenvolver investigações junto dos próceres da ciência racista nazista (não é claro, mas surge como provável que terá tido o apoio e a colaboração de Mengele, o “anjo da morte” de Auschwitz) e nos institutos científicos de ponta da Alemanha hitleriana. Ali faz os seus estudos e investigações, sempre com boas referências dos cientistas nazis que conduziam as experiências médicas sobre os prisioneiros a serem exterminados nos campos de concentração e de extermínio, integrados no Holocausto, até que o avizinhar da derrota nazi impõe o seu regresso forçado a Portugal. Munido dos seus estudos e resultados de investigações, Ayres de Azevedo tenta a apresentação da sua tese de doutoramento na Faculdade de Medicina do Porto. Só que os ventos tinham mudado e o realinhamento do salazarismo com os anglo-americanos impulsiona a que os germanófilos tentem fazer esquecer as suas velhas e profundas simpatias e, de protegido, o cientista português treinado no racismo nazi passa a ser uma figura incómoda. É perseguido pela Ordem dos Médicos (sob um pretexto de não pagamento de quotas no período em que tinha interrompido a sua actividade clínica, com aviso de uma sanção publicitada num jornal diário), a sua tese de doutoramento é sabotada, interrompendo-lhe assim a sua carreira docente, enquanto desaparecem de vários arquivos os documentos em que a sua figura é referida. Ostracizado, Ayres de Azevedo abandona a vida científica e clínica e dedica-se à actividade de empresário industrial. Mantém-se um extremista de direita até ao fim (combate o marcelismo por entender que este é demasiado complacente com as “reivindicações operárias”, tenta enfrentar os trabalhadores da sua fábrica de malhas após o 25 de Abril até esta ser ocupada pelos operários e depois encerrar). A decisão do salazarismo em tornar Ayres de Azevedo uma “não pessoa” foi efeito directo da necessidade de Salazar, para que a ditadura pudesse sobreviver ao após-guerra, apagar os traços da anterior ligação umbilical do salazarismo ao nazi-fascismo. Neste sentido, foi uma vítima (nada simpática, odiosa até, mas vítima) das viragens tácticas e propagandísticas do fascismo português reconvertido à integração no “ocidente” no terreno da “guerra fria”. Portanto, um caso exemplar e indigno do silêncio dado às “não pessoas” e a que foi condenado. Graças ao excelente trabalho de JPC, finalmente foi liberto da lei da amnésia.
(*) - “Um cientista português no coração da Alemanha nazi”, José Pedro Castanheira, Edições Tenacitas.
(também publicado aqui)
Pouco se tem investigado e publicado sobre a participação dos “legionários viriatos” na guerra civil de Espanha e dos que, embora muito poucos, sobretudo integrados na “divisão azul” dos franquistas, participaram na ofensiva hitleriana na frente leste. Menos ainda tem sido levantado sobre a real e profunda influência que a germanofilia pró-hitleriana teve nas cúpulas do poder e da academia, enfim das elites, entre a ascensão de Hitler ao poder e a reviravolta de Estalinegrado que ocasiona a reviravolta de Salazar para o lado anglo-americano. E que não foram mais que a expressão política e ideológica das afinidades entre as ditaduras de extrema-direita (com fascismos locais mitigados pelas suas particularidades) europeias nos anos 30 e 40 do século XX e que contavam com o beneplácito, mais ou menos orgânico e ideológico, da Igreja Católica. Assim, o tratamento por JPC sobre o “caso Ayres de Azevedo” tem a relevância da novidade e do pisar caminho evitado ou subestimado. Feito com preocupações de rigor e encanto jornalístico.
Essencialmente, o “drama de Ayres de Azevedo” é, em si, a destruição de uma carreira de um cientista talentoso apanhado numa reviravolta política e diplomática (a mudança de campo do salazarismo após Estalinegrado). Bom aluno, bom médico e professor e cientista promissor, fascista convicto (foi mais nacional-sindicalista que salazarista, como notou a PIDE na sua ficha), apaixonado pelas teses raciais do nazismo e ansioso por as transpor para a realidade portuguesa, Ayres de Azevedo obtém do Instituto de Alta Cultura (dominado por germanófilos) e com apoio da Faculdade de Medicina do Porto (onde, igualmente, a germanofilia era forte) uma bolsa de estudo para desenvolver investigações junto dos próceres da ciência racista nazista (não é claro, mas surge como provável que terá tido o apoio e a colaboração de Mengele, o “anjo da morte” de Auschwitz) e nos institutos científicos de ponta da Alemanha hitleriana. Ali faz os seus estudos e investigações, sempre com boas referências dos cientistas nazis que conduziam as experiências médicas sobre os prisioneiros a serem exterminados nos campos de concentração e de extermínio, integrados no Holocausto, até que o avizinhar da derrota nazi impõe o seu regresso forçado a Portugal. Munido dos seus estudos e resultados de investigações, Ayres de Azevedo tenta a apresentação da sua tese de doutoramento na Faculdade de Medicina do Porto. Só que os ventos tinham mudado e o realinhamento do salazarismo com os anglo-americanos impulsiona a que os germanófilos tentem fazer esquecer as suas velhas e profundas simpatias e, de protegido, o cientista português treinado no racismo nazi passa a ser uma figura incómoda. É perseguido pela Ordem dos Médicos (sob um pretexto de não pagamento de quotas no período em que tinha interrompido a sua actividade clínica, com aviso de uma sanção publicitada num jornal diário), a sua tese de doutoramento é sabotada, interrompendo-lhe assim a sua carreira docente, enquanto desaparecem de vários arquivos os documentos em que a sua figura é referida. Ostracizado, Ayres de Azevedo abandona a vida científica e clínica e dedica-se à actividade de empresário industrial. Mantém-se um extremista de direita até ao fim (combate o marcelismo por entender que este é demasiado complacente com as “reivindicações operárias”, tenta enfrentar os trabalhadores da sua fábrica de malhas após o 25 de Abril até esta ser ocupada pelos operários e depois encerrar). A decisão do salazarismo em tornar Ayres de Azevedo uma “não pessoa” foi efeito directo da necessidade de Salazar, para que a ditadura pudesse sobreviver ao após-guerra, apagar os traços da anterior ligação umbilical do salazarismo ao nazi-fascismo. Neste sentido, foi uma vítima (nada simpática, odiosa até, mas vítima) das viragens tácticas e propagandísticas do fascismo português reconvertido à integração no “ocidente” no terreno da “guerra fria”. Portanto, um caso exemplar e indigno do silêncio dado às “não pessoas” e a que foi condenado. Graças ao excelente trabalho de JPC, finalmente foi liberto da lei da amnésia.
(*) - “Um cientista português no coração da Alemanha nazi”, José Pedro Castanheira, Edições Tenacitas.
(também publicado aqui)
27/05/10
Faquir
por
Miguel Cardina
Viu em Bollywood o olho de Buñuel. Depois disso, dedicou-se a coisas verdadeiramente suaves e mansas.
Os Intelectuais festejam, os Trabalhadores sofrem e a Malta come caracóis
por
Zé Neves
A contraposição entre festa e luta é reveladora de um entendimento miserabilista acerca da natureza dos que protestam. Tal entendimento toma quem protesta como seres despojados de qualquer tipo de sensibilidade. Ou seriam seres embrutecidos pela exploração de que seriam vítimas ou seriam seres tomados pelo desespero que faria com que levassem tudo à frente. Felizmente, a história do movimento operário raramente pode ser compreendida à luz de uma tal dicotomia. E apesar de cotejarem qualquer um dos dois pólos acima referidos, tanto o cartaz da CGTP como o cartaz da concentração anti-capitalista escapam à oposição festa-luta. Ou alguém acha que o cartaz da CGTP, com o festival de cores com que nos presenteia, está a fazer por desmerecer a gravidade da situação da luta? A ideia de que a gravidade da situação dos trabalhadores é incompatível com um imaginário festivo é a última das privações: mas esta é lhes imposta por intelectuais que tentam, dessa maneira, mostrar que sentem as dores dos trabalhadores de modo tão intenso como os próprios trabalhadores. E esta tentativa de "colagem", porém, não deixa de ter como subtexto a ideia de que só esses intelectuais é que têm direito à festa. Ou alguém duvida que, depois da manif, boa parte dos que estamos aqui a escrever sobre este assunto, vamos é comer uns caracóis e beber umas cervejas e festejar a "jornada de luta"? Nesse momento, é só olharem para o lado e verem não sei quantos trabalhadores a fazerem o mesmo. Talvez aí vejam quão idiota é este jogo de espelhos.
Nenhum motivo para fazer festas (3)
por
Ricardo Noronha
“Os operários subvertem o uso do espaço fabril, no qual circulam livremente e não conhecem o tédio das horas intermináveis sem nada que fazer. A greve-ocupação torna-se, assim, em muitas empresas, um tempo de ócio e de liberdade. Ou, então, um tempo em que os operários se entregam a actividades outras que não o trabalho habitual.[...] Em suma, a ocupação surge como uma experiência de subversão das regras e «leis» que regem a utilização do espaço e do tempo fabris, mas também como um misto de luta e festa.”
Patriarca, Fátima, “A revolução e a questão social . Que justiça social?” in Portugal e a transição para a democracia (1974-76), Coord. Fernando Rosas, Edições Colibri, Lisboa, 1999, pp.139-140
Nenhum motivo para fazer festas (2)
por
Ricardo Noronha
Mas há, pelo menos no comentário do João Valente Aguiar ao mesmo post, argumentos que importa debater, até porque resumem bem o pensamento e as ideias de quem considera esta concentração indesejável e inoportuna, tendo o mérito de o fazer num plano propriamente político.
Diz ele: "Em primeiro lugar, esse slogan faz crer que os ditos poderosos estão em crise, logo em recuo e em dificuldades, o que não é de todo verdade. É evidente que estamos a viver uma crise estrutural do capitalismo, mas a burguesia, a classe dominante, não deixa de continuar a determinar a ofensiva no plano da luta de classes. Uma coisa, é a crise económica em torno da acumulação de capital, outra é uma pretensa crise da dominação da burguesia."
Ora esta afirmação, que tem em si elementos de verdade, peca por escassa porque pouco dialética. Ao distinguir, de forma estanque, uma crise estrutural da acumulação capitalista de uma crise da dominação política da burguesia, o João Aguiar fecha qualquer possibilidade à iniciativa histórica e remete o combate para uma posição defensiva. É que é precisamente o facto de a burguesia continuar a determinar a ofensiva no plano da luta de classes que torna imperativo identificar os pontos fortes e fracos dessa ofensiva. E, parece-me importante afirmá-lo, a Grécia é precisamente o ponto onde as duas crises se interseccionam da forma mais visível, retirando espaço de manobra à respectiva burguesia nacional e acentuando a sua dependência face aos grandes centros de acumulação capitalista. Ali, a ofensiva no plano da luta de classes foi momentaneamente subtraída à burguesia há mais de um ano e a sua recuperação continua a ser problemática e trabalhosa, resultando aliás numa espécie de equilíbrio instável que não se sabe bem quanto tempo durará. Uma coisa parece certa, ao retirar a iniciativa à respectiva classe dominante, as lutas sociais travadas na Grécia rasgaram novas perspectivas históricas e são o mais precioso contributo para uma recomposição política, à escala global, da luta contra o capitalismo. É desse tipo de lutas sociais que necessitamos e é esse tipo de lutas sociais que mete medo aos patrões.
Pergunta o João "o que é isso dos poderosos?", mas a resposta está inscrita no seguimento do que escreve. Das relações sociais de produção resultam relações de poder. Não me parece completamente evidente que o contrário não possa ser verdade, mas seria um pouco maçudo desenvolver esse raciocínio. Limitemo-nos a constatar o óbvio - haverá algum grande empresário que não seja também poderoso? E, à luz da crise estrutural da acumulação capitalista, não será num terreno privilegiadamente político (e portanto, sobretudo caracterizado pelas relações de poder) que se joga a recomposição da taxa de lucro e o relançamento da acumulação? As "formas de expropriação da riqueza colectiva produzida pelos trabalhadores" revelam-se cada vez mais inseparáveis da multiplicação de formas de controlo e disciplinamento que caracterizam os locais de trabalho, mas também as zonas da metrópole consideradas «problemáticas» e onde se acumula uma crescente reserva de força produtiva que a polícia se encarrega de reconduzir ao mercado de trabalho.
Finalmente, a festa. Deixemos de lado a referência um pouco rasteira "ao que essa gente quer". Que a luta é dura e tenaz todos o sabemos, o problema estará mesmo na sua primordial definição enquanto sacrifício. Reduzidos ao seu quotidiano normal, os trabalhadores estão permanentemente divididos e fragmentados, tanto no seu local de trabalho como no de residência, mais ou menos expostos a uma multiplicação de discursos e a um regime de imagem que os confronta permanentemente com as suas fraquezas e impotências, remetendo precisamente para a naturalidade do funcionamento do modo de produção capitalista, da exploração a que são submetidos e dos canais legítimos através dos quais podem canalizar a sua insatisfação. Como dizia Mário Soares, os cidadãos têm o direito à indignação. E, como diria eu, têm esse direito precisamente porque não têm qualquer outro direito.
Ora o encontro, a comunicação, a partilha, a solidariedade - tudo isso que caracteriza uma luta que transborda os limites da indignação e disputa o poder num determinado contexto - não podem deixar de assumir as características de uma festa. Onde estavam sozinhos e abandonados, entregues ao despotismo patronal e à autoridade do Estado, os trabalhadores em luta, como aliás qualquer sujeito colectivo em luta, descobrem as suas forças e capacidades, as possibilidades imensas que elas abrem, a inteligência que possuem e que a organização do trabalho constantemente procura enclausurar, a imensa alegria que resulta do facto de controlarem as suas vidas e alargarem o campo das suas escolhas. Sim, a luta pode ser dura e tenaz, feita de momentos trágicos como os que decorreram em Atenas no dia 5 de Maio, mas abre as portas que estavam fechadas e revela caminhos que não se imaginavam. Por isso mesmo, ela é uma festa. E, neste momento, há muitos e bons motivos para fazer a festa.
Nenhum motivo para fazer festas (1)
por
Ricardo Noronha
No Cinco Dias continua a escrever-se acerca da concentração anti-capitalista agendada para o próximo Sábado. Infelizmente, e uma vez trocadas ideias com a fracção lúcida daquele blog, a coisa viu-se agora transferida para a ala psiquiátrica. O registo delirante do costume não surpreende, mas uma vez que o António Figueira e o João Aguiar, pessoas respeitáveis, resolveram subscrever um pedaço de prosa reaccionária, apetece-me dedicar alguns apontamentos ao assunto.
Comecemos pela fama de Carlos Vidal, que se estreou no 5 Dias com um longo post de louvor a Debord e desde então não pára de o insultar. Esta espécie de «aproximação» aos autores do pensamento radical é aliás uma pedra de toque deste professor universitário, que refere agora «os pequeno-burgueses do costume» com aquele concentrado de estupidez próprio de quem não pára um segundo para se ver ao espelho. Importa dizer que, embora se esgote em referências e citações a tudo o que lhe pareça ser profundo e subversivo, os textos que recebem a sua assinatura caracterizam-se pelo mais profundo e obtuso conformismo político, temperado aqui e ali por algumas referências estetizantes. Isto, evidentemente, quando não está ocupado a escrever como um agente do SIS.
Ao afirmar que "os oprimidos não têm nenhum motivo para fazer festas" revela-nos toda a boçalidade de que é capaz. Vidal cita Debord porque ouviu dizer algures que se trataria da melhor prosa do século XX, mas mostra-se incapaz de extrair dessa prosa um vestígio, por pequeno que seja, de inteligência. E nem por acaso, referindo-se a uma experiência histórica que terminou de forma dramática, escreveu Debord sobre a Comuna de Paris, que aquela "foi a maior festa do século XIX." E como nem sequer faltou a referência ao Maio de 68, importa notar que sobre o assunto escreveu o mesmo Debord que "foi evidentemente a rejeição do trabalho alienado; e foi por isso a festa, o jogo, a presença real das homens e do tempo."
Do mesmo modo, a referência à «imitação reverencial» do passado é outra imbecilidade que só traz ao de cima a sua incapacidade de dialogar com uma tradição teórica da qual se reivindica insistentemente. O presente pode actualizar o passado, retirar dele os materiais de que necessita, apropriar-se da história para realizar as suas próprias tarefas. E não é preciso ter lido Walter Benjamim para perceber o conteúdo fundamental deste pressuposto - todas as revoluções sociais da modernidade citaram abundantemente o passado e retiraram das anteriores experiências revolucionárias ensinamentos, contributos, soluções. Mas isso são tudo coisas demasiado aborrecidas para quem se limita a declamar e reproduzir lugares comuns sobre o kitsch e a vanguarda. Os acontecimentos de 68 continuam a ser algo difícil de digerir para quem está tão bem instalado na sua própria irrelevância, e por isso o incómodo perante um texto que agita o seu espectro. Sim, uma greve geral selvagem pode voltar a acontecer e um novo ciclo de lutas sociais pode voltar a ser aberto, inesperada e subitamente. A quem poderá isso meter medo?
Do mesmo modo, a referência à «imitação reverencial» do passado é outra imbecilidade que só traz ao de cima a sua incapacidade de dialogar com uma tradição teórica da qual se reivindica insistentemente. O presente pode actualizar o passado, retirar dele os materiais de que necessita, apropriar-se da história para realizar as suas próprias tarefas. E não é preciso ter lido Walter Benjamim para perceber o conteúdo fundamental deste pressuposto - todas as revoluções sociais da modernidade citaram abundantemente o passado e retiraram das anteriores experiências revolucionárias ensinamentos, contributos, soluções. Mas isso são tudo coisas demasiado aborrecidas para quem se limita a declamar e reproduzir lugares comuns sobre o kitsch e a vanguarda. Os acontecimentos de 68 continuam a ser algo difícil de digerir para quem está tão bem instalado na sua própria irrelevância, e por isso o incómodo perante um texto que agita o seu espectro. Sim, uma greve geral selvagem pode voltar a acontecer e um novo ciclo de lutas sociais pode voltar a ser aberto, inesperada e subitamente. A quem poderá isso meter medo?
Tudo isto, que pouca importância teria num debate destes, serve apenas para sublinhar que estamos perante um personagem que, para lá do conteúdo propriamente político do que escreve, é uma gritante fraude intelectual e um dos exemplos acabados do que pior existe na franja artistóide lisboeta com pretensões intelectuais. Mal informado por terceiros das questões relevantes do nosso tempo, revela em cada comentário ou afirmação a boçalidade própria de quem acompanha com reverência o que se diz, escreve e faz "lá fora".
Como poderia ele compreender as razões de uma concentração anticapitalista numa manifestação da CGTP, se tudo no seu imaginário separa os jogos florais de salão (que toma enquanto teoria) do processo histórico da luta de classes? Tão velho como este mundo que se decompõe perante os nossos olhos, Carlos Vidal é bem o sintoma do seu estado terminal.
A inação é asquerosa
por
Pedro Viana
O Rui Hebron entretem-se a criticar o discurso do PSD e CDS relativamente aos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), esquecendo que o governo do PS em nada se tem esforçado por contrariar o estigma que tem sido lançado sobre as pessoas que recebem o RSI. Pelo contrário. Aliás, o governo continua a proclamar medidas atrás de medidas que mais não visam do que baixar o salário médio pago em Portugal, agravando ainda mais as condições de vida dos mais pobres. O que não parece indignar por aí além certa Esquerda "responsável", tendo em conta o silêncio ensurdecedor sobre tais medidas. Será falta de convicção ou fidelidade partidária?... De vez em quando houvem-se algumas lamúrias. Mas tentar fazer algo para mudar o rumo do governo é algo que não parece passar por cabeças tão "responsáveis". Quem se atreve a divulgar este cartaz
e juntar-se a nós, na rua, no dia 29 de Maio?...
e juntar-se a nós, na rua, no dia 29 de Maio?...
26/05/10
Da luta contra os "Donos da Luta"
por
Miguel Serras Pereira
Apesar dos equívocos a que se prestam os seus considerandos — sobretudo pelo tom um tanto Praça da Canção a que cedem — e apesar do seu título demasiado cifrado, com o seu recurso à fórmula "bloquear a economia", para uma convocatória deste tipo, o apelo à participação autónoma na manifestação agendada para o dia 29 de Maio que circula na blogosfera, encabeçado pela divisa Bloquear a Economia para Começar a Viver, é uma iniciativa que merece o apoio e a solidariedade dos que entendem que é uma urgência social e política contrariar e obrigar a recuar a ofensiva governamental-patronal, sem com isso avalizarem a subordinação dos trabalhadores e do conjunto de cidadãos aos que se afirmam como seus representantes e "vanguarda" para canalizarem a sua revolta, pondo-a ao serviço dos seus interesses de candidatos ao lugar de "legítimos superiores" e detentores da direcção dos aparelhos estatal e económico.
Ora, ao mesmo tempo que denuncia uma política que visa impor a precariedade e a precarização como normalidade e no mesmo lance puni-la na acepção penal do termo; limitar os direitos e liberdades conquistados por lutas seculares dos trabalhadores e movimentos populares; suspender as garantias de natureza democrática cujo reconhecimento essas mesmas lutas lograram impor à oligarquia governante, e reforçar através de sucessivos pacotes e programas autoritários o projecto de transferir, com o apoio dos "meios de violência legítima" que são monopólio do Estado, poderes governamentais cada vez mais absolutos para as mãos dos que já exercem um governo sem controlo democrático da actividade económica - ao mesmo tempo que denuncia esta política e se recusa a adiar a luta contra ela, a convocatória Bloquear a Economia para Começar a Viver torna possível participar na manifestação de 29 de Maio sem que essa participação equivalha ao reconhecimento de qualquer autoridade à direcção dos que pretendem ser “donos da luta” e capitalizá-la, explorando a revolta dos trabalhadores e precários como outros capitalizam a sua força de trabalho. E que, assim, mostram bem como agiriam se fossem "donos do poder" por mais que o pintassem de vermelho e lhe chamassem "poder dos trabalhadores", "ditadura do proletariado", "poder popular", ou "Estado de todo o povo".
Como escreve o Carlos Guedes, nos comentários que acrescentou à publicação do apelo: "É natural, portanto, que haja pessoas que, estando motivadas para a luta não o estejam para uma luta conduzida e/ou determinada pela CGTP. Principalmente quando sabemos que não é, muitas vezes, a própria CGTP a marcar o calendário das suas iniciativas. (…) Uma nota final para dizer o seguinte: se é inegável que a CGTP e os sindicatos que representa desempenham um papel fundamental na nossa sociedade, também o é que o que aconteceu com a malta do May Day, que no 1º de Maio se pretendia juntar à manifestação, em nada ajuda à união de esforços. E coisas como essa ajudam, e de que maneira, a que alguma malta comece a ficar farta dos tiques de «dono da luta» de alguns senhores que por aí andam".
Na mesma ordem de ideias, uns comentários mais abaixo e na mesma caixa dos ditos, parecem-me boas as razões do Ricardo Noronha, ao concluir: "Diria eu que no fundamental, quem acha que o PEC e estas medidas são injustas e inaceitáveis deve ir à manifestação, mesmo se não concorda com cada um dos pontos da convocatória — depois de deixar claro que isso: "não poderia nunca equivaler a abdicar de sustentar um ponto de vista diverso daquele que a mesa nacional da CGTP considera ser o melhor. Aliás, eu concordo com o «não» da CGTP, o mais complicado é mesmo o «sim». Naturalmente, não me passa pela cabeça que esta componente da manifestação prefira lançar palavras de ordem contra os sindicatos em vez de o fazer contra os patrões e o governo. Tenho para mim que se limitará a gritar palavras de ordem distintas das que vêm naquelas folhinhas com slogans previamente decididos e que os trabalhadores são convidados a repetir ao ritmo do megafone".
A luta contra os "donos da luta" deve ser travada — também e sempre que possível — no terreno em que a apropriação da sua "mais-valia" se prepara. Ou seja, independentemente de algumas reservas justificadas que a convocatória alternativa suscite, vale a pena sair à rua no dia 29 de Maio para travar a ofensiva do governo e a sua política de consolidação do "poder económico", e para impedir ao mesmo tempo a exploração da luta pelos interesses anti-populares dos que se pretendem seus donos.
Ora, ao mesmo tempo que denuncia uma política que visa impor a precariedade e a precarização como normalidade e no mesmo lance puni-la na acepção penal do termo; limitar os direitos e liberdades conquistados por lutas seculares dos trabalhadores e movimentos populares; suspender as garantias de natureza democrática cujo reconhecimento essas mesmas lutas lograram impor à oligarquia governante, e reforçar através de sucessivos pacotes e programas autoritários o projecto de transferir, com o apoio dos "meios de violência legítima" que são monopólio do Estado, poderes governamentais cada vez mais absolutos para as mãos dos que já exercem um governo sem controlo democrático da actividade económica - ao mesmo tempo que denuncia esta política e se recusa a adiar a luta contra ela, a convocatória Bloquear a Economia para Começar a Viver torna possível participar na manifestação de 29 de Maio sem que essa participação equivalha ao reconhecimento de qualquer autoridade à direcção dos que pretendem ser “donos da luta” e capitalizá-la, explorando a revolta dos trabalhadores e precários como outros capitalizam a sua força de trabalho. E que, assim, mostram bem como agiriam se fossem "donos do poder" por mais que o pintassem de vermelho e lhe chamassem "poder dos trabalhadores", "ditadura do proletariado", "poder popular", ou "Estado de todo o povo".
Como escreve o Carlos Guedes, nos comentários que acrescentou à publicação do apelo: "É natural, portanto, que haja pessoas que, estando motivadas para a luta não o estejam para uma luta conduzida e/ou determinada pela CGTP. Principalmente quando sabemos que não é, muitas vezes, a própria CGTP a marcar o calendário das suas iniciativas. (…) Uma nota final para dizer o seguinte: se é inegável que a CGTP e os sindicatos que representa desempenham um papel fundamental na nossa sociedade, também o é que o que aconteceu com a malta do May Day, que no 1º de Maio se pretendia juntar à manifestação, em nada ajuda à união de esforços. E coisas como essa ajudam, e de que maneira, a que alguma malta comece a ficar farta dos tiques de «dono da luta» de alguns senhores que por aí andam".
Na mesma ordem de ideias, uns comentários mais abaixo e na mesma caixa dos ditos, parecem-me boas as razões do Ricardo Noronha, ao concluir: "Diria eu que no fundamental, quem acha que o PEC e estas medidas são injustas e inaceitáveis deve ir à manifestação, mesmo se não concorda com cada um dos pontos da convocatória — depois de deixar claro que isso: "não poderia nunca equivaler a abdicar de sustentar um ponto de vista diverso daquele que a mesa nacional da CGTP considera ser o melhor. Aliás, eu concordo com o «não» da CGTP, o mais complicado é mesmo o «sim». Naturalmente, não me passa pela cabeça que esta componente da manifestação prefira lançar palavras de ordem contra os sindicatos em vez de o fazer contra os patrões e o governo. Tenho para mim que se limitará a gritar palavras de ordem distintas das que vêm naquelas folhinhas com slogans previamente decididos e que os trabalhadores são convidados a repetir ao ritmo do megafone".
A luta contra os "donos da luta" deve ser travada — também e sempre que possível — no terreno em que a apropriação da sua "mais-valia" se prepara. Ou seja, independentemente de algumas reservas justificadas que a convocatória alternativa suscite, vale a pena sair à rua no dia 29 de Maio para travar a ofensiva do governo e a sua política de consolidação do "poder económico", e para impedir ao mesmo tempo a exploração da luta pelos interesses anti-populares dos que se pretendem seus donos.
Quem nos protege da polícia?
por
Miguel Cardina
Dois jovens estudantes - Vasco Dias e Laura Diogo - foram ontem violentamente agredidos pela PSP no Bairro Alto. A notícia está aqui e merece, no mínimo, um inquérito para que se apurem responsabilidades e se esclareçam comportamentos. É a única maneira de continuarmos a acreditar que vivemos num Estado de direito.
25/05/10
Protesto Geral
por
Ricardo Noronha
Vivemos tempos difíceis, em que se conspira mais ou menos abertamente para pôr os trabalhadores a pagar a crise e a os custos do relançamento da economia capitalista. Tempos em que estratégias, tácticas, organizações, programas e concepções de política são postos à prova quotidianamente. Tempos em que o medo alastra e a única solução, para muitos, é emigrar. Tempos em que o espaço noticioso se vê integralmente coberto pelo discurso obscurantista e socialmente regressivo, que atribui a quem trabalha a responsabilidade pelo estado em que estamos e repete sem qualquer prurido que vivemos acima das nossas possibilidades. O tempo está bom para ser impaciente, precisamente porque a paciência tem sido o mais duvidoso dos nossos méritos. Duas, três, muitas acrópoles, podem bem ser o programa mínimo para quem queira mudar as coisas.
Se isto chegou onde chegou, não o devemos apenas ao cinismo de Sócrates, à maldade de Passos Coelho ou à ganância do poder financeiro e dos grandes grupos económicos. Atribuir as causas das nossas dificuldades às patifarias dos poderosos pode servir de consolo momentâneo, mas não nos tira do buraco onde estamos. As causas da nossa situação devem ser procuradas em nós e as nossas fraquezas identificadas nas nossas escolhas. Nesse sentido, a constante emergência de homens providenciais a propósito das eleições presidenciais é um péssimo sinal. Só a nós compete enfrentar a situação e invertê-la.
É por isso que a convocatória que aqui publiquei me parece ser um excelente contributo para uma resposta política e social a esta pilhagem organizada. E que os argumentos do Nuno aqui desenvolvidos me parecem injustificados.
Quem disser que tem neste momento uma solução mágica para todos os nossos problemas estará a mentir. Mas quem prefere ignorar que os nossos problemas começam na própria forma como conduzimos as nossas lutas faz o pior dos serviços.
Para que isto mude, é necessário correr riscos, experimentar, testar, errar e fazer o balanço dos erros, cair e voltar a levantar-se. Tudo menos a imagem pacificada de pessoas que protestam ordeira e previsivelmente para regressarem ao trabalho na 2ª feira com a consciência tranquila, por terem dado o derradeiro contributo para a luta por um mundo melhor. Arrumados, enquadrados e bem comportados, para que tudo fique estranhamente da mesma maneira. Hoje, perante esta cuspidela atirada à cara de todos nós, o pior que poderíamos fazer seria precisamente fazer o mesmo de sempre. E é precisamente porque estou com a luta que acho que não estamos a lutar da melhor maneira.
Subscrever:
Mensagens (Atom)