No seu último livro, uma prosa intimista a que também ele tem direito (e nós, leitores, sobretudo), que é, diga-se, prosa de primeira fila (e não vale a pena andar sempre a repetir-me, dizendo que o prefiro mil vezes como poeta na prosa que enquanto poeta de poesia), Manuel Alegre fixa e repete a sua grande memória de infância, a de quando miúdo se entretinha a pregar pregos numa tábua. Eu não fiz isso, naturalmente por falta de tábua e de pregos e não me permitirem brincadeiras de tamanho risco. Mas lembro-me que, para vencer o tédio infantil, brincava com as molas de estender a roupa. Fazia com elas infindáveis e renovadas construções, erguendo figuras que se desmoronavam a partir de uma certa complexidade mas que logo se recompunham em novas e imprevistas formas e recriava batalhas e jogos de futebol, que me davam o gozo de ganhar sempre, antecipando os legos que ainda era cedo no tempo para me calharem à mão, tanto mais que a fábrica dinamarquesa de sucesso ainda não abrira as portas. Mas obviamente que entendo, apesar da globalização dos modelos, que cada criança reproduz à sua maneira as suas vitórias contra o medo e pela aventura de vencer por via da representação e da teimosia, a arma de coragem dos fracos que querem libertar-se. Este livro de Alegre, entrando no cruzamento de afectos, ele a virar-se para si e os leitores a virarem-se para eles no mais fundo de si mesmos, numa espécie de mimetismo paralelo e unipessoal, deixou-me essa marca simbólica inapagável do miúdo Manuel a pregar pregos numa tábua, numa aparente inutilidade mas com a força dos símbolos que, se impregnados, fazem a força de uma pessoa que quer crescer e ser.
Depois de lhe ler este livro, o seu livro mais intimista, vejo e oiço Alegre sempre como o cidadão a pregar pregos numa tábua. Até na exposição mais pública e no projecto mais vasto e mais colectivo. Como ontem o vi e ouvi ao vivo num acto de homem solidário a apresentar o livro de Carlos Brito acerca de Cunhal, não para bajular o autor e seu amigo mas para, inclusive, apresentar as suas discordâncias relativamente a partes da obra, sujeitando-se depois a ouvir galhardamente o competente contraditório. Mas sobretudo nessa ambição, que se quer dele e colectiva, de libertar Belém dessa figura triste, caricata, professoralmente provinciana e estruturalmente reaccionária que hoje habita o palácio e apequena o país e o seu povo. E se o acompanho, porque vou acompanhá-lo, na caminhada de Alegre à presidência, sei que não prego os pregos de Alegre na tábua de Alegre. Ele não me pede isso nem eu lhe pediria outro tanto. Com as minhas “molas de estender roupa”, outros muitos mais com as suas fábulas e símbolos que habitam os sonhos da solidariedade, capazes de fazermos uma távola redonda de ambição de mudança perante o torniquete do sufoco, havemos de chegar ao fim da canção, a que não tem praça com ursos amestrados a dançarem o baile mandado, por chefes ou por exigências de prévias identificações ideológicas micro, mínimas, médias ou máximas. Simplesmente porque um alfinete não serve como prego.
(publicado também aqui)
28/05/10
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