18/05/10

Desabafo antiteísta

Este estimulante texto do Miguel Serras Pereira, por tanto concordar com ele, coloca-me a curiosidade no ponto de gostar de vir a saber porque é que ele se considera ateu, sendo que os ateus que conheço e como tal se identificam dizem-se assim sobretudo para se demarcarem das práticas da Igreja dominante na Europa e na América Latina, a católica, mas conservando relativamente à instituição e seus seguidores uma praxis de tolerância suportada na consideração protocolar para com a fé e a religiosidade. Hoje e no fundo, os ateus não fazem mais, além de serem os herdeiros naturais dos antes mais convencionais e auto-intitulados agnósticos (uma espécie em vias de extinção), do que praticarem uma tentativa de relação de tolerância convivencial, politicamente correcta, desarmada ideologicamente, dando a cada concidadão estimado seguidor de religiões o benefício da não responsabilização automática entre a sua crença e as práticas da Igreja que a coordena e lhes dá poder. Desde logo, pela adopção da fórmula recuada do a-teísmo que é uma maneira defensiva de mostrar respeito e não entrar em campo sob o pretexto de se ter o fato treino ainda vestido. Permitindo aos católicos (os de “base”, mas afinal a multidão que sustenta os ditadores da fé) - tal como alguns permitem relativamente aos estalinistas do marxismo-leninismo de hoje “libertarem-se”, por absolvição imposta pelas lutas e para não pecarem por “anticomunismo primário”, do seu património em sangue e crimes onde exerceram e exercem o poder -, jogarem em dois tabuleiros, conforme as circunstâncias, ou ao lado da Igreja, do Papa se necessário, ou do lado da crítica indolor, em efeitos práticos, às malfeitorias dessa mesma Igreja-poder. Dando-lhes ainda vazas para gerirem convenientemente as suas artes na duplicidade, ora laicizando-se junto da república e até da esquerda, com abraços eucuménicos ao povo vermelho e de esquerda, quando o Vaticano é grotesco sem risco de abanar, mas queixando-se imediatamente de intolerância se alguém gritar incomodado que Portugal é uma república laica, não um país católico ou de católicos, mesmo se composta por uma maioria de católicos praticantes, não praticantes e outros nem isso, perante o assistir à catolização forçada do país durante uma visita papal (leiam-se, a propósito, os lamentos dos católicos de esquerda e excelentes pessoas Miguel Marujo e Helena Araújo).

Obviamente que JBB levou os ilimites da relativização ateísta até à apologia do harakiri táctico face ao avanço da religiosidade (operada nas condições concretas da crise actual do capitalismo, em que a fé procura ganhar terreno entre as perdas dos valores políticos e de cidadania, culpas tangíveis de uma esquerda passadista e desarmada). Usando o argumento maior, mais desarmante e mais falacioso, o da tolerância e bonomia para que “o inimigo não se fortaleça”. Por isso, só posso saudar e solidarizar-me com a coragem de desmonte do MSP. Só me faltando perceber porque, pensando e escrevendo assim, este ainda permanece enclausurado na trincheira defensiva do ateísmo, uma causa própria de não-combatentes.

7 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,
tentarei responder-te por extenso e por isso não o faço de imediato. Há mais dias. Para já, digamos que, em termos políticos, posso e devo exigir aquilo a que chamo o "ateísmo democrático" ou seja a exclusão do nome de Deus ou da sua vontade como razão de ser ou justificação das leis humanas, que os cidadãos de uma república devem reivindicar a responsabilidade de se darem. O que significa a "destituição política da religião". Mas já não posso nem devo impor aos cidadãos a descrença religiosa como condição de maior ou menor cidadania.
Agora, bem sei, este aspecto das coisas não esgota a questão. E filosoficamente, eu diria que a alternativa se põe, já em termos mais próximos daquilo a que chamas anti-teísmo, entre os que reconhecem a criação humana - limitada, finita, mortal, mas efectiva - criação de coisas, realidades, essências que não havia nem estavam originária ou finalmente determinadas, que não eram ou eram nada antes de as fazermos ser -, e os que a reduzem a uma aparência, ilusão, erro ou pecado, porque afirmam um Deus criador de todas as coisas, sendo que não se concebe que a sua omnicriação deixe resto que nos permita, aos humanos, criar verdadeiramente seja o que for, ou sermos livres. A conciliação da crença na criação divina com o reconhecimento - que nos liberta e responsabiliza (é se Deus existe que podemos permitir-nos tudo, pois que nada nos permitiremos que ele não permita) - da criação humana só é possível através de um salto da fé que derroga ou suspende a exigência de dar conta e razão do que dizemos, escolhemos e fazemos. Por isso, se não equivale ao "creio porque é absurdo", não anda longe disso, e equivale, pelo menos, ao "creio apesar de ser absurdo". Mas se podemos suspender ou derrogar em última instância o logos e a sua exigência nesta matéria suprema, porque teremos de os manter nas restantes ocasiões da nossa existência? Se cedemos aqui ao pensamento desejante, não estamos a reforçar a sua tentação noutras circunstâncias? E, por fim, escuso de te dizer que considero uma aberração querer fundar no salto da fé e nas suas revelações a racionalidade e o livre-exame que a prática da democracia requer.
Voltaremos breve a falar melhor de tudo isto. Desculpa o atabalhoado. Mas creio que, se o acordo não é completo, continuamos, no fundamental, solidários.
Abraço

miguel (sp)

Alx disse...

"(leiam-se, a propósito, os lamentos dos católicos de esquerda e excelentes pessoas Miguel Marujo e Helena Araújo)."


só espero que não sejam, só, excelentes pessoas porque são de esquerda e se lamentam...

João Tunes disse...

Não, Miguel, não defendo qualquer imposição anti-religiosa, muito menos na dimensão com que a ditadura (um fascismo clerical) e esta democracia de salamaleque perante o Papa nos transformou durante uma semana em "país católico", suspendendo a república. Quero combatê-los no campo das ideias e do contraditório, combate a disputar entre iguais, não remetidos para os hegemonizados, nos lugares condescendentes dos agnósticos e ateus. E advogo um proseletismo moderado e educado mas que não dispense o combate às religiões, parte insubstituível da libertação cidadã dos povos. É a ideia do sagrado, de deus, que verga os crentes e organiza o sistema de submissão com abdicação de cidadania. O Vaticano odioso e monárquico-fascista, com a suas sucursais de teólogos, prosélitos e submissos vem depois, a coberto do direito à religiosidade. A democracia tem tudo a ver com isto. Julgo.

Miguel Serras Pereira disse...

João, perfeitamente de acordo, quando dizes que " a ideia do sagrado, de deus … verga os crentes e organiza o sistema de submissão com abdicação de cidadania" - mas se entendermos que é a ideia do sagrado e de deus como fontes e origem da lei humana e da instituição. Admito que sejam possíveis outras relações com a divindade, que se fixem como condição uma secularização da política, uma destituição política da religião. Mas, por outro lado, este ateísmo da democracia tem de ser transposto para outras formas de sacralização, absolutização - da natureza como ordem de determinações exaustiva, do conhecimento dos mecanismos da história ou da economia, etc. - que têm igualmente por efeito furtar à assembleia dos cidadãos o poder de dizer, falivel mas responsavelmente, a lei que os governará, ou através da qual, melhor, se governarão.
Robusto abraço democrático

miguel sp

Justiniano disse...

Caríssimo MSP,
"o "ateísmo democrático" ou seja a exclusão do nome de Deus ou da sua vontade como razão de ser ou justificação das leis humanas, que os cidadãos de uma república devem reivindicar a responsabilidade de se darem.", e que me perdoe o J. Tunes, sendo este um seu post, ver-se assim invadido sem antes nem mais.
Como queria dizer, caro MSP,em Santo Agostinho "arbitrium liberum" é condição da pessoa humana e é, tal condição, criadora de angústia pois ao indivíduo cabe a escolha de encontrar ou não a graça divina.
Ora a justificação das leis humanas será, sempre, a graça da justiça. A Republica nunca é moralmente neutra. Então aqui chegados diz-me, o caro MSP, que podemos prescindir, excluir, (abjurar será mais o J. Tunes)a ideia da graça Divina como razão de justiça e de dever ser, apenas porque não queremos conceder em nada à(s) ortodoxia(s) religiosa(s).
Posso ou não subscrever o que disse, literal ou de outro modo, mas sem nunca prescindir da Republica com as suas virtudes (ethos) e repudiando sempre a Republica sem virtude, mas compreendo-o, meu caro MSP, ao crer na natureza "divina" do homem (indivíduo) e ter neste infindável esperança.
O que não posso, não consigo, compreender é "...combate às religiões, parte insubstituível da libertação cidadã dos povos..", "...É a ideia do sagrado, de deus, que verga os crentes e organiza o sistema de submissão...", uma vez que não demanda virtude à República e desse modo nenhuma ideia de justiça lhe subjaz em primazia e hetero-determinação. Mas, caro J. Tunes, tão somente posso ler nas suas palavras um ajuste de contas com a história e com o homem. Com sanha, caro J. Tunes, este combate produziu as maiores abominações da história da humanidade.
Um bem haja,

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Justiniano,
o meu ponto, aqui, é o seguinte. A religião - a instituição religiosa historicamente realizada - diz-nos: "A lei não é nem pode ser sem desastre vossa obra. À lei, deveis obediência, e está-vos proibido fazê-la. A lei só legítima se corresponder à vontade de deus ou à ordem divina do cosmos, tal como a transcrevem os intérpretes autorizados". Claro que as variantes são muitas, mas a ideia é sempre mesma. Ora, deixando em aberto a questão de saber se não será possível outra afirmação religiosa, e até para que a questão se possa pôr plenamente, a destituição política da religião é uma condição necessária do reconhecimento de que a lei não é verdade sagrada, mas obra humana; não mandamento divino, mas decisão humana; não cópia fiel ou desvio aberrante de uma ordem anterior, mas criação histórica de parte inteira.
Acrescento apenas que, na hipótese de se aceitar religião que não se proponha comandar as instituições ou legitimar e consagrar o poder que a legitime e imponha, a destituição política de que falo é uma garantia para os crentes, previne a idolatria de obras demasiado humanas, o preenchimento "blasfemo" daquilo a que Eduardo Lourenço chamou há muitos anos "o lugar impossível de Deus".
Amistosas saudações reconhecidas pelo seu interesse no meu comentário ao post do camarada João Tunes

msp

João Tunes disse...

Sim, Sr. Justiniano, eu sei do que fala quando refere "as maiores abominações da história da humanidade". Fui criança, adolescente e adulto no tempo do cardeal Cerejeira, conheci o fascismo clerical no meu tempo de escola, vi de perto como a igreja deu a mão à PIDE e militares na guerra colonial, sei como se tratavam crentes e sacerdotes cujas convicções entravam em colisão com o fascismo e o colonialismo, sei como por tacticismo hipócrita a igreja e a religião, se "adaptaram " ao regime democrático e constacto como não perdem oportunidade para imporem a fé, dominarem e conservarem o poder, tentando conquistar novos patamares de privilégios. Eu estava cá na mesma semana em que cá esteve Bento XVI e transformou Portugal num estado confessional temporário.