31/05/10

Réplica ao Miguel Cardina e à Joana Lopes, camaradas destas e outras vias

Miguel e Joana,

O post que aqui deixei esta manhã foi objecto da vossa parte de uma demarcação tão radicalmente formulada que penso ser saudável trazê-la da caixa de comentários para a primeira linha.

Escreveu o Miguel: "Isto é de uma insensibilidade inesperada em ti. Achas mesmo que a transexualidade e as questões da identidade sexual se podem equiparar aos exemplos que apontas?". E a Joana, não menos contundente: "É o post mais infeliz de todos os que alguma vez li, assinados por ti. 

Para além de brincares com coisas que são sérias para muitas pessoas, O que raramente aprecio".

Ora, acontece, camaradas, que a minha ideia não é denegrir a transexualidade ou outras orientações sexuais. É denunciar os impasses e os absurdos da multiplicação dos direitos identitários. Ou a tese segundo a qual as opções, preferências, gostos individuais devem ser tutelados como direitos desta identidade ou daquela e não, muito simples e democraticamente, ao abrigo da liberdade individual.
Indo um pouco mais longe: em sociedade, ninguém escolhe uma identidade cultural livremente; pode - e, numa sociedade em vias de democratização, deve - contribuir para a sua redefinição, dessacralizando as instituições, refazendo as leis, reinventando usos e costumes, transformando radicalmente, em sendo caso disso, os traços e condições da identidade cultural recebida.
Mais ainda, querer uma sociedade democrática ou autónoma significa querer uma sociedade que impõe a todos os seus membros a cidadania como identidade política e cultural primeira, uma sociedade que forma e educa os seus membros enquanto cidadãos e que politicamente é como cidadãos que, sem distinções, os reconhece.
Quer isto dizer que reprima, desencoraje, asfixie as outras dimensões dos indivíduos seus membros que, em cada um deles, coexistem com a cidadania? É evidente que não. Muito pelo contrário, o que faz é tornar a sua identidade (cultural, colectiva, etc.) de cidadãos legisladores e autogovernados garante das diferenças individuais; da liberdade de costumes na esfera informal da convivência modulada pelas afinidades particulares de cada um; da autonomia na esfera da subjectividade, e assim por diante. Mas sem condicionar as escolhas individuais ou de grupos e categorias particulares a um reconhecimento legal categorial ou particular que, positiva ou negativamente, as discrimina, regulamenta e codifica (seja subalternizando-as, seja privilegiando-as, seja fazendo uma coisa por um lado e outra pelo outro - mantenho e sublinho).
Noutra ordem de ideias, uma coisa é dizer que a orientação sexual é diferente, mais complexa e rica, do que as diferenças sexuais enquanto caracteres anatómico-funcionais biologicamente determinados; outra, muito diferente, é não reconhecer (nas fronteiras da psicose) que essas diferenças estão ou estiveram lá e não reconhecer que é diferente (embora normativamente a instituição da cidadania o torne irrelevante para efeitos políticos) nascer-se homem ou mulher, independentemente do que cada um venha livremente a fazer daí em diante. Sem dúvida, o direito democrático e a política da autonomia criam e afirmam, fazem ser e impõem, uma realidade nova que modifica as relações entre os termos em presença: por exemplo, a igualdade de direitos entre mulheres e homens - mas sem que esses termos e as suas diferenças deixem de existir noutros planos da realidade. A igualdade de direitos entre as mulheres e os homens não precisa de negar que uns e outros nasceram portadores de caracteres sexuais distintos, não-equivalentes, e não é a igualdade desses caracteres, mas sim uma igualdade independente deles, que estabelece. O mesmo vale no caso dos transexuais e noutros semelhantes do ponto de vista que aqui nos ocupa.
Quem entende, ao contrário do que é a minha posição, que o direito à transexualidade passa pelo BI, deveria ir um pouco mais longe, e defender uma das duas seguintes soluções: ou o BI registaria a condição de transexual e as suas diferenciações internas - e também outras orientações sexuais que viessem a formular-se na base de outros traços identitários; ou o BI registaria o sexo que qualquer adulto maior entendesse ser o seu, independentemente de tutela psicoterapêutica ou psiquiátrica (discriminatórias), ao longo dos diversos períodos da vida. Além de que deveria interrogar-se sobre o que fazer perante o grupo ou "identidade sexual" cujos membros entendessem reivindicar a possibilidade para cada deles de se declarar dos dois sexos (de resto, a iniciativa legislativa a que me referi deveria este tema na ordem do dia de quem entende que o mesmo deve ser objecto de legislação especial).
Por fim, é precisamente porque entendo que cada um deve ter o direito de viver, consigo próprio e nas suas relações com os outros, tão livremente quanto possível a sua sexualidade que penso que as suas orientações e todos os aspectos que relevam de uma escolha individual nesse domínio devem ter por garantia os direitos fundamentais e não disposições que os tornam membros de uma categoria jurídico-política à parte, como é inevitável que venha a ser o caso com o reconhecimento oficial de "identidades sexuais".

A última observação tem a ver com o reparo que a Joana me faz: "… Para além de brincares com coisas que são sérias para muitas pessoas, O que raramente aprecio". Aqui podia remeter simplesmente para o que escrevi ontem Sobre as reciclagens fracturantes da censura puritana. Mas, tratando-se da minha camarada de luta anti-clerical que se distinguiu no exercício do humor ao mesmo tempo subtil e implacável que todos lhe conhecemos contra coisas que são as mais sérias do mundo para muito do catolicismo da casa, limito-me a perguntar-lhe por que razão deveríamos brincar menos com a sexualidade do que com as crenças religiosas, e por que razão não reivindica para estas o mesmo tratamento.

Em suma, enquanto não me forem apresentadas melhores razões que, no todo ou em parte, me façam corrigir o tiro, não vejo maneira de não persistir e reassinar o que escrevi esta manhã.
Honestamente e sans rancune

miguel serras pereira

12 comentários:

Joana Lopes disse...

Miguel,

Respondo, embora contrariada, porque esta sequência: post – comentário – resposta em post – novo comentário não é o meu estilo. Mas é o teu e respeito-o.

Vou só directamente ao último parágrafo que me é directamente dirigido. Se nas minhas críticas anticlericais gozei católicos convictos pelas suas crenças e pelo direito a tê-las, fiz mal e penitencio-me. Mas, por vezes e bem recentemente, até lhes dei voz, como por exemplo aqui.

Sobretudo, não me lembro de ter feito humor a propósito de minorias, mesmo que se tratasse dos peregrinos que se arrastam de joelhos em Fátima. Mas se o fiz – repito -, foi condenável.

Miguel Cardina disse...

Miguel,
Talvez tenha sido brusco, mas apenas pretendi referir que este é um tema complexo que devemos evitar tratar com um estilo de humor que tende a menosprezar a questão. Ou melhor, podemos tratar da maneira que quisermos mas estranhei que tivesses optado por esse caminho. Na verdade, o teu post anterior pareceu-me demasiado semelhante a este:
http://corta-fitas.blogs.sapo.pt/3706264.html

Mesmo que não se concorde com o que dizes - pessoalmente não tenho certezas absolutas e estarei atento ao que se dirá nos próximos dias - este de cima já é um texto argumentado e claro, como é apanágio dos teus escritos.

sérgio vitorino disse...

Olá. O primeiro engano conceptual do Miguel é resumir o "Género" - ou a identidade de Género (a auto-identificação de cada um/a relativamente aos referentes masculino e feminino) - a "sexo" (que não refere mais do que os órgãos genitais externos com que nascemos). O segundo é referir-se à Identidade de Género como "orientação sexual" ou "identidade sexual", quando, na verdade, são coisas distintas: uma pessoa transexual pode ser homo, heterosexual ou bisexual.
O terceiro engano do Miguel é o de que as reivindicações legais relativas à transexualidade - como a mudança do nome e do sexo nos documentos de identificação, terá a ver com alguma espécie de necessidade automatista de forçar o estado a reconhecer todas as diversidades de identidades, e não com direitos sociais concretos reconhecidos ou negados. Negados, neste caso. Desde logo, e para não referir uma longa lista de exclusões e violências a que são sujeitas as pessoas transexuais, trata-se de pessoas a quem maioritariamente a impossibilidade de alterar os seus documentos priva de qualquer ínfima possibilidade de acesso ao mercado de trabalho. Só isto, e a exclusão material e social que propicia, seria já motivo para se legislar nesse sentido.
Como as feministas já sabiam, sexo e género são coisas distintas. A nossa identidade de género tem pouco a ver com os órgãos genitais com que nascemos, e mais com a carga cultural que a sociedade lhes cola. A própria biologia nega que a espécie humana só produza "homens" e "mulheres" (vejam-se as centenas de casos de intersexualidade reconhecidos já hoje pela Medicina), e mesmo os "homens" e "mulheres" não obedecem a um único padrão. Não há dois órgãos sexuais externos masculinos iguais, e muito menos há duas pessoas iguais se passarmos a considerar para atribuição de um sexo a cada bebé, como felizmente alguma Medicina mais progressista começa a investigar e fazer - os factores hormonais e genéticos, e não apenas os órgãos sexuais externos (que aliás induzem em erro, como provam pela mera existência as pessoas transexuais). Na verdade, estúpida, estúpida, é esta necessidade de atribuição de um sexo, e ela tem obviamente a discriminação das mulheres e o móbil de diferenciação dos papéis sexuais como pano de fundo.
Mas grave mesmo é olhar para uma realidade de extrema exclusão social, laboral, legal e de cidadania com base no Género, como um capricho de quem não passa sem um reconhecimento estatal, sem entender que próprio o Estado (com leis e regras) aprofunda e cauciona essa discriminação, que a Medicina a sistematiza e justifica, e que vivemos numa sociedade preconceituosa e com um conceito de género erradamente binário que faz das pessoas transexuais um dos grupos mais expostos à violência- inclusivé ao assassinato - em qualquer parte do mundo de hoje.

Miguel Serras Pereira disse...

OK, meu caro Homónimo e Camarada Cardina,
não pretendo ter escrito um post modelo, e admito que tu e outros por boas razões - e que eu tenho por tais - possam achar que seria melhor não o ter escrito. Mas os considerandos implícitos eram os deste segundo. Só quis mostrar os efeitos perversos que as exigências de reconhecimento oficial comportam para os que as fazem e os que os apoiam, bem como a atitude (inconsciente ou deliberada) de vénia perante a racionalidade administrativa e regulamentadora que reforça as já inquietantes prerrogativas do Estado.
Abraço para ti

Joana,
não gostas de comentários sobre comentários, mas tenho de te responder.
É evidente que talvez nem tu nem eu tenhamos escrito nada de intolerável aos olhos e ouvidos dos católicos de quem, apesar de tudo, nos sentimos próximos. Mas era aos outros que me referia, e não sei como duvidas de muitos considerem no mínimo blasfemo, merecedor de censura pelo braço temporal e de outras sanções legais, alguns dos posts que tu e eu - entre outros - publicámos.
E o que se tem escrito neste blogue sobre Cuba, a defunta URSS, o PCP, o PS não tem usaado do humor, da caricatura, da denúncia, em termos que muitos consideram desrespeitosos ou configurando o "gozo" (expressão tua) com as suas convicções e sentimentos, as suas "identidades" de "comunistas" ou "socialistas" assumidos?
Fazemos mal, fazendo-o - tu, eu, os outros? Entendo que, em tese geral, não - embora caso a caso qualquer de nós possa achar deslocado, inutil, infeliz este ou aquele post que um outro publica. O ponto é que não creio que devamos respeito às crenças que achamos erróneas: dispomo-nos a discuti-las, respeitamos a exigência de dar conta e razão do que dizemos, mas não temos de respeitar mais do que isso, a par dos direitos individuais de quem seja nosso interlocutor. Estaline era um tirano abjecto; Ratzinger é um nostálgico de uma Inquisição de "rosto humano" - se eu publicar caricaturas que o denunciem ou "gozem" com as suas figuras, como os célebres cartoons holandeses gozavam com Maomé, estarei a ferir convicções profundas? Provavelmente - e depois? A liberdade democrática não é pacífica nem respeitadora nem meta-conflitual. Propõe, o que é imenso já, que a palavra substitua a violência - que assume e transforma - perante aqueles que aceitem que assim seja.
Mas o mais aborrecido de tudo isto é que eu não gozei com nenhuma minoria nem pus em causa a liberdade de cada um viver a sua sexualidade da melhor maneira. Se tivesse falado noutro registo, teria escrito por extenso o que me limitei a sugerir em negativo: que entendo ser possível e necessário garantir os direitos e liberdade dos transexuais sem recurso a medidas legislativas do teor da do BE - porque a multiplicação desse tipo de medidas ameaça a liberdade de todos e o primado geral da "identidade cidadã" cuja afirmação a vontade de autonomia democrática implica.
De modo que lamento, pelo meu lado, a infelicidade tanto de tom como de conteúdo da tua resposta. E, de momento, é tudo. Não pode ser de outra maneira.

miguel (sp)

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Sérgio,
foi deliberadamente que não entrei na questão sexo vs. género - pois não ignoro a distinção. O tema da bissexualidade psíquica (freudiana) e aqueles a que deu lugar é fascinante e interessa-me muito sob outros pontos de vista. Há, segundo creio, embora não me pareça que seja sempre muito correctamente entendida, uma alteridade interna e elementar do desejo humano que o torna "legião" - ou "multidão" singular em cada um de nós, e entendo que a liberdade de costumes, das interacções em que as orientações se definem e actualizam aquém e além do quadro da "identidade de género" , e o mínimo de regulação legal nessa matéria fazem parte das condições de vivermos melhor com tudo isso.
Mas o meu meu ponto fundamental era outro: denunciar os becos, impasses e reforços da autoridade do Estado (a judicialização do poder político como árbitro entre pretensões legítimas cada vez mais codificadas, em vez da sua democratização) a que a pode levar a palavra de ordem de defender o direito à diferença através da multiplicação dos seus reconhecimentos oficiais. Mas não devo pôr.me para aqui a repetir o que já disse no post e nas respostas aos outros comentários, apesar de todo o interesse com que li os seus argumentos.

Miguel Serras Pereira disse...

O Miguel Madeira publicou este comentário na caixa do post que foi ponto de partida desta discussão. Para facilitar o debate retomo-o e comento-o aqui:
"Mas para um transexual (neste caso, os transexuais que continuam a ter morfologicamente o sexo biológico) poder viver a sua maneira de ser precisará que no seu cartão do cidadão o M(ou F) seja mudado para um F(ou M)?
Eu até imagino uma situação em que o sexo no BI pode ser relevante - em Portugal não sei, mas nos EUA tem havido casos de transexuais nascidos homens que, ao serem presos por alguma razão, eram enviados para prisões para homens onde muitas vezes eram violados (ou violadas) pelos outros reclusos.
Mas penso que esse problema se aplique mais aos transexuais cirurgicamente alterados".

Miguel Serras Pereira disse...
Nem mais, camarada Miguel (Madeira).
Mas há ainda outro aspecto. Vejamos.
Subscrevo e creio que tu também isto que o Sérgio diz:
"A nossa identidade de género tem pouco a ver com os órgãos genitais com que nascemos, e mais com a carga cultural que a sociedade lhes cola. A própria biologia nega que a espécie humana só produza "homens" e "mulheres" (vejam-se as centenas de casos de intersexualidade reconhecidos já hoje pela Medicina), e mesmo os "homens" e "mulheres" não obedecem a um único padrão. Não há dois órgãos sexuais externos masculinos iguais, e muito menos há duas pessoas iguais …"
Mas se o sexo, já bastante indeterminado, não determina o género, se é a "orientação" e não o ponto de partida que importa considerar, então no BI o que deveria aparecer era "Género" e não "Sexo" . E teríamos não duas, mas várias categorias, ou "identidades de género" todas igualmente reconhecidas. O problema é que, à nascença, quando a criança é registada, não se vê como seria possível fugir às duas categorias estabelecidas - ou, quando muito, fazer mais do que acrescentar-lhe uma terceira (para os casos de "intersexualidade"). A solução seria então adoptar o sexo até determinada idade - a da eclara scolha de orientação do indivíduo (mas em que idade se dá esta?) - e depois substituí-lo ou completá-lo pela orientação de género? Não me parece aceitável, que mais não seja porque não permitiria estabilizar, a não ser autoritariamente, uma identidade de género satisfatória para todos os interessados. Para já não falar nos casos (cada pessoa é um, mas adiante) dos indivíduos que não sabem ou não querem (e não quereriam ainda que as discriminações desaparecessem) determinar ou ver reconhecida a sua orientação de género. Um pouco como tu dizes que nem sempre sabes se és anarquista, marxista, social-democrata, sindicalista revolucionário, etc…
O mais razoável em termos de identificação civil - no caso de se manter a menção do sexo no BI -, será omitir qualquer reconhecimento oficial em matéria de género, e deixar ficar o M ou o F iniciais onde estão a menos que intervenha uma mudança de sexo (não de orientação ou de género). Qualquer outra solução, que passe pela enunciação das orientações de género é errónea (atribuir em nome do género um sexo diferente do actual) ou implica uma intervenção administrativa de definição, regulamentação e condicionamento estatal das "identidades de género". Ou não?
Abraço libertário
miguel sp

31 de Maio de 2010 21:22

LAM disse...

Pode-se portanto apontar o próximo objectivo: instituição de quotas lgbt na ass. da república.

Luis Rainha disse...

Já devias saber que quem se leva a sério de mais tende a só apreciar o humor quando é apontado aos outros...
Mas esta de o humor não poder ser apontado " a minorias" entra já para o top 10 do semestre do humor involuntário.
:-)

rui disse...

assunto sensível, fascinante, provocador...
como pegar nisto?
certamente que numa sociedade "livre" admitindo que uma sociedade livre será uma sociedade em que cada um é livre para maleabilizar as circunstâncias que o rodeiam, em cada instante e à medida dos seus desejos, expectativas e necessidades, cada um poderá "ser" em cada instante aquilo que quiser. Tal como numa experiência solipsista de realidade virtual. O ponto de encontro entre materialismo e idealismo radical, a quadratura do circulo filosófica.
Assim a evolução (ou involução) tecnológica e política permitam à humanidade (chamemos-lhe assim) atingir esse estádio superior.
É certo que nem só de problemas de género e sexo vive o(a) ser humano(a).
Há uns que se revelaram mais fáceis de resolver: qualquer rapariga de cabelos castanhos pode hoje em dia com facilidade aceder às vantagens competitivas que a cultura dominante atribui às loiras. O domínio da democratização da sedução feminina foi, aliás, dos que mais marcaram as últimas décadas para gáudio sexista de alguns homens.
Mas repare-se no problema de um tipo com um metro sessenta num mundo que valoriza proporções no intervalo entre 1.70 e 1.80?
Como usar andas é batota, resta-lhe esperar que a tecnologia fabrique as próteses que lhe substituam as pernas (admitindo que o problema está nas pernas) e lhe permitam ser um cidadão de "pleno direito". Talvez que o SNS comparticipe visto que tratando-se de acesso a "oportunidades", é assunto de direito fundamental do cidadão.
Resta o problema prático, comezinho, do dia a dia numa sociedade ainda infelizmente burguesa que recorre a mecanismos totalitários como o BI para organizar militarmente a sociedade a pretexto de encenar a farsa da "redistribuição da riqueza" nas suas diversas cambiantes.
Os exemplos do Sérgio não me parecem particularmente felizes: hoje em dia, a lei protege (se o não faz na prática trata-se de mais uma manifestação da generalizada ineficácia da aplicação das leis, aspecto este nem sempre de todo negativo já que vivemos numa sociedade oprimida pelas leis que são a expressão da dominação de uma classe) os transsexuais como qualquer outro cidadão. Por exemplo, qualquer cidadão, e não apenas um cidadão transsexual se arrisca a ir preso se exibir a sua nudez em público, por suposto atentado ao pudor...
Por outro lado, e tanto quanto me é dado conhecer pelos meios de informação e a literatura, de ficção ou não, para se ser violado numa prisão americana quer masculina quer feminina, ser transsexual não é de todo um requisito. E isto nem sequer é apanágio das prisões americanas...
Não podemos no entanto ignorar o potencial subversivo desta questão:
Pelo que eu percebo, o transexual, não necessita sequer de fazer uma operação de mudança de sexo. Basta "assumir-se" como tal.
Ora o facto de eu poder legalmente "assumir-me" João, Joana, Miguel, ou Carla, consoante o meu "sentir" em cada circunstância pode ser uma arma importante no estilhaçamento do aparelho burocrático burguês, tão dependente da noção de "identidade", plasmada num cartão, o actualmente designado como "cartão de cidadão".
Claro que me vão dizer:ah!mas isso não é assim, a pessoa não pode andar a mudar de identidade todos os dias... e eu respondo: como, quem, com que direito ou legitimidade estabelece aqui os limites sobre algo que é fundamental na definição do mais intimo da nossa ... er... identidade?
Legalizar essa possibilidade é, assim, torpedear a legalidade burguesa. E isso só pode ser positivo.

Miguel Serras Pereira disse...

Pois é, Luís, como dizia o outro: "neste país em diminutivo/ respeitinho é que é preciso".
O que me deprime é que o "em diminutivo" e o "respeitinho" (essa castração química e soft da crítica) locais são agora reforçados pelos contributos do "politico-sexualmente correcto" global e pela quase-constitucionalização simultânea da estabilidade monetária e da superstição.

Abraço logocentrista

miguel (sp)

Anónimo disse...

da maneira como eu vejo a questão, o reconhecimento do género é feito, em grande medida, pelo nome e não pelo facto de aparecer Género ou Sexo nos documentos oficiais, masculino ou feminino ou outro qualquer. Ao nascer, a criança é chamada de Maria ou José, com base na identificação sexual/genital. O que está em causa é que a Maria, se reconhecer, a partir de certo ponto da sua vida, como José, que esse é o seu género, deve poder mudar o seu nome, a sua identificação oficial, de modo a que essa corresponda ao seu género, sem que isso implique, obrigatoriamente, uma mudança anatómica, do sexo. E isto porque é essa a sua identidade – que não é uma orientação, uma opção, um gosto pessoal ou uma forma de viver a sexualidade – , porque essa identidade não deve ser entendida como uma patologia a ser “curada” ou “arranjada”, quer cirurgica quer psicologicamente, e porque o processo actual de mudança da documentação coloca, na prática, sérios problemas de exclusão social (entre outros). haverá outra forma de garantir direitos e liberdade a transsexuais sem a existência de uma lei de identidade de género?
Cumprimentos, ta_santos

Anónimo disse...

MS. Pereira: Primeiro endereço-te o grito de Victor Serge: " As Revoluções nunca respeitaram as fronteiras ! ", que Lyotard mais tarde alterou para: " Eu, não me ocupo do verdadeiro ou do falso, mas recuso dizer que sou contra o verdadeiro "... De acordo com aquilo que sublinha André Green, o grande psicanalista revolucionário, a dramática " didáctica " das grandes diferenças entre Economia Libidinal e Estética Libidinal só pela instauração de uma sociedade sem classes teriam hipótese de serem impostas para análise. Questões enormes que ultrapassam o estatuto de perversidade da trans-sexualidade. Descortino na tua argumentação, por outro lado, uma lúcida e intempestiva crítica aos efeitos de " intoxicação " dimanados do exercício das funções providenciais do Estado, o que denota uma coragem suplementar de grande alcance. Niet