17/05/10

Um capelão perante as tentações

O blogue “Caminhos da Memória” suspendeu as suas emissões. Pela abrupta mas justificada, além de democraticamente decidida, cerimónia de encerramento, um texto meu ficou “pendurado” na carteira da redactora-em-chefe. Reporta uma minha memória da guerra colonial (na Guiné, 69/71), já publicada no meu blogue “Água Lisa”. Porque se relaciona com um tema actual (o dos sacerdotes e a sexualidade), apesar da distância no tempo, julgo que se justifica a sua reedição. Assim, reproduzo-o aqui (os factos são verídicos, mas o nome do capelão, naturalmente, foi alterado).

O Alferes Capelão Ferreirinha não era um santo mas parecia. Isto, ao princípio do cumprimento da sua missão. Porque tudo tem de ter um começo. Verdade que santo, santo, ninguém é, nem mesmo os santos com diploma, mas o Ferreirinha evidenciava intenção e maneiras de já o ser ou estar prestes a sê-lo. Originário de uma aldeia perto de Coimbra, cedo foi enfiado em Seminários e em Mosteiros com a intenção familiar de fazer de Ferreirinha um santo com ganha-pão garantido. Agradecido. Ele aderiu ao projecto de vida que lhe traçaram. Agradecido. Sentiu-se bem, fora das tentações e porcarias do mundo, quando se viu na condição de padre e frade. Agradecido. O Seminário e o Mosteiro funcionaram como cortina da vida. Agradecido. E ele, sentia-se bem, mesmo bem, naquele recolhimento, imaginando o mundo lá fora como uma reprodução, ou um projecto, da santidade interna em que tinha sido educado e o fazia feliz. Agradecido. Havia que enfrentar a vida, comunicar a palavra e tornar o mundo mais santo. No mínimo, transformar o mundo num lugar que não chocasse os santos. Ouviu falar da guerra que a civilização ocidental e cristã travava em África. Ficou a saber que os nossos soldados se sacrificavam a combater pretos pagãos para lhes levar a santidade, mesmo que tivesse de ser através da espada. Ferreirinha entendeu que o caminho da santidade no mundo passava por Portugal em África. Não quis ficar de fora. Com sacrifícios e com martírio, caso fosse. Meteu os papéis para se oferecer como capelão para servir as Forças Armadas, em África, onde a santidade fosse mais necessária. Aceitaram-no com gosto. O Major do Recrutamento que recebeu o requerimento do Ferreirinha até se riu e comentou alto “temos um voluntário para a Guiné, agora é que vamos ganhar a guerra”. O Major sabia de guerras mas pouco percebia de santidades. O Alferes Capelão Ferreirinha vestiu farda, aprendeu rudimentos de ordem unida e a distinguir patentes. Integraram-no num Batalhão que ia embarcar para a Guiné e devotou-se aos bons rapazes que iam ser seus companheiros de missão. E fez votos que todos empunhassem bem a espada porque o crucifixo era com ele. E esta era a frase que ele ia espalhando, sorridente, no quartel de Porto Brandão, à beira do Tejo, onde a tropa se concentrava e se preparava para a partida no Niassa. Como se fosse um bálsamo ou unguento. Bem necessário, entre militares mal dispostos, como se estivessem contrariados no cumprimento da missão, patriótica e santa, em África. Seguia atentamente todos os movimentos de entradas e saídas, preparando-se para acolher bem todos os eleitos. Quando havia chegada de um novo reforço, o Ferreirinha lá estava, à porta de armas, para o receber, o confortar e o enquadrar nos bons desígnios. Sofria, pelos ouvidos, a ordinarice própria da tropa, mas não ligava. Coisas da carne. E a maioria não tinha a sua carne em paz, como tinha o Ferreirinha. Que se havia de fazer? Era o mundo e a vida. Mas, através do pecado, se redimido, também se pode alcançar a santidade. Assim, até era tolerante e fingia ignorar o movimento de prostitutas à volta do quartel. “Coitados, coitadas”, era o comentário indulgente do Ferreirinha.

Quando me calhou a vez de atravessar o portão do quartel de Porto Brandão já mobilizado para a Guiné, a habitual recepção pelo Alferes Capelão não correu nada bem. Eu vinha bravo e zangado e fui violento na hora de chegada. Ele, Ferreirinha, esperava-me à porta de armas quando soube da chegada do oficial de transmissões, identificou-me pela farda novinha e tentou dar-me um aconchego de boas-vindas através da sua frase recepcionista da praxe “então, nosso Alferes, cá vem para defender a Pátria”. Eu estava zangado com a Pátria, não gostei, afastei bruscamente a tentativa de abraço do Capelão e vociferei (pequei) “saia-me da frente, senão atiro-o ao rio””(o quartel era mesmo à beirinha do Tejo) e segui, mal-humorado, apresentar-me ao Comandante. Ferreirinha perdoou de imediato. Aquilo ia passar. Tinha que ser. A concórdia havia de triunfar.

Na viagem e nos primeiros tempos de vida na Guiné, a concórdia entre nós demorou a chegar. Chegados ao Pelundo, no mato ao norte da Guiné, calhou coabitarmos o mesmo quarto na casamata. No meio do mato, estava por tudo e entendi que não era do Ferreirinha que vinha o perigo. Foi a minha vez de ser indulgente. Passado pouco tempo, éramos amigos, bons amigos. O Capelão Ferreirinha era gozado amiúde pela sua falta de vivência pecaminosa e sobretudo pelas frases ingénuas e descabidas como encarava as coisas de sexo. O homem estava mesmo a leste de tudo. Não faltaram professores. E que professores. O Capelão tornou-se num divertimento para os oficiais. Até parecia que havia escala estabelecida. Revezavam-se, a ensinar-lhe as várias posições para se obter prazer, puxando-o para os copos, o jogo da lerpa e o baile com as bajudas de mamas pequenas, rijas e espetadas. E uns tantos abalavam-lhe as convicções e insistiam que a tropa colonial estava a remar contra os ventos da história e eram os pretos que tinham razão. O bom do Ferreirinha foi resistindo como podia. Mas, não evitava o fascínio de tanto delírio e tanto prazer pagão em que toda aquela rapaziada se espraiava. O fascínio foi dando lugar à curiosidade e depois à experimentação. Que diabo, só perto do pecado, se podia transformar um pecador num santo. E aquilo era uma tropa, em santa missão, isso sim, mas feita de pecadores. O problema foi que o Ferreirinha experimentou e gostou do prazer de pecar. Achou que aquela parte, a da transgressão, era uma metade da vida que ele nunca tinha experimentado. E sabia bem. Dava bem-estar e fazia esquecer a paz do Mosteiro que tinha perdido. O Ferreirinha tornou-se, rapidamente, num pecador. O maior dos pecadores. Passou a meter-se nos copos, encomendando vinho de missa, atrás de vinho de missa, desencaminhado para farras pagãs. Começou a ir aos bailes sem se esquecer do preservativo. Jogava lerpa, onde derretia o pré. No Natal, soprou preservativos a fio para decorar a messe de oficiais. Gritava “tirem-me daqui!”. Começou a fazer discursos anti-coloniais. Deixou de dizer missas, usando o argumento “não estou no devido estado espiritual”. Mas nunca renegou deuses nem santos. Fiz o possível e o impossível para acalmá-lo e metê-lo no equilíbrio do bom senso, da conta, do peso e da medida. Que diabo, não era preciso tanto, a vida era para ser gozada passo a passo. Mas o pecador Ferreirinha não ouvia os meus (santos) conselhos. Ele queria putas, uísque, jogatana e que aquela merda de guerra acabasse e depressa. Ponto final. E nada a fazer E só pensava em voltar a Coimbra. Para gozar a vida. A minha amizade não foi suficiente para trazer o capelão de volta à santidade, ou pelo menos, a meio caminho dela. O homem tinha pressa, vivia sobre as brasas da pressa. E quando assim é, o que é que um leigo pode ajudar?

O Alferes Capelão Ferreirinha acabou por ser castigado e expulso da guerra e do exército. Não terminou a sua comissão de santidade na Guiné. Depois, acalmou e ganhou serenidade na vida. Deixou de ser padre e frade, casou-se, foi dar aulas num colégio para ganhar a vida. Não será um santo. Mas também não será um pecador. Sempre que dele me lembro, só lamento que o Ferreirinha tenha tido de percorrer um caminho tão longo para se tornar um simples mortal.

(publicado também aqui)

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