24/05/10

Caminante, no hay camino, se hace camino al andar

Nota: este post começou na caixa de comentários deste outro do Ricardo Noronha. Tendo crescido para além do que o formato do comentário permite publicar de uma assentada, resignei-me a postá-lo aqui. Sempre facilita a leitura.


Grande Camarada Ricardo,

Bom, confesso que fiquei mais descansado quando, no corpo do texto, descobri que o "hedonismo do caos" só "parcialmente" tem o teu apoio - e que não te converteste bruscamente ao reformismo da "esquerda carnavalesca", pois, como concordarás, o carnaval é uma válvula de escape da ordem estabelecida, uma sua "purificação" ritual. Sim, eu sei, é possível que uma explosão carnavalesca transborde deste quadro, mas justamente nessa altura a "multidão" começa a abandonar o caos e a organizar a sua autonomia. Não quer isto dizer que seja possível ou desejável eliminar "o caos mais antigo do que os deuses", como lhe chama Sophia - ou seja, mais antigo do que os primeiros princípios ordenadores da natureza, da paisagem, da terra cultivada, das aldeias ou das cidades, das instituições, da socialização, da subjectividade individual articulada… Esse caos permanece dentro e fora de nós, ignorando de resto esta linha divisória, indefinida e nunca idêntico vaga de criação e destruição que faz com que nenhuma realidade possa conter todo o real - força de expressão, este "todo o real", pois não há todo do real que seja tudo ou que colmate a não-coincidência do real consigo próprio - por excesso ou defeito, conforme a perspectiva; ou: por excesso e defeito, se assim preferires.
Mas nós, humanos, que somos metamorfose e acontecimento ou instante e criação dessa vaga, temos por condição (o que significa aqui tanto limite como potência) "passar abrindo caminhos/ caminhos por sobre o mar" do seu "sem-fundo" - como escrevia Antonio Machado e o Paco Ibañez tão bem cantava. E a tónica aqui está na acção ou na criação do abrir caminhos que a vaga não traça, acção e criação anteriores, evidentemente, a toda a cartografia que - já sempre a caminho - tracemos.
Que poderia, pois, ser um "hedonismo do caos" que radicalizasse o carnaval, levando-o às últimas consequências, mas sem o politizar, como simples inversão de toda e qualquer ordem? Que mais poderia ser, senão muito literalmente, o paroxismo dessa "morte súbita" que certa cerveja belga promete, mas não dá?

Quanto aos teus argumentos mais polémicos, ou às razões que articulam, não me parece que sejam tão opostos aos do João Tunes como tentas apresentá-los. Colho apenas alguns exemplos ao acaso: os porta-vozes do PCP não invocam porventura, também, o sofrimento dos outros, para justificar as reivindicações ou soluções da organização? Como é que deduzes que o João procura definir como "exclusivo" do PCP a "incontrolada pulsão hegemónica e unicista" de que fala? Ou, por outro lado, faz ou não alguma diferença saber quem efectivamente a "passa ao acto" e reproduz? Absolverá o governo de Sócrates o juízo dos que afirmam que outros fariam a mesma coisa ou pior? E em quê e de quê absolverá, então, a linha do PCP dizer que outras correntes políticas fariam a mesma coisa se tivessem unhas para tanto? E dizê-lo dispensa-nos de contestar o modelo de organização e direcção sindical vigente? Ou legitima-o? Se disseres, como implicitamente fazes, que teremos de nos esforçar por não reproduzir na contestação as formas contestadas, e eventualmente refinadas durante o processo da reciclagem, estarás a dizer coisas muito parecidas com as afirmações do João - coisas que consubstanciam uma crítica à concepção e à prática hierarquicamente subordinada do sindicalismo que o PCP alimenta.

Há uma divergência, sem dúvida, quanto à "hipótese da rua"- e outra, quanto ao juízo político sobre a moção de censura.
Declarar esta última não-acontecida por não ter logrado o eco que gostaria de ter tido nos meios de comunicação dominantes é um argumento muito curto - sobretudo, quando a propósito da mesma moção, se escreveu, como há dias fizeste na caixa de comentários de um post do Zé Neves , coisas muito próximas de alguns dos argumentos do João, opondo-as ao Vítor Dias: "Mas Vítor, a inquietação e preocupação, por sinceras e autênticas que sejam, não furtam ninguém ao debate acerca das consequências, vantagens e desvantagens de uma determinada estratégia. Essa articulação e complementariedade [da moção de censura ao governo e do apoio à manifestação] parecem-me aliás extremamente problemáticas. A manifestação de 29 de Maio tem como finalidade a queda do governo? E essa queda traduzir-se-à numa alteração de políticas no sentido que pretende o PCP e o movimento sindical? E como é que uma moção de censura ao governo se estende também ao PSD, como se afirma no comunicado?" Assim, o meu juízo está, na questão da moção, mais próximo do do João do que daquele que o teu post lhe opõe,
Já quanto à "hipótese da rua", pelo contrário, acho que estamos os dois de acordo, embora com reservas semelhantes, creio, perante os pressupostos de fundo do João Rodrigues  - e não vou repetir aqui o que digo a esse respeito na caixa de comentários do post do João.

Fazendo o balanço desta conversa, receio ter-me metido em maus lençóis e estar a atrair sobre mim as divergências por motivos divergentes de dois camaradas, em cujos pressupostos vejo mais elementos comuns ou solidários do que antagonismos irredutíveis, ainda que um e outro de vocês os dois deles extraiam consequências diferentes e tendam a exasperá-las. O que por vezes ajuda a abrir novos caminhos ou a melhorar aqueles que - para parafrasear de novo Machado - vamos fazendo ao andar.

Viandante abraço

miguel

4 comentários:

Ricardo Noronha disse...

Caro Miguel, mete-te à vontade na nossa conversa.
Limito-me a dizer que não vejo o PCP muito diferente do resto da paisagem. Continuo a achar aquela moção um não-acontecimento, até pela previsibilidade do seu desfecho. As perguntas que fiz ao Vítor Dias limitavam-se a constatar que a relação entre luta social e luta institucional não é tão simples como resultava da sua argumentação.
E parece-me que nada autoriza a conclusão de que o PCP no governo faria o mesmo ou pior do que Sócrates. Nem me parece um exercício político razoável fazê-lo.
Uma crítica à concepção e à prática hierarquicamente subordinada do sindicalismo que o PCP alimenta exige que se critiquem outras concepções e práticas hierarquicamente subordinada e não apenas que se debata a oportunidade de uma moção de censura. Aliás, é precisamente porque se coloca no plano de discutir o que é que seria ideal em termos de calendário que o post do joão não avança qualquer crítica de concepções e práticas hierarquicamente subordinadas. Limita-se a criticar a opção do comité central, dizendo muito pouco sobre as causas que levam a que a opção passe obrigatoriamente pelo comité central.
E na necessidade de uma «solução de poder» para responder à crise, não posso deixar de identificar a necessidade de um comité central, que se limitaria a ter uma composição outra e uma orientação mais esclarecida. Acho até que isso já está em formação e noto exactamente os mesmos tiques, mas com outro topete.

João Tunes disse...

"nossa conversa"?
Um claro exagero de posse majestática, sim. No caso, aplicada ao exercício de uma tresleitura persistente só conveniente ao comité central.

Com a convicção que um dia, quando calhar, ainda podemos e havemos de conversar.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo,
há vários aspectos em que creio que não lemos o post do João do mesmo modo. Mas sobre isso não quero falar agora. Quanto ao resto, diria o seguinte, ora em acordo, ora em desacordo contigo:
1. A questão da oportunidade de uma moção de censura conta sobretudo porque traduz, interpreta, actualiza uma concepção da relação entre a luta social (económica, imediata, defensiva) e a luta (institucional (política, histórico-científica, tendencialmente governante) que se baseia , promovendo-a e reciclando-a) numa divisão do trabalho político hierárquica e classista, que é a da fábrica capitalista clássica, a das forças armadas do Estado, etc. - e, portanto, antagónica da ideia de que a emancipação dos trabalhadores só pode ser criação dos mesmos, ou da ideia de que legitimar a subordinação das lutas ao poder de uma instância superior -estado-maior e consciência, etc.-, a pretexto de que essa instância exercerá o seu poder a favor daqueles que governa, equivale a manter a subordinação, subalternidade, incapacidade política dos governados. Todos os combates contra a democracia e em favor das direcções esclarecidas se fizeram em nome do que estas declaravam ser os verdadeiros interesses, o bem superior dos governados, a protecção contra os seus próprios erros, ilusões ou imaturidade dos que reprimia.
2. Para mim, a conquista da autonomia e do autogoverno pode e deve informar medidas programáticas, mas estas não são o seu traço distintivo, ou são-no menos do que a participação igualitária nas deliberações e decisões, a destruição da dicotomia hierárquica e classista entre governantes e governados, tanto na esfera política entendida nos termos limitados da linguagem dominante, como na da economia. Sob este aspecto, a concepção que o PCP faz da relação partido/sindicatos, luta política/reivindicação económica é solidária dos princípios ou linhas de força estruturantes do actual regime - por isso, o PCP - e não só, claro, mas é dele que estamos a falar -, na medida em que se apresenta como portador de um projecto de sociedade alternativo, é um obstáculo que condena as energias da revolta e das frustrações que enquadra a um beco sem saída. Quer dizer, se a única alternativa ao estado de coisas existente é - como dizem, por uma vez entusiasticamente de acordo, tanto os seus defensores como o próprio PCP - um regime que nos governe como a direcção do PCP dirige e monopoliza, ou tenta dirigir e monopolizar, a oposição ao presente regime, então o estado de coisas existente não tem alternativa. A contestação do PCP - e não só, claro, mas é dele que estamos a falar - consagra a ordem hierárquica que contesta.
Enfim, mais poderia dizer e direi noutra ocasião, mas agora quero ler o post que acabas de publicar e cuja leitura tive de adiar enquanto aqui te respondia.
Vigoroso abraço republicano

miguel sp

Anónimo disse...

Meus caros: As posições aqui expressas pelo MS. Pereira parecem-me ser as mais inovadoras, consequentes e justas. Evocam a gesta heróica e libertária dos CONSELHOS OPERÁRIOS HÚNGAROS EM ARMAS DE OUT/NOV DE 1956! E vou tentar dizer porquê: 1) "A destruição da dicotomia hierarquica e classista entre governantes e governados, tanto na esfera política, como na da economia ". É uma posição táctica soberana e decisiva que visa alargar/difundir e multiplicar as bases de unidade popular em movimento para o confronto com todas as forças que se aglutinam em torno de um qualquer poder de Estado, seja de esquerda, seja de direita. Numa palavra, a destruição do mito de um Estado proletário acompanha a destruição do capitalismo despótico incarnado na oligarquia predadora hodierna.
2) " A contestação do PCP- e não só- consagra a ordem hierárquica que contesta ". Justamente sobre a grande revolta do Povo e dos Trabalhadores EM ARMAS na Hungria-1956, o papel do Estado dito popular e do partido único, Claude Lefort revela uma análise magistral sobre esses pontos decisivos, a que chama de " primeira revelação mundial da contradição do totalitarismo-O " Colapso do Aparelho de Estado e do parelho do Partido:"(...) Quando nesse regime, o Estado tende a engolir a sociedade civil, a impôr à população as mesmas normas, qualquer que seja o sector de actividade, e se atreve a montar de qualquer das formas essa operação de forma invisível, pelo facto do recalcamento interno da divisão de classes e pela fusão das diferenças da pretensa e ilusória unidade da democracia popular; simultâneamente opera-se um formidável afastamento do poder e, no seu interior, assiste-se a uma fantástica concentração de meios de dominação entre as mãos de um punhado de dirigentes- de tal forma que por força de condições históricas determinadas, por um enfranquecimento da autoridade, é paradoxalmente na mais larga amplitude social que se propaga o conflito. Face a esse poder constitui-se/une-se a grande maioria da população que, de uma forma ou outra,e mesmo em graus diversificados, realizou a provação da opressão .(...)O totalitarismo constitui o sistema de dominação mais eficaz, mas é também o mais vulnerável ". Niet