O último livro de José Pedro Castanheira (JPC) de investigação jornalística (*), sobre a trajectória atribulada, misteriosa e pouco conhecida do médico Ayres de Azevedo (1911-1978), desbrava o caminho pouco percorrido pela investigação histórica acerca dos nexos com o nazismo em Portugal. As próprias dificuldades que JPC encontrou na sua pesquisa (dificuldade de encontrar fontes e documentação, muita dela misteriosamente desaparecida ou feita desaparecer, inibições de testemunhos) são reveladoras de como a ditadura, perante a derrota do nazi-fascismo e a viragem para a aliança com a Inglaterra e os Estados Unidos, com Salazar a encostar-se aos vencedores (os "ocidentais"), se encarregou de apagar os vestígios dos sinais da fracção germanófila pró-hitleriana. O que tem o efeito secundário de facilitar a vida aos que tentam impor a tese de que a ditadura de Salazar e Caetano não foi um fascismo, tese esta tão cara a muitos historiadores portugueses (incluindo decididos antifascistas).
Pouco se tem investigado e publicado sobre a participação dos “legionários viriatos” na guerra civil de Espanha e dos que, embora muito poucos, sobretudo integrados na “divisão azul” dos franquistas, participaram na ofensiva hitleriana na frente leste. Menos ainda tem sido levantado sobre a real e profunda influência que a germanofilia pró-hitleriana teve nas cúpulas do poder e da academia, enfim das elites, entre a ascensão de Hitler ao poder e a reviravolta de Estalinegrado que ocasiona a reviravolta de Salazar para o lado anglo-americano. E que não foram mais que a expressão política e ideológica das afinidades entre as ditaduras de extrema-direita (com fascismos locais mitigados pelas suas particularidades) europeias nos anos 30 e 40 do século XX e que contavam com o beneplácito, mais ou menos orgânico e ideológico, da Igreja Católica. Assim, o tratamento por JPC sobre o “caso Ayres de Azevedo” tem a relevância da novidade e do pisar caminho evitado ou subestimado. Feito com preocupações de rigor e encanto jornalístico.
Essencialmente, o “drama de Ayres de Azevedo” é, em si, a destruição de uma carreira de um cientista talentoso apanhado numa reviravolta política e diplomática (a mudança de campo do salazarismo após Estalinegrado). Bom aluno, bom médico e professor e cientista promissor, fascista convicto (foi mais nacional-sindicalista que salazarista, como notou a PIDE na sua ficha), apaixonado pelas teses raciais do nazismo e ansioso por as transpor para a realidade portuguesa, Ayres de Azevedo obtém do Instituto de Alta Cultura (dominado por germanófilos) e com apoio da Faculdade de Medicina do Porto (onde, igualmente, a germanofilia era forte) uma bolsa de estudo para desenvolver investigações junto dos próceres da ciência racista nazista (não é claro, mas surge como provável que terá tido o apoio e a colaboração de Mengele, o “anjo da morte” de Auschwitz) e nos institutos científicos de ponta da Alemanha hitleriana. Ali faz os seus estudos e investigações, sempre com boas referências dos cientistas nazis que conduziam as experiências médicas sobre os prisioneiros a serem exterminados nos campos de concentração e de extermínio, integrados no Holocausto, até que o avizinhar da derrota nazi impõe o seu regresso forçado a Portugal. Munido dos seus estudos e resultados de investigações, Ayres de Azevedo tenta a apresentação da sua tese de doutoramento na Faculdade de Medicina do Porto. Só que os ventos tinham mudado e o realinhamento do salazarismo com os anglo-americanos impulsiona a que os germanófilos tentem fazer esquecer as suas velhas e profundas simpatias e, de protegido, o cientista português treinado no racismo nazi passa a ser uma figura incómoda. É perseguido pela Ordem dos Médicos (sob um pretexto de não pagamento de quotas no período em que tinha interrompido a sua actividade clínica, com aviso de uma sanção publicitada num jornal diário), a sua tese de doutoramento é sabotada, interrompendo-lhe assim a sua carreira docente, enquanto desaparecem de vários arquivos os documentos em que a sua figura é referida. Ostracizado, Ayres de Azevedo abandona a vida científica e clínica e dedica-se à actividade de empresário industrial. Mantém-se um extremista de direita até ao fim (combate o marcelismo por entender que este é demasiado complacente com as “reivindicações operárias”, tenta enfrentar os trabalhadores da sua fábrica de malhas após o 25 de Abril até esta ser ocupada pelos operários e depois encerrar). A decisão do salazarismo em tornar Ayres de Azevedo uma “não pessoa” foi efeito directo da necessidade de Salazar, para que a ditadura pudesse sobreviver ao após-guerra, apagar os traços da anterior ligação umbilical do salazarismo ao nazi-fascismo. Neste sentido, foi uma vítima (nada simpática, odiosa até, mas vítima) das viragens tácticas e propagandísticas do fascismo português reconvertido à integração no “ocidente” no terreno da “guerra fria”. Portanto, um caso exemplar e indigno do silêncio dado às “não pessoas” e a que foi condenado. Graças ao excelente trabalho de JPC, finalmente foi liberto da lei da amnésia.
(*) - “Um cientista português no coração da Alemanha nazi”, José Pedro Castanheira, Edições Tenacitas.
(também publicado aqui)
28/05/10
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