30/05/10

Sobre as reciclagens fracturantes da censura puritana

Tive notícia, através de um post da Fernanda Câncio, de que uns quantos activistas fracturantes e zeladores dos direitos de minorias, que se auto-definem reclamando-se de uma identidade para a qual reivindicam o reconhecimento do Estado, encaram a hipótese de incriminar perante os tribunais a difusão de uma cantiga que falta ao respeito ao contrato matrimonial entre pessoas do mesmo sexo, ou às ideias e convicções dos que o defendem,  e que injuria os homossexuais.
É assim que a avidez de direitos particulares, muitas vezes redobrada pelos apetites das discriminações positivas, abre caminho à erosão e restrição da concepção democrática dos direitos de cidadania, e, no caso em apreço, à censura generalizada.
É, com efeito, muito simples: se proibimos o desrespeito - de bom ou mau gosto - pela homossexualidade, como não o proibiremos pela sexualidade em geral? Se o proibimos pelo casamento homossexual, como não o proibiremos pelo casamento tout court? Ou pelas convicções políticas e religiosas? Ou pelas tradições culturais? E, avançando um pouco mais, se proibimos a expressão de concepções politicamente incorrectas, que têm como corolário, a serem aplicadas, a opressão ou discriminação de certos grupos ou mesmo do conjunto do género humano, a quem confiaremos senão às autoridades do Estado a definição da correcção política, legitimando o seu poder de limitar a liberdade ao que a sua autoridade entender como correcto?
Pierre Vidal-Naquet, que insistiu como poucos na necessidade de desmontar as efabulações dos negacionistas do extermínio nazi e deu um raro exemplo nessa matéria, sempre criticou a posição daqueles que criminalizavam juridicamente e reclamavam a punição legal do negacionismo. E, de facto, parece-me evidente que, salvaguardadas as devidas proporções, a mesma atitude é de rigor no caso que nos ocupa. Tanto mais que o proibicionismo do politicamente correcto, além de legitimar a extensão da censura,  permite aos partidários da discriminação apresentarem-se como defensores da liberdade.
Voltando a um plano mais imediato, basta pensar no que seria preciso proibir para limitar a liberdade de expressão nos casos em que fosse usada para veicular concepções discriminatórias frente às identidades que cada um entenda reivindicar. Para não irmos mais longe, uma porção não despicienda de criações discursivas que foram obra de homossexuais não escaparia à aplicação dos critérios de censura que seria necessário legitimar para criminalizar as cantigas imbecis do tipo atrás referido. Como não escapariam à censura muitas das canções de Brassens, que tão frequentemente tomam por alvo tanto as versões puritanas como as reciclagens fracturantes da servidão voluntária  e da imbecilidade auto-satisfeita do "sexualmente correcto".  

7 comentários:

Manuel Vilarinho Pires disse...

Bom dia, Miguel,

Repito aqui um comentário que deixei no "blogue" da Joana a um tema adjacente a este, e que tem em comum com ele a amplificação que a censura traz à voz dos censurados, transformando susurros irrelevantes em gritos de liberdade:

"Joana, cá vai mais um desacordo, acho eu...

Infelizmente, o teu receio de que em tempos de crise movimentos destes possam ter uma capacidade de mobilização inesperada pode ter algum fundamento.
Não digo isto por pensar que eles tenham alguma capacidade de mobilização significativa, assumo que não têm, mas pelo facto de, por se terem ilegalizado as organizações de inspiração fascista, a sua actividade ser clandestina e, portanto, não haver meios de aferir a sua capacidade de mobilização real.
A última vez que uma organização clandestina saiu da clandestinidade em Portugal, saiu com força suficiente para ter estado muito próxima de tomar o poder, contra a vontade evidente do Povo.
Por isso, sou de opinião que as organizações, mesmo partidos, de inspiração fascista não deviam ser proibidas, e estou convicto de que se fossem permitidas estariam reduzidas a uma expressão tão insignificante que os seus defensores seriam bem mais murchitos do que são, insuflados com a ilusão de terem razão e apoio popular."

Saudações democráticas

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Manuel,
obrigado pelo seu comentário. Mas deixe-me dizer-lhe duas coisas: 1. Para prevenir distorções ou simples erros de leitur, digamos que advogar que não seja criminalizada uma canção idiota ou uma sátira inteligente dos casais homossexuais não implica que se aceite a sua discriminação - negativa ou positiva, de resto - em termos de acesso ao emprego, aos serviços de saúde, ao espaço público em geral, ou que se defenda a despenalização da violência física eventualmente empreendida contra eles.
2. A sua tese de que a clandestinidade imposta pela ditadura ao PCP o reforçou parece-me um tanto sumária. Se a repressão foi mais dura contra o PCP foi porque este logrou manter a sua actividade de oposição mais eficazmente do que outras forças políticas. Por exemplo, a CGT, enquanto existiu como força com capacidade de organização, não foi menos reprimida do que o PCP. A oposição efectiva e continuada à ditadura não era possível sob outras formas que não as da clandestinidade, da conspiração, da organização subterrânea. E, de resto, se a ditadura não impusesse que assim fosse, seria um regime diferente do que foi. Não lhe parece?

Cordias saudações anti-censórias

miguel sp

Manuel Vilarinho Pires disse...

Caro Miguel,

Eu não disse que foi o tratamento "espartano" do PCP que lhe conferiu a força que tinha em 1974... e, não sendo cientista do ramo, seria um disparate defendê-lo. Mas não estou convencido que o grau de organização e a força do PCP não tenham de facto resultado da forma como teve de se adaptar para sobreviver à perseguição feroz a que foi submetido na ditadura e não façam parte, portanto, da "pesada herança do fascismo".

E a minha analogia não tinha como finalidade afirmar "organização política proibida, organização política fortificada", mas sim "organização política proibida, organização política de que se desconhece a força", e, portanto, de que se podem ter receios que tenha mais força do que realmente tem.
E por isso advogo que organizações políticas de inspiração fascista, ou mesmo racista ou outras de cariz semelhante, deviam ser permitidas, para que os seus valores pudessem ser permanentemente escrutinados e confrontados com o seu peso real na sociedade e com o desgaste de que estão a salvo enquanto semi-clandestinas.

Óbviamente que o facto de advogar a legalização de organizações de inspiração fascista não representa da minha parte a mais pequena tolerância com elas e os seus valores, tal como o facto de advogar a completa liberdade de expressão do Quim Barreiros não significa tolerância com a discriminação dos homoxessuais...

Saudações democráticas!

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Manuel,
eu não o li tão mal como você parece supor. Mas a questão do PCP é mais complexa e lavnata problemas que nos afastariam muito do tema deste post.
Quanto ao resto, eu diria que, quando legitimamos a censura para impedir a expressão de opiniões politicamente repugnantes, legitimamos o princípio da censura, mais do que combatemos essas opiniões repugnantes. E penso que há vias mais eficazes - directos e indirectos (estes tendo a ver com aspectos da vida quotidiana que são o caldo de cuitura do totalitarismo, do racismo, etc.) - de combater e tendencialmente erradicar aquelas, vias que não passam pela censura.

Saudações democráticas

miguel sp

joão viegas disse...

Caro Miguel Serras Pereira,

Subscrevo, claro, como a grande parte dos posts que tenho visto por ca.

Se me permite umas achegas de jurista (com alguma pratica do contencioso anti-discriminações) :

1. E' fundamental percebermos que o combate às discriminações é um combate PELA IGUALDADE. Logo, encontra o seu limite quando uma pessoa, ou um grupo de pessoas, esta a reclamar um privilégio. As medidas ditas de "discriminação positiva" (a expressão é ma de um ponto de vista juridico) não são senão medidas instrumentais, transitorias, que implicam uma derrogação provisoria à regra, no objectivo de restabelecer a igualdade de facto onde ela não existe (e onde ela é no entanto exigivel).

2. Infelizmente, este principio é muitas vezes esquecido, mesmo entre militantes pela igualdade. Nunca sera demais insistir : quem combate pela igualdade, esta (por definição) a combater por todos, não so por ele.

3. A liberdade de expressão de ideias NUNCA pode traduzir-se por um atentado à igualdade. Isto pela razão simples que não existe, de um ponto de vista analitico, nenhuma teoria contraria à igualdade da qual devamos ter medo enquanto teoria (ou enquanto opinião). Quem esta convencido que 2 + 2 = 4 não precisa de proibir quem pensa que 2 + 2 = 5 de o dizer, proibição que seria completamente contra-producente.

4. Os limites admissiveis para a liberdade de expressão têm a ver com o facto de, muitas vezes, as palavras serem utilizadas para uma coisa muito diferente do que a expressão de uma opinião. Por exemplo, para injuriar, ou para agredir. Isto ja não é admissivel ao abrigo da liberdade de expressão, que é um corolario da liberdade de pensamento. Quem diz "os paneleiros hadem ser mortos à paulada" NAO esta a expressar opinião nenhuma.

5. A injuria, tal como a agressão verbal, são atentados à dignidade. Ou seja, são na essência atentados à regra de IGUALDADE, que manda que tratemos qualquer pessoa como sendo noss@ igual, e não como se pudesse ser reduzid@ ao sexo, à cor da pele, ao credo, à opinião, ou a qualquer um dos seus "atributos". A liberdade de expressão pressupõe a igualdade. E a liberdade de pensamento também.

6. Alias, a liberdade de pensamento não se limita a "pressupor" a igualdade. Tem a igualdade por essência, por motor, por horizonte, e mesmo por consistência. Discernir, "discriminar" (no sentido filosofico), distinguir, so são operações intelectuais uteis na medida em que permitem, em seguida, relacionar o objecto com uma norma comum. Mas isso, você que é filosofo sabera dizê-lo mehor do que eu.

Abraços,

Anónimo disse...

Caro MS.Pereira: Ando a ler os dois volumes das Memórias de Pierre Vidal-Naquet. Trata-se de uma narrativa surpreendente sobre os momentos de glória e de rebaixamento do espaço cultural pariseense, em particular, e francês, em geral.É todo o séc.XX visto pela inteligência,heterodoxia e sensibilidade de um dos últimos " gigantes " do pensamento.As referências e as sínteses são prodigiosas, exuativas e de um rigor microscópico. Tudo estruturado e detalhado com o rigor de um extraordinário historiador e militante.E com um rasgo de simpatia/empatia humana exemplar: grandes homenagens a Guérin,a Castoriadis, a Lyotard e à sua "equipe" legendária e multi-facetada da revista " Esprit ", entre muitas e diversificadas através do desenrolar do século . " Em relação ao inimigo que ataco ao longo dos meus livros e artigos trata-se, fundamentalmente, da impostura acima de tudo, quer se relacione com a acusação lançada contra Alfred Dreyfus em 1894, as tentativas realizadas para localizar a Atlântida ou a agressão lançada por uma pequena banda abjecta - Faurisson, Garaudy, etc- contra a realidade do grande massacre hitleriano que fez desaparecer alguns milhões de seres humanos, entre os quais os meus pais, pelo único crime de serem judeus ", assinala.Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Car João Viegas,
bem aparecido por aqui! Obrigado pelas achegas, muito mais do que simplesmente técnicas - afinal a questão da lei é por excelência um tema filosófico (eu ia a dizer: "socrático", com os diabos) inseparável da reflexão pública partilhada intrínseca ao exercíco da democracia pelos cidadãos.
Cordial abraço solidário

Caro Niet,
nunca é de mais ler o Vidal-Naquet - regozijo-me com o teu bom gosto e auguro-te a melhor leitura.
Abrç

miguel sp