O mais certo é muito poucos se deterem, na ronda dos escaparates, perante um pequeno romance biográfico editado recentemente sobre um corredor que foi e será sempre célebre (tantos e tamanhos foram os seus feitos), o checoslovaco (checo) Emil Zatopek (*). E, no entanto, os que arriscarem ler o romance de Jean Echenoz sobre a vida de Zatopek (1922-2000), serão compensados da aposta. Não só porque a escrita é muito agradável e a tradução é magnífica (Virgílio Tenreiro Viseu), como pelo decifrar de acontecimentos significantes de conhecimento muito limitado, coberto como está pelas brumas do tratamento dos fenómenos desportivos.
Zatopek é um símbolo antigo e permanente da corrida contra os limites no desporto. Na sua prolongada fase pujante, ganhava, nas corridas de longa distância, tudo o que havia ganhar, numa espiral em que todos os records lhe pertenciam e ele em cada corrida ia batendo os seus próprios records, atingindo o pleno nuns Jogos Olímpicos em Helsínquia em que conquistou o ouro nas três modalidades de longa distância - 5.000 metros, 10.000 metros e Maratona (!), sendo-lhe aposta a alcunha significante de “locomotiva humana”. A sua figura a competir era inconfundível – estilo “escangalhado”, máscara de esforço sofrido, transmissão de noção de esforço muscular levado ao limite. Como os seus sucessos coincidiram com a construção da Checoslováquia socialista, sob regime de “democracia popular”, Zatopek foi erigido a um dos grandes símbolos da transformação comunista checoslovaca. Para mais, Zatopek era originário da classe operária e comunista. Assim, a propaganda do regime checoslovaca não só difundia intensamente o mito de Zatopek, apontando-o (pela imagem que transmitia de máxima aplicação na obtenção de resultados) como um stakhonovista modelo do esforço desportivo na longa distância, o símbolo do desportista comunista, cujos sucessos só eram entendíveis enquanto alcançados por um comunista (exemplar). No partido comunista, Zatopek ascendeu ao comité central. Como oficial, por cada sucesso foi sendo promovido de posto, até obter os galões de Coronel.
Com uma solenidade contida, com o respeito devido à tragédia humana, Echenoz, depois de nos fazer acompanhar, de forma viva, a pujança, o apogeu e à inevitável decadência desportiva de Zatopek imposta pelas leis da vida, como que se recolhe perante o desfecho da vida do famoso desportista checoslovaco, adoptando um registo literário com a secura da denúncia do absurdo da opressão. O caso não foi para menos. É que Zatopek, tendo-se oposto à invasão e ocupação soviética e outros exércitos do Pacto de Varsóvia da Checoslováquia em 1968, assumindo as suas obrigações de lealdade perante a sua pátria enquanto Coronel das Forças Armadas da Checoslováquia, foi expulso do partido e das Forças Armadas, condenado a trabalhos forçados em minas de urânio e depois, para “aviso público” da queda de um dos maiores mitos antes levantados pela propaganda comunista, colocado como recolhedor do lixo da cidade de Praga para que os seus compatriotas ao verem correr nas noites de Praga atrás de uma camioneta do lixo o seu antigo campeão de atletismo e ídolo desportivo, tivessem a noção do preço de se dizer não numa ditadura comunista. Provavelmente, nenhum desportista foi tão humilhado quanto Zatopek por razões políticas, passando de um extremo a outro na escala social, do reconhecimento público e nas honrarias de Estado. Ou seja, a excepcionalidade andou sempre junto desse operário provinciano a quem o mundo, espantado, via nele uma máquina feita pessoa correndo contra o tempo e, assim, “locomotiva humana” lhe chamavam.
(*) – “Correr”, Jean Echenoz, Cavalo de Ferro Editores
20/05/11
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2 comentários:
com que então agora tb. lemos os mesmos livros...
Ainda acabamos a almoçar juntos...
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