20/09/10

Gerar e gerir alternativas económicas a partir de baixo

O meu artigo publicado na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique de Julho:


Gerar e gerir alternativas económicas a partir de baixo

As crises repetem-se e, com elas, as declarações de que elas podem ser uma oportunidade para corrigir problemas sistémicos que afectam as economias e as sociedades. Mas pouco ou nada se faz, mesmo ao nível da tão anunciada regulação dos mercados e do sistema financeiro. No entanto, por muito que isso não agrade ao pensamento único neoliberal, olhar para as crises passadas pode fornecer elementos úteis para juntar às medidas económicas a partir de cima, que tardam em chegar, esboços de alternativas criadas a partir de baixo. É o caso das «moedas locais» e das empresas «recuperadas», como aconteceu até no Norte de Portugal. Experiências locais e parciais, por certo, mas cujo êxito abre caminhos que importa conhecer e aprofundar.


A Argentina dos anos 90 faz lembrar, em muitos aspectos, a Europa actual. O peso tinha então um câmbio fixo de 1 para 1 com o dólar e por cada peso em circulação o Banco Central tinha de ter um dólar nos seus cofres, o que a colocava numa situação idêntica à que têm actualmente grécias, portugais, irlandas, etc., submetidos a uma política monetária e cambial comum no contexto de um espaço sem uma política orçamental comum.

Como parece estar a acontecer na Europa, ao fim de algum tempo essa situação revelou-se insustentável e o governo argentino viu-se obrigado, primeiro, a congelar as contas bancárias, depois, a desvalorizar o peso e, finalmente, a abandonar a ideia de uma câmbio fixo peso-dólar.

No meio desse processo, ou simultaneamente como causa e consequência dele, rebentou uma enorme crise económica, com um aumento brutal do desemprego e o fecho de inúmeras empresas.

Esta descrição «macro» da crise argentina já foi referida imensas vezes; o que pretendo abordar é uma realidade mais «micro». Sobretudo em 2001, várias empresas fechadas foram ocupadas («recuperadas») pelos seus trabalhadores, que as repuseram a funcionar, sendo muitas delas hoje «casos de sucesso», ainda mais atendendo às dificuldades, a começar por muitas vezes não serem legalmente reconhecidas, o que dificulta as suas relações com clientes, fornecedores e credores.

Alguns exemplos dessas empresas «recuperadas» (palavra com um duplo significado: «recuperadas» da crise, e «recuperadas» pelos trabalhadores das mãos dos capitalistas) são o Hotal Bauen e a fábrica de chocolate Arrufat em Buenos Aires ou a cerâmica Zanon, actualmente chamada «FaSinPat − Fabrica Sem Patrões», no Sul do país.

Mas o que permite que empresas falidas se tornem viáveis quando geridas pelos próprios trabalhadores? No fim de contas, a mudança de um gestor não muda as «leis» da economia, ainda mais quando o contexto social global se manteve. Logo, poderia argumentar-se que uma empresa que era inviável com uma gestão continuaria a ser inviável com outra. Algumas explicações são possíveis para o sucesso dessas empresas.

 Suponho, em primeiro lugar, que numa empresa controlada pelos próprios trabalhadores estes estão dispostos a fazer sacrifícios temporários que dificilmente estariam dispostos a fazer para um patrão. Por exemplo, quando passam reportagens na televisão sobre empresas (definitiva ou temporariamente) ocupadas pelos seus trabalhadores (até em Portugal se vêem de vez em quando casos desses), é frequente vermos os tais trabalhadores trabalhando turnos seguidos, muito mais que as horas legais ou contratuais, e passando meses sem receber ordenado até viabilizarem a empresa. No caso argentino, durante essa fase das ocupações, muita gente dependeu dos contributos de vizinhos e associações cívicas. Esse comportamento é perfeitamente lógico e racional – numa empresa capitalista, os trabalhadores têm muito menos razão para fazer sacrifícios presentes pelo futuro da empresa; feitas as contas, que garantia têm de que quem vai auferir desses benefícios futuros serão eles e não apenas o patrão? Aliás, muitas vezes diz-se que «as cooperativas não funcionam, que exigem um grau de altruísmo e de espírito de sacrifício que vai contra a natureza humana», mas nunca se explica por que razão será preciso mais altruísmo para trabalhar numa cooperativa de 50 associados do que numa empresa «convencional» com 50 empregados (afinal, requer menos «espírito de sacrifício» trabalharmos para uma entidade em que temos 2% do que para uma em que temos 0%).

Em segundo lugar, note-se que um dos grandes problemas das falências, mesmo no caso de empresas que até seriam viáveis se não fosse o passivo acumulado, é a duração do processo de falência, em que a empresa não pertence bem aos (anteriores) proprietários nem aos credores, e em que todos os envolvidos se preocupam mais em salvar algum do seu capital do que com o futuro da empresa (os antigos proprietários, frequentemente desviando os activos da empresa para o seu património pessoal; e os credores, nomeadamente a banca, mais preocupados em vender as máquinas e instalações da empresa do que em geri-la, até porque normalmente não é esse o seu ramo de actividade). No caso das «fábricas recuperadas» argentinas, muitas tinham sido simplesmente abandonadas pelos antigos patrões, provavelmente para se livrarem das dívidas. Nesse contexto, a ocupação pelos trabalhadores de uma empresa em processo de falência acaba por resolver esse problema. Passa a haver de novo «alguém», neste caso, o colectivo dos trabalhadores, a mandar na empresa, e ainda por cima um «alguém» que tem um interesse claro em viabilizá-la (são os seus empregos que estão em perigo) e que, em princípio, tem algum conhecimento do negócio da empresa (trabalhando lá, mesmo que cada um dos trabalhadores conheça pouco da actividade da empresa, no conjunto conhecê-la-ão, sobretudo se o pessoal técnico também participar do movimento).

Em «economês», poderíamos dizer, acerca de ambos os efeitos, que o controlo pelos trabalhadores reduz os «custos de transacção».

Diga-se que em Portugal também há um caso de sucesso parcial de uma empresa «recuperada» pela ocupação. Trata-se de uma fábrica têxtil do Norte, as Confecções Afonso, de Arcos de Valdevez (cerca de 100 trabalhadoras) - em 2004 os proprietários tentaram «deslocalizá-la» mas as trabalhadoras, aparentemente liderados por uma espécie de subdirectora da fábrica, impediram a saída das máquinas, tendo assumindo o controlo da empresa, até que um ano depois os anteriores proprietários acabaram por a vender por um euro à organizadora da ocupação. Porque digo um sucesso «parcial»? Foi um sucesso, porque salvaram os seus postos de trabalho; mas foi parcial, porque no fim acabaram por apenas mudar de patrão.

A nível microeconómico, isso pode contribuir para amenizar as crises, nomeadamente para amenizar a vaga de falências que costuma ocorrer numa situação de deflação. Mas não resolve os problemas macroeconómicos por trás das crises, nomeadamente as crises da procura agregada, ainda mais agravadas por políticas orçamentais restritivas, como estamos a viver agora. É aí que eu quero chegar com o exemplo seguinte.

No princípio dos anos 90, a economia mundial estava igualmente em recessão (recessão essa que também iria ajudar a tirar o Partido Republicano da Casa Branca, à época ocupada por um Bush mais preocupado com guerras no Médio Oriente do que com a economia).

Em Ithaca, uma cidade norte-americana no estado de Nova Iorque, um activista local, inspirado pela leitura de «socialistas utópicos» como Robert Owen e Josiah Warren, lançou, em 1991, o hour, uma moeda alternativa, em colaboração com vários estabelecimentos de negócios locais. O mecanismo é o seguinte: quem quiser negociar em hours e aceitá-los como pagamento inscreve-se na associação que emite e gere a «moeda local»; o seu nome é incluído num directório de entidades que aceitam pagamentos em hours e, periodicamente, os associados recebem alguns hours para gastar. Essa iniciativa teve grande sucesso local e actualmente grande parte dos negócios em Ithaca aceitam o pagamento em hours.

Sistemas como este têm aparecido em vários sítios nas últimas duas décadas, seja criando mesmo uma moeda local com existência física (como o referido hour), seja através de sistemas como o LETS (Local Exchange Trading System – aí, todos os associados têm uma espécie de «conta-corrente» e, quando um compra alguma coisa a outro, o valor é adicionado à conta do vendedor e subtraído à do comprador; em princípio, em cada momento a soma dos saldos dos associados deve ser igual a zero); aliás, voltando ao caso da crise argentina, também aí chegou a desenvolver-se uma «moeda» desse género, o «crédito».

Essas «moedas locais» e experiências semelhantes costumam ser apresentadas sobretudo como uma forma de «o dinheiro não sair da comunidade»; o autor destas linhas até tem algumas reservas em relação a esse objectivo (afinal, dinheiro que não sai da comunidade X é dinheiro que não entra na comunidade Y…). No entanto, acabam por desempenhar também outro papel, pois são uma forma de estimular a procura. Afinal, os efeitos económicos de uma associação (como em Ithaca) distribuir aos seus membros uma «moeda complementar» são semelhantes, ainda que em ponto pequeno, aos efeitos expansionistas de um défice orçamental e de uma expansão monetária. Algumas dessas moedas, exactamente para encorajar os utilizadores a gastá-las depressa, até têm um juro negativo (isto é, se não forem gastas num certo período, o seu valor reduz-se).

Poderiam estas «moedas locais» ser suficientes para contrabalançar as políticas pró-recessão dos governos e bancos centrais? Estou convencido de que não. Em primeiro lugar, exactamente porque são iniciativas locais, pelo que, numa economia globalizada, terão sempre um papel marginal. Com efeito, mesmo nas localidades em que são lançadas, a moeda mais corrente é a moeda oficial, já que é com essa que se compra tudo o que não seja produzido por participantes no projecto. Além disso, não serão suficientes porque estarão sempre em desvantagem competitiva face às moedas suportadas pelos Estados; logo, grande parte das pessoas preferirão sempre usar a moeda «oficial».

No entanto, tanto as «empresas recuperadas» como as «moedas locais» contribuem, por um lado, como paliativos para a crise e, por outro, podem servir de base (e de exemplo) para políticas de âmbito mais macro-social. Por exemplo, a existência de fábricas autogeridas ajuda a pôr em causa a ideia de que os gestores são fundamentais e que por isso têm de receber prémios avultados; e a existência de políticas locais e relativamente bem sucedidas de estímulo à economia pelo lado da procura ajuda a defender a ideia de que é necessário estimular a economia pelo lado da procura. Uma potencial terceira vantagem dessas formas de auto-organização popular é poderem servir como um esboço de poder paralelo ao poder do Estado, que poderá vir a ser útil como foco de resistência a certas tentações autoritárias que podem vir a desenhar-se em alguns países, como já aconteceu noutras crises globais.

1 comentários:

Anónimo disse...

Três notas:

A Venezuela criou moedas locais em muitas pequenas localidades que vivem da agricultura, com vista a serem utilizadas no mercado. Uma vantagem adicional é que se estimula a pequena produção, que em tempo de crise tem tendência a desaparecer primeiro que as empresas maiores. Aparentemente é um caso de sucesso (como e por quem foi medido, não me pergunte, foi um paper que li algures)

Segundo, no caso da Jugoslávia e da sua auto-gestão, em que os conselhos de trabalhadores - partamos do princípio que não coagidos! - sempre optaram por contratar gestores. Parece-me de facto grosseiro dizer que os gestores são dispensáveis, dado que podem organizar a produção de modo mais eficiente. Agora, é óbvio que não estamos a falar do tipo de gestor milionário, tenho a noção que ganhariam o mesmo que um operário especializado.

Terceiro, a formação de comités de consumidores e produtores podem coexistir com as propostas do artigo, tendo em vista obter informação que seria dada apenas pelo mercado. Por exemplo, antecipar produção invendável, tentar introduzir inovações, etc.. Podem nascer daí formas embrionárias de participação social.

Um bom artigo, MM, e que venham mais desses.