17/12/10

De como o poder político democrático não tem, por definição, esfera privada a defender, e só a sua plena inscrição no espaço público garante democraticamente a defesa da esfera pessoal e do direito à intimidade de todos e de cada um

Têm-se multiplicado — e vindas, por vezes, de quem deveria ter mais cuidado com a maneira como se exprime ou admitir, na alternativa, a sua adesão a uma ou outra versão essencialmente antidemocrática da acção política — as invocações asneirentas da necessidade de combater o mito (totalitário) da transparência total e de manter ao poder político as suas prerrogativas de segredo (os célebres "arcanos do império").

Não pretendo alargar-me sobre o assunto. Somente recordar que a defesa da intimidade e da região de sombra de cada um, da sua esfera pessoal reservada, NÃO implica a defesa do "segredo de Estado" ou do reconhecimento ao Estado de furtar à esfera pública as suas decisões e razões correspondentes. Antes pelo contrário.

Os casos em que os magistrados democráticos, que são delegados e mandatários dos cidadãos, poderão justificar a necessidade de segredo são muito poucos e elementares: segredos militares durante as operações em curso (por parte das "chefias" temporárias e revogáveis que o estado de guerra, justamente, impõe ao arrepio da acção democrática, mas sob o controle desta), segredo judicial em certas investigações criminais — eis os dois casos que me ocorrem e que ambos excluem a "diplomacia secreta" (desmascará-la, bem como publicitar os pactos e cláusulas a que aquela dá lugar é uma reivindicação histórica permanente dos movimentos radicais e democráticos).

Ao contrário da pessoa de cada cidadão, que por nunca o ser apenas, deve ver garantida, pelo conjunto dos demais cidadãos e pela sua participação democrática no exercício do poder político, uma esfera privada da sua existência e do seu convívio informal com os demais, baseado em toda a espécie de afinidades electivas "gratuitas", ao poder político e ao seu exercício não deve ser permitida qualquer esfera privada, qualquer modo de privatização da esfera pública que é condição da sua democraticidade.

 Ou seja, e à laia de conclusão, a margem de privatização e de opacidade de que goza o poder político é inversamente proporcional à consistência e força das garantias da esfera pessoal e íntima de cada um consigo e da esfera colectiva das relações e formas de associação conviviais.

6 comentários:

Niet disse...

Ò M.S.Pereira: Há um claro modelo de " seita " no processo que envolve o WikiLeaks. Agora que toda essa configuração sociopolítica mexa com a lógica dos problemas extremos e o princípio de incertitude, não obsta a que o sr. Assange e os seus colaboradores não se submetam à lógica mais repressiva e totalitária imposta pelo Estado das oligarquias dominantes. Bush e Sarkozy, Merkel e Blair(hoje Cameron) reorganizaram o poder judicial de forma escandalosa para assegurar o domínio implacável de classe contra as reivindicações democráticas mais singelas. Acresce o facto do sr. Assange ter entregue o seu "volume" de telegramas a cinco respeitabilíssimos jornais que defendem - de uma forma mais ou menos crítica e arrostando com apertado controlo e chantagem do poder oligárquico... - o "sistema" político-económico e constitucional que consagra e defende o capitalismo " avançado" da IVa vaga. Mas, claro, não podemos ignorar o solene aviso de Castoriadis sobre o carácter profundamente reaccionário da concepção marxista da teoria da luta de classes que privilegia as hierarquias e o segredo da famigerada " ditadura do proletariado...Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Ó Niet, rematas um tanto ao lado, embora com o vigor de sempre.
Este post não é sobre a natureza da organização WikiLeaks nem sobre as concepções de Assange, mas sobre certas reacções insignemente aleivosas que se manifestaram a propósito do caso.
Depois, embora eu não seja marxista, acho que falar sem mais da "concepção marxista da teoria da luta de classes que privilegia as hierarquias e o segredo da famigerada 'ditadura do proletariado'" é injusto para Marx e não encontra neste confirmação. O modelo da "ditadura do proletariado" (um contra-senso, sem dúvida) era a Comuna de Paris… Estás a ver?
Salut et liberté

msp

Niet disse...

MS Pereira: Todas estas questões são hiper-complexas e muito dificéis, meu caro. Mas não podemos branquear nem simplificar e a " posição " do comentador é mais ingrata do que a do postador- se se deseja avançar e realizar Informação dinâmica e que ilumine o futuro!Égalité et Liberté! Niet

Ricardo Alves disse...

De acordo, MSP.

São as pessoas quem tem direito à vida privada, não os Estados (salvo as excepções mencionadas).

Os governantes, nos seus actos de governação, não têm direito ao segredo. Prevalece o nosso direito ao escrutínio.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo Alves,
o estranho é termos de recordar estas verdades elementares - indício de uma regressão das mentalidades que, a não ser invertida, só pode augurar o pior.

Cordiais saudações republicanas

msp

Niet, sim, todas as questões de que falas são complexas. Mas também é preciso sabermos não complicar as coisas. Não faz sentido dizer que a transparência do espaço público é uma ameaça de totalitarismo,de violação das esferas íntima e convivial de cada um e de todos, quando a ameaça de totalitarismo está antes nos arcanos do império e na privatização/absolutização do poder político.
Não te parece?
Salut!

msp

Niet disse...

MS. Pereira, meu caro: Dou comigo a pensar que andamos muma guerra ideológica acidentada,apimentada e plena de ideias. Até nos falta tempo para nos ocuparmos de tantas referências analíticas. E mesmo assim-dessa maneira soberana e esforçada ao invés do absurdo sonoro dos clichés -existem momentos- falo por mim - em que o
cansaço e a desilusão pesam, afecto que já era possível detectar e sentir na apologética revolucionária fabulosa de Castoriadis, cujos inimigos destacavam esses sintomas nos últimos anos da sua vida." O tempo das grandes individualidades políticas já passou. Enquanto se tratava de fazer revoluções políticas, estavam no seu posto.A política tem por objecto a fundação e a conservação dos Estados; mas quem diz " Estado ", diz dominação de um lado e escravatura do outro ",( M. Bakounine,1871). Recebi agora- que sorte! por ser ainda da edição original da famosa colecção da Payot-o livro de Trent Schroyer sobre a " Crítica da Dominação ".Como sabes, analisa e revê os fundamentos da " Teoria Crítica " englobando os trabalhos de Habermas, Althusser, Lefebvre e Moore, entre muitos outros.Vou analisar! Égalté et Liberté! Niet