30/06/13

João Valente Aguiar no Passa Palavra: "O 'nacionalismo de base proletária' e o papel do PCP (1ª parte)"

O João Valente Aguiar publica hoje no Passa Palavra a primeira parte de um brilhate ansaio sobre O "nacionalismo de base proletária" e o papel do PCP, que declara como ponto de partida algumas questões levantadas pelo José Nuno Matos em resposta a um outro texto seu (texto originalmente publicado, tal como a resposta do JNM, também no Passa Palavra).


Creio que a melhor maneira de prestar homenagem à inteligência e à inspiração profunda da primeira parte do novo ensaio do JVA consiste em formular algumas ideias ou questões que me ocorreram ao lê-lo. Por isso retomo aqui quase literalmente o comentário que acabo de publicar no Passa Palavra.

1. Não será possível que o “patriotismo de esquerda” pareça hoje, apesar de tudo, mais insistente e monocórdico dado o enfraquecimento relativo da vertente “internacionalista”, consistente na proclamação da fidelidade à União Soviética e aos seus interesses de potência, após o desaparecimento daquela – e dado, por outro lado, o fim, no que a Portugal diz respeito, da questão colonial? Parece-me inegável que o "nacionalismo" do PCP fica mais exposto sem o tempero e os efeitos de contraste que lhe conferiam, por um lado, a "construção do socialismo"na URSS, e, por outro, a "questão colonial" do regime deposto em 1974. Daí que, apesar da continuidade, alguma evolução terá havido nesta matéria, tendo sido um dos seus resultados tornar mais agressiva a expressão do "patriotismo de esquerda" (antes, além do papel "afirmativo" e "constituinte" que o JVA demonstra à saciedade, o nacionalismo do PCP tinha também uma dimensão "defensiva", respondendo aos que o acusavam de ser um "partido estrangeiro", etc., etc.).

2. Seria, pois, interessante vincar como — ao mesmo tempo que o “nacionalismo” que o JVA sobejamente atesta e que o Zé Neves já destacara em termos memoráveis há alguns anos (cf. José Neves,  Comunismo e nacionalismo em Portugal. Lisboa, Tinta da China, 2008)  — o pólo “internacionalista”, embora menos altissonante, uma vez que o sol do “socialismo real” se extinguiu entretanto, persiste nas concepções geoestratégicas do PCP, que, embora menos imeditamente manifestas, alimentam, afinal, a sua táctica “nacionalista”. Por exemplo, a insistência cada vez mais exasperada na saída da zona-euro e na desagregação da UE parecem-me sinais claros da actualidade que as considerações geoestratégicas conservam. O PCP sabe que nem a “restauração da soberania” nem a “independência nacional” bastam para tornar verosímil em Portugal – ou a partir de situações comparáveis noutros países – o triunfo do seu modelo de sociedade e de Estado, pelo que não pode deixar de ter como objectivo fundamental a criação de condições que permitam a reemergência de um “campo socialista”. O tema da solidariedade com as nações que lutam contra o “imperialismo” dos EUA e da UE é revelador a este respeito. O que é anti-americano ou anti-europeu é bom. E por isso é preciso difundir a ideia de que é impossível democratizar a UE ou a sociedade norte.americana, transformar no seu terreno as relações de forças, uma vez que se decretou que só do exterior poderão ser mudadas.

3. A questão do “fascismo sem nome” é complexa. Sem dúvida, Bardèche tem razão a seu modo quando diz que boa parte das concepções do fascismo são adoptadas por gente que ignora a origem das que proclama e correspondem àquelas. Continua, no entanto, a ser difícil, senão impossível, conceber um movimento de tipo fascista que não reclame um nome e algumas fórmulas ideológicas tornando-os objectos sagrados, consagrando-os por meio de um culto ritualizado e explícito distintivo, apresentado como alternativa e superação perante todas as outras posições políticas. É claro que o nome sagrado pode não ser “fascismo”, e o credo proposto como verdade salvífica e única pode não se confessar “fascista” (ou até dizer-se “antifascista”). Mas um e outro terão de estar presentes quando emerge um movimento de tipo fascista, uma vez que são um dos seus elementos constituintes necessários. Seria necessário analisar tudo isto com mais tempo. Mas creio que, se a gestação do fascismo pode ser silenciosa e dissimulada, o seu desenvolvimento posterior não pode avançar sem declaração e exasperação identitárias radicalizadas.

3 comentários:

João Valente Aguiar disse...

Caríssimo,
obrigado pela tua paciência e pelos teus preciosos comentários. Sobre os pontos que abordas.

1) Sim, é possível que o desaparecimento da URSS possa ampliar o discurso nacionalista dentro do PCP. Contudo, creio que esse aspecto convive com outros dois. Primeiro, a consolidação nacionalista do PCP nos anos 40 ocorreu precisamente num tempo onde a URSS se afirmou no panorama internacional como a pátria do socialismo. Portanto, uma coisa não implica necessariamente a exclusão da outra. Em segundo lugar, creio que a crise do euro exacerbou os discursos nacionalistas. Eles sempre estiveram presentes na história recente do PCP mas creio que se exponenciaram no actual contexto, onde a demagogia anti-europeia tem terreno para actuar.

2) A afirmação nacionalista do PCP ocorre em dois planos. Primeiro, no plano mais óbvio: o da independência nacional, etc. E depois no plano da tese da “amizade e da colaboração livre entre todas as nações”. Por sua vez, este segundo plano desdobra-se em dois. Num primeiro momento, isso significa que a desagregação da UE é vista como um passo relevante para o retorno (a meu ver estritamente ilusório e ideológico – o que é ainda mais perigoso) a um capitalismo de “nações independentes” e assentes no proteccionismo económico. A tese implícita é que a esmagadora maioria das necessidades de uma população seriam satisfeitas a partir da produção nacional. Portanto, o “internacionalismo” do PC é estritamente uma soma de nacionalismos. Num segundo momento, o projecto nacional preconizado pelo PCP articular-se-ia (se concretizado, o que não me parece muito possível) com outros regimes que o PC vê como amigos, progressistas e até como pretensamente anti-sistémicos. Por exemplo, no blog de um reputado economista e dirigente do PCP (http://anonimosecxxi.blogspot.pt/2013/06/registo-de-dias-de-agora.html) os chamados países emergentes são vistos como forças anti-imperialistas, como se eles não fossem novos imperialismos… Ou como se fossem algo de muito distinto do restante capitalismo, quando de facto representam a ponta-de-lança do desenvolvimento dos princípios de organização toyotistas em novos e enormes mercados. E, pior de tudo, quando países como a China são apresentados como uma panaceia simultaneamente anti-imperialista e de tábua de salvação económica. Como se grandes grupos capitalistas – privados e estatais – chineses (ou outros) quisessem saber de Portugal fora de um contexto de integração económica à escala global. Eventualmente o PCP esperará que os camaradas de Pequim, de Havana ou de Pyongyang o auxiliem economicamente. Se há quem ache que a actual crise se resolveria com a prisão de centenas de políticos, porque um Portugal “socialista” não poderia aprender com aqueles magníficos exemplos e regenerar a economia da nação a partir da prisão massiva ou do trabalho prisional? Não foram assim que começaram e floresceram os planos quinquenais?

(continua)

João Valente Aguiar disse...

(continuação)

Felizmente parece-me improvável a ascensão do PC ao poder. O que não lhe retira contornos de perigosidade, na medida em que não existe nenhuma consciência na cabeça daquela gente de que as suas teses e as suas práticas nacionalistas só servem para que, num cenário de agravamento da crise económica e política, a demagogia da extrema-direita possa florescer.

3) Posso estar errado mas que me lembre foi o fascismo italiano quem mais se reivindicou explícita e propriamente de uma natureza fascista. Mesmo que não tenha sido o único, a questão vai muito para além do termo. Ou seja, a maioria dos fascismos assumem-se acima de tudo como projectos políticos de salvação/regeneração nacional. Este é sempre o seu grande leitmotiv e o grande mobilizador de massas. Creio que o exemplo brasileiro (que abordarei ao de leve na segunda parte do artigo) demonstra isso mesmo: bandeiras e cânticos nacionais, discurso do “gigante que acordou” do sono que os corruptos e os plutocratas açambarcaram, etc. Ou o socialismo do século XXI chavista que é um exemplar possível de um fascismo tropical. O lado facial pode variar e até se pode afirmar socialista, nacional, etc. Mas o seu fundo parece assentar sempre na mobilização do tal nacionalismo de base proletária. O que quer dizer que algumas genéricas palavras de ordem socializantes são afogadas na corrente da salvação da pátria.

Um abraço!

João Valente Aguiar disse...

Miguel,

outra nota que me esqueci de abordar no meu comentário anterior especificamente sobre o ponto 2.

A geoestratégia permeia totalmente a ideologia nacionalista do PC. É ela que legitima as teses delirantes da defesa da desagregação da UEM. O espantoso dessa gente é que muito falam dos efeitos imediatos que a queda da URSS originou na queda da esperança média de vida, etc. (Como se antes do próprio fim da URSS ela fosse propriamente muito elevada, mas essa é outra história…). Mas no caso da UEM, onde um ocaso seria muitíssimo mais devastador, já deixam o juízo racional de lado.

Aliás, o caso da URSS em comparação com a UEM é interessante. Primeiro, porque foi a muito maior internacionalização do capitalismo ocidental que lhe permitiu dar um salto tecnológico e organizacional inovador e elevar a produtividade a níveis muito superiores aos do capitalismo de estado soviético. Foi essa internacionalização que lhe permitiu forjar o toyotismo enquanto o mundo socialista nunca passou do fordismo. Fordismo esse que era uma modalidade de organização da produção muitíssimo mais retrógrada e alienante do que os sectores mais qualificados, criativos e melhor remunerados do capitalismo actual. O que não iliba em nada as contradições actuais do capitalismo hoje vigente, mas entre dois capitalismos a esquerda parece proceder a uma escolha. E, pior de tudo, a modalidade que escolhe e defende abnegadamente é a pior delas… Portanto, o pessoal à esquerda que defende o nacionalismo esquece totalmente um dos factores mais relevantes que levou à desaceleração e posterior queda do projecto “soviético”. Nesse sentido, talvez a desagregação da UEM seja vista como uma espécie de vingança por aquela gente.

Em segundo lugar, na sua fase final, a desarticulação da URSS foi fomentada pela eclosão de nacionalismos que se foram desenvolvendo. Mas a sua desarticulação resultou numa difusão nacionalista colossal e com conflitos de tal ordem que ainda hoje permanecem feridas abertas. Ora, quem garante que algo semelhante não pudesse ocorrer no caso da desagregação da UEM? De facto, o caso de uma desagregação da UEM seria ainda pior na medida em que os seus efeitos contaminariam toda a economia mundial. Eu sou marxista (nomeadamente ao nível analítico) mas desconfio e desprezo os marxistas mecânicos que equiparam as crises económicas a contextos de irrupção revolucionária e libertadora. Se assim fosse 1929 – e o que se lhe seguiu – teria sido exactamente o seu oposto.

Por outro lado, o PC não tem qualquer problema em se aliar a qualquer regime anti-americano. Mas isso não é de hoje. Já os primeiros bolcheviques enalteceram e fizeram acordos com o Ataturk, deixando os seus camaradas a apodrecer nas prisões. Tudo em nome da preservação da pátria do socialismo.

Abraço