Tenho vindo a encontrar com frequência crescente em discussões que são os exercícios espirituais de cada dia de alguma gente empenhada em várias subversões ou desconstruções preliminares um tipo de "discurso" que revela que o verdadeiro alvo da crítica é o "império do sentido" ou a "tirania do Logos".
As suas formulações acompanham-se, as mais das vezes, de citações explícitas ou cifradas a autores mitificados, cujos nomes basta proferir ou evocar entre iniciados para dispensar outras explicações.
Refiro-me a enunciados do tipo:
"Devemos aprender a detectar a acção de um mecanismo do Poder na imposição que a sociedade faz à criança da mediação da linguagem como forma necessária das suas relações com os outros e a realidade dada - o que significa que, obrigando a dizer, 'toda a linguagem é fascista' (Roland Barthes), e que a destruição do Poder, sempre fascista, passa pela destruição da linguagem"; ou: "A Escola de Frankfurt mostrou, contra o reformismo social-democrata, que uma satisfação generalizada das necessidades básicas não só é compatível com reprodução do capitalismo, como passa hoje a consolidá-la, mas tanto T.W. Adorno e Max Horkheimer como, de certo modo, o próprio Walter Benjamin não souberam ver a que ponto a sua frustração - como indica a releitura lacaniana de Hegel por Zizek - se impõe como tarefa revolucionária preliminar, abrindo novos horizontes também à acção sindical "; ou: "Aqueles que se serviam de argumentos pseudo-revolucionários para contestar a direcção revolucionária de Estaline eram, na realidade, contra-revolucionários, como demonstra o facto de terem sido implacavelmente liquidados pelos verdadeiros continuadores da Revolução de Outubro"; ou ainda: "A participação livre e igualitária do poder político não abolirá as leis nem as instituições; limitar-se-á a democratizá-las, atribuindo aos cidadãos a actividade governante; por isso, o que importa não é instituir a democracia, mas, na esteira de Michel Foucault, antecipar a nova disciplina ou mecanismos de (auto-)controle que a transferência para cada um e todos os cidadãos das responsabilidades democráticas governantes não podem deixar de acarretar".
Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente, mas julgo poder ficar por aqui, contentando-me com sugerir que estamos perante uma variante da empresa de destruição da linguagem e do pensamento, através da rarefacção e redução codificadas das palavras e do seu regime de significação, que George Orwell descreveu na sua análise do Newspeak. Aqui o vocabulário pode ser abundante, promover neologismos e mots-valises, multiplicar as alusões a bibliografias eruditas e as citações de autores, opiniões e doutrinas diferentes, contanto que o faça irresponsável e inconsistentemente q.b.: quer dizer, reduzindo o sentido e a exigência de dar conta e razão da linguagem e do pensamento comuns, bem como a sua capacidade de imaginar outras razões que verdadeiramente o sejam, efectivamente alternativas frente às razões da dominação, a um capricho gratuito e ornamental, ou a um rito de inversão que se limita a exasperar - entre o monstruoso e o grotesco - a ordem que contesta, esgotando-se na apologia do terror absurdo dos seu delírio de omnipotência ou na recitação inócua de um fantasiar indiferente.
28/05/10
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5 comentários:
Caríssimo MS. Pereira: Ainda agora estive a reler a " Carta Aberta a Miguel Serras Pereira " que o Eduardo Prado Coelho te escreveu e publicou no livro " O Fio da Modernidade ". O infausto E.P. Coelho lá diz-preto no branco- " Aprecio em ti as qualidades que não possuo: uma coerência irrepreensível ( que tem um preço cívico, mas também implicações teóricas, como adiante tentarei explicar), um sentido permanente de marginalidade discreta e uma convicção tão profunda quanto obstinada ". E depois, ele, EPC, ataca forte e feio, sem razão de espécie nenhuma Castoriadis...No que, hoje, inferes sobre a" French Teory"- é disso que se trata, de facto-e das suas projecções no combate teórico em Portugal, ainda és muito " diplomático ". Pelo que se sabe,concretamente, só Manuel Maria Carrilho se aventurou pela narrativa-epistemológica-à la Foucault por ambição universitária, para concluir tese; tendo logo posto de lado tão " literária " construção para se remeter às perfomativas teorias do Pragmatismo e Relativismo anglo-saxónicas. No capítulo das " punitivas " teorias psicanalíticas lacanianas , a sua divulgação em Portugal teve- de forma jornalística- a sua mais persistente interlocutora na escrita de Maria Belo, que andou na Escola Freudiana de Paris nos anos 70. E depois ainda se podia falar da influência do "Anti-Édipo- Capitalismo e Esquizofrenia ", na esterilização de toda a experiência freudiana em Portugal... Por isso, quando tu falas de epígonos de Zizek e de Badiou, hoje em Portugal, se bem que eu defenda o uso conceptual como " estojo de ferramentas "- por isso não estruturado ou rigidamente " universitário " no mau sentido- muita água vai ter que passar por baixo das pontes para se poder gritar aleluia.
Zizek, por exemplo,tem uma cotação internacional pelas ruas da amargura, como se verifica pela polémica intercontinental que a New Republic e o N.York Times lhe moveram em fins de 2008. Niet
Caro Niet,
o Eduardo e eu discordámos sobre muita coisa diferente em diferentes ocasiões, e a nossa amizade, embora já nos conhecèssemos antes, começou por uma polémica, nos idos de 1975. Mas, quanto ao Castoriadis, ele voltaria, nos últimos anos, a declarar a sua admiração por ele e a reconhecer a sua grandeza.
Um dia, terei de falar aqui do Eduardo e tentar prestar-lhe justiça. São demasiados os que se apressaram a esquecê-lo, como eram de mais os que o liam à pressa sem se darem conta do que ele tinha de único na sua "alegria da comunicação".
Abrç
miguel sp
Caro Miguel,
ao mesmo tempo, penso que concordarás que a crítica da dominação – em vista da sua articulação filosófica e política – tem de ser, também, uma crítica da linguagem, do sentido, e da racionalidade (ou, para ser mais preciso, das suas conformações actuais). Contanto, claro, que o seja como “crítica imanente”. Não se trata de criticá-la a partir do seu contrário, negá-la simplesmente, abrindo o flanco à irracionalidade. Por exemplo, Habermas, no "Discurso filosófico da Modernidade" – onde ataca de forma superficialíssima pelo menos metade do “pensamento” do séc. XX – ensimesmou-se justamente num equívoco similar: toda a crítica - racional - da racionalidade moderna, que o dialogismo bem intencionado de Habermas visa salvar, é por ele condenado a título de “contradição performativa” (irracionalismo, aporia, niilismo, etc.).
Penso que estamos de acordo no essencial. Mas tive uma pontada na minha costela adorniana e não resiste a dar esta achega.
(A questão dos epígonos - que te leva, e bem, a escrever este post - é um problema. Por um lado, é preciso resistir ao que neles é absurdo e portanto debater; por outro lado, se se dá importância demasiada, correr-se o risco de os confundir com o original...)
Abraço
Caro João Pedro,
tens toda a razão - a razão ou logos que tenho em mente é auto-interrogação. Como, de resto, a democracia: impraticável, além de inconcebível, sem abertura explícita ao - ou solicitação explícita do - questionamento das suas obras. Agradeço-te a ocasião de o precisar.
Também concordo com a superficialidade da crítica habermasiana no Discurso…, etc.
Mas ao citar Adorno e a Escola de Frankfurt não o fiz com a menor intenção polémica: pelo contrário, exemplificava como de uma concepção justa se pode chegar a um absurdo que, evidentemente, a deforma até à monstruosidade.
Reconheço a necessidade de distinguir os epígonos dos "originais" - por ex., o Derrida não entendia, com a sua "desconstrução", avalizar um "qualquer coisa serve", ou "tudo tanto faz" ou "vale tudo", embora tenha sido usado como emblema de empresas desse tipo nas universidades americanas e latino-americanas… O problema grave não é esse - é o de alguns pensadores importantes, e embora não se esgotem nisso, promoverem o mesmo tipo de leitura que desemboca na insignificância ou na indiferença, nos termos dos epígonos do Derrida que referi. É o caso de Barthes e da sua afirmação que citei; é, hélas, o do próprio Deleuze, tão penetrante e exigente noutros momentos, quando escreve que "a responsabilidade é um termo de chui" ou repele a ideia de "diálogo", ou de construção/validação dialógica do discurso, como se tivesse aprendido a falar sozinho… Para não falar do Foucault, muito sobrestimado, em detrimento, por exemplo, de Adorno e Horkheimer que formularam primeiro e mais lucidamente do que ele (quase) tudo o que se aproveita na sua obra.
Mas, bem vês, meu caro, isto terá de ficar para outra conversa. Que pode pasar por próximos posts que sigam estas pistas e que aqui vamos publicando. Queres tentar a aventura?
Cordial abraço
miguel sp
Caro Miguel,
muitas e boas razões são as que apontas. Estamos de acordo no essencial e agradeço-te o modo como, na resposta, precisas a tua visão sobre os problemas e os autores evocados pelo teu post.
Digamos que o ponto em que divergimos – uma diferença fértil, a da boa distância, aquela que aproxima mais do que torna indiferente - reside no eu ser muito menos céptico em relação à tradição, vá, da “french theory”. O que, como é óbvio, não faz de mim um cultor acrítico da mesma.
Além disso, que uma ou outra abordagem seja mais ou menos pertinente depende, certamente, dos diferentes problemas que possam estar em causa. Fica, portanto, quase tudo por discutir – a tal aventura, claro.
Abraço aventuroso,
João Pedro
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