Este post mais não é do que um comentário, demasiado longo para a caixa respectiva, ao certeiro, mas demasiado breve post que o Zé Neves aqui deixou há umas horas.
A redescoberta das virtudes políticas da religião por diversos porta-bandeiras da prioridade da racionalidade económica, axiologicamente neutra, sobre as razões políticas e éticas de uma cultura da cidadania igualitária e governante, trouxe-me à memória os termos em que Castoriadis insistia no facto de o capitalismo requerer condições que se mostra incapaz de reproduzir pelos seus critérios próprios. Por isso, de resto, seria ao mesmo tempo irreformável (nos seus próprios termos) e devedor da sua sobrevivência aos limites postos à sua lógica pura pelas lutas e resistências que suscita.
Veja-se, por exemplo, esta passagem de um texto de 1990 ("Quelle démocratie?", in Figures du Pensable. Les carrefours du labyrinthe VI, Paris, Le Seuil, 1999):
"Ora, num regime que proclama constantemente, nos factos e nas palavras, que o dinheiro é o único valor, e no qual a única sanção é a lei penal, por que razões os juízes não leiloariam as decisões que têm de ditar? A lei proíbe-o, sem dúvida - mas porque teriam de ser incorruptíveis os encarregados de a aplicar? Quis custodes custodeat? O que é que na lógica do capitalismo … proíbe a um inspecto+r das finanças aceitar subornos? Porque é que um professor se resignará à maçada de ensinar alguma coisa aos seus alunos se tiver maneira de se entender com o seu inspector? Um matemático de primeira ordem, professor universitário, talvez ganhe 16 000 francos por mês, 'produzindo' jovens matemáticos. Destes, os que sabem como está a vida (quer dizer, quase todos) não continuarão a se rmatemáticos; ocupar-se-ão de informática e entrarão para uma firma recebendo um salário inicial talvez de 30 000 francos. Quem ensinará, então, matemáticas na geração seguinte? Segundo a lógica do sistema, ninguém ou quase ninguém. Dir-se-á: haverá sempre cabeças amenamente extravagantes que preferirão uma bela demonstração a um salário elevado. Mas o que eu digo é que, precisamente, segundo as normas do sistema, tais pessoas não devem existir; a sua sobrevivência é uma anomalia sistémica - tal como a de operários conscienciosos, juízes íntegros, burocratas weberianos, etc. E por quanto tempo poderá um sistema reproduzir-se unicamente em função de anomalias sistémicas?"
Com efeito, o regime vai ainda mais longe e tende cada vez mais a punir - pela desqualificação, a culpabilização individual, a ameaça disciplinar e a suspeita policial - aqueles a que Zygmunt Bauman chama os "consumidores deficientes" ou menos conformes. O pau e a cenoura do capitalismo, na medida em que funcionem eficazmente, comprometem pois as suas perspectivas de sobrevivência, e deixam-nos perante a perspectiva de uma transição do exercício do poder através da força económica para um regime do seu exercício barbarizado através do recurso à força bruta.
É a percepção, mais ou menos elaborada, desta verdade que, creio, leva a que ouçamos cada vez mais vozes de jornalistas, ideólogos ou intelectuais orgânicos do regime que proclamam os benefícios da mentira religiosa. Procuram nesta mentira - "mentira" do seu ponto de vista de descrentes ou agnósticos confessos - remédio para o impasse em que o triunfo da racionalidade capitalista deixa a reprodução do capitalismo e das suas formas de governo presentes. O texto de Pacheco Pereira, que o Zé Neves comenta a seu modo no post que suscitou esta minha nota de leitura, documentando a renúncia ao pensamento livre e à exigência de dizer a verdade que o seu autor não tem deixado de proclamar e brandir como bandeira, demonstra-o sobejamente. Restaria esperar que a Igreja de Roma saísse a terreiro afirmando, por meio de intervenções claras dos seus responsáveis, a natureza intrinsecamente perversa, em termos cristãos, da Nova Religião do Capitalismo. Mas a sua hierarquia parece ter optado pela atitude contrária - ver a este propósito o post que ainda recentemente a Joana Lopes publicou no Brumas -, avalizando esta instrumentalização da religião que a reduz a uma espécie de moral ancilar da racionalidade capitalista e fazendo valer como argumentos que fortalecem a causa da fé declarações como as de Pacheco Pereira.
1 comentários:
Caro MS Pereira- Para onde ir e que fazer? Ando a ler um livro muito interessante do Harold Rosenberg sobre a "Tradição do Novo", que muito pode favorecer para esclarecer as diferenças entre democracia, totalitarismo e socialismo, para usar uma didáctica terminologia onde se insinua e esconde a sobre-determinação do MP Capitalista. De qualquer das formas, devido ao adiantado da hora, não deixo de testemunhar à tua interpelação corajosa e profunda. E não resisto a citar um texto de M. Bakounine sobre, precisamente, para onde ir e o que fazer? " Descer até ao povo significa rejeitar a sociedade condenada teóricamente há muito, mas que agora será preciso rejeitar renunciando a todas as vantagens, a todos os hábitos e a todos os seus bens; renunciando, digo, a esse charme corruptor mas ao mesmo tempo delicioso das relações e da vida mundanas, ao refinamento nocivo das formas que, a maioria das vezes, não dissimulam senão a mais odiosa das mentiras, o egoísmo cínico e a negação mais grossseira do que se pode apelidar de humano, de nobre e de magnífico ". Niet
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