Mergulhada em filmes de arquivo, assusto-me ao vir à tona: como foi que, do entusiasmo do 25 de Abril, chegámos em 36 anos a este país de Futebol e Fátima, com Fado a tocar em quase todas as rádios dos táxis em que entramos?
A nuvem, que me retém em Ponta Delgada, deixa-me outras interrogações: sobre comboios e aviões, sobre barcos, sobre quantas pessoas são necessárias para justificar a existência de um Instituto de Oncologia num conjunto de ilhas a que uma nuvem vulcânica pode cortar todo o acesso ao exterior?
Parada no balcão do check-in, inquieta por partir, oiço as vozes daqueles para quem o cancelamento das ligações aéreas significa algo muito diferente da alteração de uma reunião ou um compromisso: o adiamento de uma operação esperada há mais de um ano; a falha a uma ou mais sessões de quimioterapia; a continuação da espera pela intervenção urgente para manter a visão.
Sei, ninguém tem culpa, como refere até à exaustão o funcionário da SATA: é a nuvem. A natureza. Quiçá Deus. E recordo o belíssimo poema de Carl Sandburg, Anna Imroth:
Cross the hands over the breast here--so.
Straighten the legs a little more--so.
And call for the wagon to come and take her home.
Her mother will cry some and so will her sisters and
brothers.
But all of the others got down and they are safe and
this is the only one of the factory girls who
wasn't lucky in making the jump when the fire broke.
It is the hand of God and the lack of fire escapes. *
Não me fio na mão de Deus. Prefiro as saídas de emergência.
* Cruzem-lhe as mãos sobre o peito - assim.
Endireitem-lhe um pouco mais as pernas - assim.
E chamem o carro para a levar para casa.
A mãe dele irá chorar e também as suas irmãs e irmãos.
Mas todos os outros saíram e estão bem
e ela foi a única rapariga da fábrica que
não conseguiu saltar quando o fogo irrompeu.
Andou aqui a mão de Deus - e a falta de uma saída de emergência.
(A tradução segue de memória - ou seja, com possíveis falhas - uma excelente tradução de Alexandre O'Neill.)
20/05/10
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Bem metido, o teu post, Diana.
Eu estou como tu. Não me fio na mão invisível da economia nem nos seus efeitos automáticos; prefiro a acção democrática manifesta e a sua criação lúcida - ou imaginação criadora instituinte.
E que invejável memória, camarada! (este blogue é filosófico: pratica a liberdade de pontuação do espanto, ainda que, no meu caso, por excepção, como aqui sucede).
Abraço
miguel
Obrigada, Miguel. Espero que a minha memória - infelizmente menos invejável do que a fazes - não tenha traído a tradução do O'Neill: se a colectânea de poemas do Sandburg em que surge Anna Imroth é notável, a tradução do O'Neill consegue ainda melhorá-la. Devo ao O'Neill a gentileza de me ter dado uma fotocópia do exemplar que lhe restava, já que nunca consegui encontrar o livro.
E não resisto a copiar para aqui a tradução de Chicago:
Chacinadora de porcos para o mundo,
fabricante de máquinas, ensiladora de trigo,
tu que brincas com as ferrovias e transportas os produtos do país:
tumultuosa, grosseira, sempre aos gritos,
ó cidade das costas largas:
Dizem-me que és selvagem e eu acho que sim: vi as tuas mulheres
pintadas seduzirem os rapazes do campo à luz dos lampiões.
Dizem-me que és injusta e eu respondo: é verdade; vi pistoleiros matarem e ficarem livres para continuarem a matar.
E dizem-me que és brutal. A minha resposta é: nas caras
das mulhares e das crianças vi as marcas de uma fome tenaz.
Foi o que respondi. E voltando-me mais uma vez para aqueles que escarnecem da minha
cidade, por meu turno escarneci deles, dizendo:
Mostrai-me outra cidade que de cabeça levantada cante assim, orgulhosa de estar viva e de ser rumorosa e forte e astuta.
Lançando magnéticas pragas, acumulando afadigamente fainas sobre fainas, eis a grande ardorosa lutadora erguendo-se viva entre as pequenas cidades efeminadas;
feroz como um mastim de língua pendente, pronto para o assalto, ardilosa como um selvagem que defronta a hostilidade do deserto,
de cabeça nua
amontoas
arrasas
planificas
constróis, destróis, reconstróis,
por entre o fumo, a boca cheia de pó, rindo com brancos dentes,
sob o peso terrível do destino rindo como riem os jovens,
rindo como ri um lutador ignorante que nunca perdeu um combate.
rindo gabarola, rindo de sentires o sangue a pulsar-te nas veias,
rindo de sentires no peito o coração do povo!
Rindo o sonoro, rude, tempestuoto riso da mocidade semi-nua, suarenta, orgulhosa de seres a chacinadora de porcos para o mundo, a fabricante de máquinas, a cidade que brinca com as ferrovias e transporta os produtos do país.
Carl Sandburg (tradução de Alexandre O'Neil)
Enviar um comentário