02/05/11

O que vi em Setúbal durante a manifestação anti-capitalista do 1º de Maio


Estive ontem em Setúbal e pude testemunhar pessoalmente (e até de bastante próximo) os acontecimentos no bairro da Fonte Nova. Para não variar, a PSP está a fabricar novamente uma versão à sua conveniência, somando vários pontos ao seu conto, de maneira a transformar a sua violência repressiva num gesto de defesa dos cidadãos.
A primeira coisa que deve ser destacada é que a manifestação - cerca de centena e meia de pessoas - percorreu toda a cidade sem qualquer incidente, sendo apoiada e saudada por vários setubalenses pelos quais passou e que receberam com interesse os panfletos distribuídos. Apesar de não ser acompanhada por qualquer agente da polícia, todos os automobilistas foram pacientes e respeitadores do direito de manifestação, aguardando enquanto o cortejo passava e demonstrando por vezes o seu apoio às palavras de ordem e às faixas. O mesmo aconteceu com os vários proprietários de restaurantes e cafés localizados no bairro da Fonte Nova, inclusive os que estavam no largo onde tudo viria a acontecer.
A segunda coisa que deve ser destacada é que a manifestação coincidiu com a da CGTP em parte do percurso, aguardando que o desfile sindical passasse para assumir posição na sua cauda. Cada um dos cortejos gritou as suas palavras de ordem (que eram, naturalmente, muito diferentes) sem qualquer tipo de incidente ou hostilidade a assinalar.
Após algumas centenas de metros na cauda da manifestação da CGTP, da qual estava separada apenas por um cordão de agentes da PSP (cerca de 5), a manifestação anti-autoritária seguiu um rumo diferente, em direcção ao bairro da Fonte Nova, uma das zonas da cidade mais carregadas de memória histórica pelas lutas operárias de vários anos. Mais uma vez, e apesar de não haver qualquer agente da PSP nas imediações, a manifestação prosseguiu o seu rumo pacífico e combativo, gritando palavras de ordem e comunicando com a população e os transeuntes. Após cerca de duas horas, chegou ao Largo da Fonte Nova, onde foi ligada uma aparelhagem sonora na parte de trás de um carro. Tocava Zeca Afonso. 
O pessoal dispersou pelo largo e pelas ruas à volta, a conviver. Não houve qualquer dano a qualquer tipo de propriedade, nenhum conflito com os moradores. Aliás, não chegámos a estar ali mais do que vinte minutos.
Chegou um carro com dois polícias (talvez fossem mais, mas só dois se aproximaram), que solicitaram que o volume fosse reduzido, o que aconteceu. Na conversa que se seguiu, enquanto um dos polícias pediu a uma das pessoas que estava junto do carro que se identificasse, o outro começou a ordenar às outras pessoas que se afastassem. Quando a pessoa que estava junto do carro respondeu que não tinha identificação, o agente em questão imediatamente a agarrou e lhe disse que tinha de ir à esquadra. 
Quem estava à volta teve apenas tempo para se aproximar para perguntar o que se passava, uma vez que no espaço de 30 segundo chegou uma carrinha, de onde saíram meia dúzia de agentes que começaram a disparar tiros de caçadeira. Repito, chegaram a alta velocidade, pararam, saíram e dispararam. Várias pessoas foram atingidas pelo que se veio a revelar serem tiros de borracha (aqueles mesmos que tiraram um olho a um adepto do Benfica há duas semanas). Foram disparados para o ar tiros de pistola de fogo real.
Começaram a chegar vários carros da PSP, enquanto os agentes no local aproveitaram a surpresa para isolar cerca de 3 ou 4 manifestantes (o primeiro, que não tinha identificação, e mais alguns que se aproximaram ),  que começaram a espancar no chão enquanto lhes atiravam gás pimenta para os olhos. Perante este cenário, os restantes manifestantes avançaram, puxaram os que estavam a ser espancados, defenderam-se da melhor maneira possível e recuaram para o outro lado do Largo. Quando a polícia resolveu continuar a investida, foi recebida por uma chuva de pedras e garrafas. Alguns manifestantes pegaram em chapéus e mesas de uma esplanada vizinha, para se defenderem. Um carro da PSP que chegou a alta velocidade foi embater numa carrinha de um morador/comerciante que ali estava estacionada, danificando-a. Para trás ficou o indivíduo que vem aparecendo em várias fotografias e que quase ninguém conhecia. Várias testemunhas afirmam que ele foi baleado no chão com uma caçadeira, quando já estava detido pela polícia.
O resto da manifestação dispersou em pequenos grupos, que foram literalmente "caçados" pelas ruas de Setúbal, onde continuaram a ser disparados tiros de borracha e efectuadas detenções com grande aparato, para estupefacção da população que passava e assistia a polícias sem identificação que ameaçavam, insultavam e empurravam todos os que tinham um ar suspeito. A senhora da PSP que parecia coordenar as operações deu indicações pela rádio segundo as quais deveriam ser detidas todas as pessoas que usassem "roupa preta" ou tivessem um "aspecto esquisito".  Alguns manifestantes foram detidos dentro de cafés e metodicamente espancados dentro da carrinha antes de serem conduzidos à esquadra.
Testemunhei tudo o que relato em pessoa, com excepção do que aconteceu após a carga inicial, quando toda a gente dispersou em pequenos grupos pela cidade. Pude em todo o caso ver as marcas deixadas pela PSP nos corpos de vários manifestantes (e não só, muitos moradores também apanharam simplesmente por terem vindo à rua tentar acalmar a polícia) e cruzar diversos relatos e versões que se confirmam mutuamente. 
A polícia mente quando afirma que foi recebida à pedrada e mente de forma descarada quando refere comportamentos impróprios por parte dos manifestantes. Tal como no 25 de Abril de 2007 fomos premiados com a notícia de montras estragadas e cocktails molotovs que ninguém chegou a ver, no 1º de Maio de 2011 a PSP procura inverter as responsabilidades pelos acontecimentos, escrevendo um  romance policial de escassa qualidade. 
Tornou-se um hábito a polícia responder com bastonadas às ideias que considera perigosas e subversivas. Que tenha passado às balas demonstra apenas a sua desesperada lucidez. Nos conturbados tempos que correm - quando se prepara um gigantesco roubo organizado aos trabalhadores e aos pobres a pretexto da crise - até os mais pequenos gestos de revolta e recusa podem assumir proporções inesperadas. Sem legitimidade nem representatividade nem soberania, o Estado português demonstra que lhe resta apenas um aparelho de violência para lançar sobre os que se organizam para lutar. Cem anos depois dos tiros da GNR sobre operárias grevistas, naquelas mesmas ruas de Setúbal, a oligarquia que governa demonstra não ter aprendido nada nem esquecido nada. O que se passou naquelas ruas tem como alvo todos aqueles que não aceitam submeter-se e resignar-se perante a escandalosa jogada mafiosa da classe dominante portuguesa. Todos os que dizem não. Todos os que se cansaram de assistir ao jogo e decidiram começar a jogar.

19 comentários:

Incógnito disse...

Obrigado ao Ricardo pelo relato. Solidariedade para todos os companheiros e amigos que viram os seus direitos civis espezinhados pelos actos policiais à margem da lei, e reveladores do estranho critério de legalidade que a PSP gosta de proclamar.

Que não se esqueça a morte de 3 activistas sindicais no Porto no 1º de Maio há cerca de poucos anos atrás durante uma actuação da PSP, homicídios esses cujos autores nunca foram identificados.

LAM disse...

Ricardo Noronha,

Como disse num outro blog, um outro "ensaio", também decorrente de uma situação menor, ocorreu no Porto aquando o 12 de Março, com a polícia a provocar resposta dos manifestantes como pretexto para a intervenção.
Desengane-se quem pensa que a reacção da polícia de intervenção portuguesa, em caso de intensificação da contestação na rua, será idêntica à que assistimos das congéneres europeias. Ela será mais próxima, com danos físicos relevantes para os manifestantes com o que temos assistido mais recentemente em países árabes.
O treino intensivo, o bom equipamento com que o actual governo a tem dotado, aliado à falta de experiência de gestão de situações de stress e à consabida inimputabilidade e protecção oficial dos seus agentes, vai levar a casos de violência extrema. Convém que se tenha isso em conta.

Anónimo disse...

Vocês, na próxima, têm que filmar tudo!
Não sei se me faço entender...

Anónimo disse...

E ninguém filmou, nem que fosse com um telemovel?

Anónimo disse...

Havia uma companheira com camara de filmar todo o percurso mas a ultima vez que a vi estava a eu a correr pela minha integridade fisica e vi-a ser alvejada por um tiro de shotgun.
O estado da maquina desconheço assim como o estado da pessoa.
Esperemos que nos proximos dias algo surja.

Anónimo disse...

Pessoalmente e muito sinceramente não estou a ver a PSP, fazer tão grande aparato conforme relatado, por nada (sem motivo), só porque querem demonstrar Poder, através de meios coercivos; ou só porque pretendiam dar umas bolachadas sem ter pretexto algum... (não querendo desvalorizar os olhos e a percepção de Ricardo). Contudo, penso que as pessoas (no geral, a sociedade, incluindo-me a mim) querem justificar as falhas da democracia, através do que hoje em dia já não é de todo a Policia do antigamente (refiro-me ao respeito, e disciplina que havia em relação a uma farda), uma Policia repressiva, em tempos que havia uma criminalidade que hoje em dia é banalizada (devido à exaustão da repetição de determinados crimes: furtos; assaltos), actualmente perante uma criminalidade extremamente violenta e crescente, e uma Justiça que se mostra omissa, e de "braços cruzados", temos uma Policia, com projectos (estes elaborados por quem de direito, por norma em frente a uma secretaria, e não por quem age no terreno, como acontece em todas as profissões, infelizmente), de intervenção pro-activa e de proximidade, que de todo não erradicam os "males" que emergem hoje em dia na sociedade portuguesa. Obviamente, em todo o lado há profissionais dignos, e há aqueles que compactuam com os mandos e desmandos de "cabecinhas pensadoras". A criminalidade, e as acções levadas a cabo por esta população (portuguesa), estatisticamente (devido ao número de habitantes e os registos de crime), pode ser comparada a sociedades, em que a Policia, de forma a pôr mão aos incidentes/crimes, não é questionada, pelas intervenções repressoras que tomam, no entanto nessas mesmas sociedades, o cidadão comum, não banaliza/desgasta a postura perante uma farda das Forças de Segurança, e aqui, no nosso Portugal, até lhes "cuspimos" para a cara, só porque nos multaram.
Todos falamos (principalmente a comunicação social), do número de mortos, devido a uma arma da PSP ter sido disparada, no entanto, ninguém fala, ou se manifesta pela quantidade de elementos da PSP que já morreram, por ter a atitude pacifica que todos nós pedimos!
"A segurança deve ser alimentada pela segurança mútua."
Bem haja ao Ricardo e a todos os leitores do seu Blog...

anonimo 116 disse...

Agradecia-se que o senhor relaçoes publicas da policia chamada "de segurança publica" remetesse as suas palavras caras tiradas dos manuais da pide na sua tentativa de vitimizaçao da policia para a respectiva sanita ou latrina da sua pocilga ou esquadra mais proxima se faz favor...obrigado pela atençao

O Eleitorado Morre Mas Não Se Rende disse...

em direcção ao bairro da Fonte Nova, uma das zonas da cidade mais carregadas de memória histórica pelas lutas operárias de vários anos.....pois pelo menos contrariamente aos anos 75 e 76
desta vez não houve fogo real

e é uma versão muito parcelar
houve mais garrafas e pedras até em direcções onde o único polícia que estava nem fardado estava

houve mais brutalidade dos dois lados

do que no FCP Vitória de Setúbal

isso houve

isto de ligar uma PSP de 2011
à PSP de antanho não cola

hoje é pessoal mal pago que vem das mesmas zonas do que o pessoal que prende

excepção aos anarkas que vinham muitos deles das camadas mais forneciditas da sociedade

como disse um gajo da Bela Vista
-alguma vez.... a polícia em Setúbal já nem policia algumas àreas para quê...não têm autoridade nenhuma

da Bela Vista à Camarinha há 15 ou 20 assaltos diários de que ninguém
faz queixa

parecem putos de 13 ou 14 anos a
entrar e a espicaçar a polícia até ...enfim

O Eleitorado Morre Mas Não Se Rende disse...

resumindo tretas...

O Eleitorado Morre Mas Não Se Rende disse...

ou isso ou preciso d'óculos

Emília Cerqueira disse...

Excelente relato. Estive lá e fui perseguida, apanhei um tiro de shotgun nas costas, ajudei alguns companheiros e companheiras feridas, senti-me alvo de terrorismo policial.
Abraço, Ricardo.
Emília Cerqueira

Anónimo disse...

http://pt.indymedia.org/conteudo/newswire/4418

francisco c santos disse...

esta brutal actuação da P S P, não acontece por acaso, é o desespero do sistema com a falência do actual poder político que nos tem explorado desenfreadamente,começa ver que o povo está a sair há rua para os contestar, não é por acaso que é precisamente no 1º de maio,dia do trabalhador,que esta brutalidade acontece, não podemos baixar os braços,está na hora de nos unirmos e começar a desenvolver formas de luta par os enfrentar.Há luta camaradas...

Anónimo disse...

é fazer queixa à IGAI: http://igai.pt/. Ou seja, organização também nas consequências dos actos. eles também têm de aprender que não ficam sem um processo em cima.

Anónimo disse...

teste

Anónimo disse...

Pode apagar este comentário e o anterior 'teste'. Eu escrevi um longo comentário e quando o submeti apareceu a informação de 'Service Unavailable'. Perdi tudo... :(
desculpe.

raquelbrancofreire disse...

eu estive no 25 de Abril de 2007. e o teu relato é fiel ao que aconteceu. estava com o meu filho que ficou chocado com a polícia (por sorte tínhamos saído por um minuto do protesto para ir comprar um gelado). ele perguntava: mas mãe, a polícia não existe para nos proteger? porque é que a polícia bateu nas pessoas? os polícias são maus? é que as pessoas não estavam a fazer nada de mal. foram dias de conversa sobre a democracia. conversa que é cada vez mais permente.
raquel

Anónimo disse...

Em resposta ao comentário do anónimo: "Agradecia-se que o senhor relaçoes publicas da policia chamada "de segurança publica" remetesse as suas palavras caras tiradas dos manuais da pide na sua tentativa de vitimizaçao da policia para a respectiva sanita ou latrina da sua pocilga ou esquadra mais proxima se faz favor...obrigado pela atençao"

Lamentáveis palavras, numa época, que se partilha opiniões de forma integrativa, e não de uma forma evidentemente incomensurável! Eu não sou relações públicas de ninguém, só relatei a minha opinião como outros o fizeram, é um direito meu escolher expressar-me ou remeter-me ao silêncio, no entanto não é um direito exceder os limites do bom senso partilhando devaneios num blog.

Enfim... alguns vivem segundo as demandas que escolheram... porque sim, pode só haver uma vida, mas durante essa, temos imensas oportunidades diferentes, de escolha! "Nós fazemos as nossas escolhas, e as nossas escolhas fazem-nos a «Nós»."

J.T.

MF disse...

Também estive no 25 de Abril de 2007 na Rua do Carmo, e vejo muitas semelhanças com esta carga policial. Dois dias depois apresentei queixa no IGAI e exigi ser ouvida para relatar tudo o que vi. Apesar da demora, os depoimentos de quem esteve presente tiveram resultados. Não se calem, usem de todos os meios possíveis!