21/06/10

Não, Saramago não foi para o céu

Li por inteiro “Memorial do Convento”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “Levantados do Chão” e “Ensaio sobre a Cegueira”. Acho que não li quatro livros de nenhum outro autor. À excepção da ministra da educação e dos neo-realistas portugueses, é claro, mas estes últimos por ossos do ofício, mesmo se – fique sublinhado – não dei o tempo por mal empregue.

Gostei bastante de todos os livros que li de Saramago. Mas sobretudo quero dizer isto: tenho admiração política por Saramago. Como tenho por muita gente, é certo, e apesar de nem saber definir bem o que é isso de admiração política.

Nos dias que correm, o mais importante é dizer que tenho admiração política por Saramago. Não tenho admiração política por Saramago por ele ser comunista, embora também por isso, mas sobretudo porque o seu comunismo era intempestivo. E especifico: Saramago tinha tudo para se tornar um vulto da “cultura portuguesa” e, quero crer, soube fugir a esse destino. Um destino que lhe era imposto por ministros, academias, partido e até pelo líder de um partido que em tempos se reclamava orgulhosamente (embora, acho, sem necessidade ou piada que o valha) como a ovelha negra do rebanho. O cerimonial destes dias indicia que Saramago sobrevive a tudo isto.

Tendo tido o azar de receber o Nobel, e num país em que o feito é raro, Saramago tinha tudo para ter direito a estátua na avenida principal, qual Marquês, mais o nome posto por aí, a enfeitar palácios, estádios ou outras coisas. No mínimo, teria direito a um presidente da república no seu funeral. O seu percurso, todavia, manteve sempre a ferocidade, a inconstância e a imprevisibilidade que resistem a qualquer tipo de patrimonialização. Estes traços de intempestividade, politicamente, sobrevieram em várias ocasiões, entre elas a sua luta contra a religião.

Essa luta deixa uma marca profunda na cultura política em Portugal. Não por ser uma luta contra a religião. Mas pelo modo como foi travada. O desespero de uma série de intelectuais católicos que se limitam a dizer que o ódio de Saramago a Deus era uma forma negada de amar esse Deus, e que por isso respeitam Saramago mesmo dele discordando e que o que importa é a sua obra e o seu legado e a cultura portuguesa e o futuro da humanidade e os passarinhos e as mães e os filhos e a terra, o desespero de quem segue essa rota é o desespero de quem percebe o perigo da crítica saramaguiana ao divino (mas também ao Estado, ao património, à obra): não se tratou nunca de uma crítica simplesmente baseada no racional contra o irracional, mas sim, e por um lado, no bom senso (que não se limite à razão), por outro, numa vontade de transformação desmesurada. Tomar o céu de assalto. Saramago tomou o céu de assalto. E fê-lo durante a sua vida. E não, não foi para o céu. Era só o que faltava que por deixarmos de acreditar no paraíso celeste, deixássemos de lutar por ele em terra.

1 comentários:

João Romão disse...

Olá Zé
Dizes que "Saramago tinha tudo para ter direito a estátua na avenida principal, qual Marquês, mais o nome posto por aí, a enfeitar palácios, estádios ou outras coisas. No mínimo, teria direito a um presidente da república no seu funeral. O seu percurso, todavia, manteve sempre a ferocidade, a inconstância e a imprevisibilidade que resistem a qualquer tipo de patrimonialização".

Não será bem assim: Saramago é das raras pessoas em Portugal que teve direito a estátua ainda em vida e tem o nome espalhado por ruas, praças, bibliotecas ou auditórios por esse país fora (uma rápida pesquisa na net confirma isso). Não houve "ferocidade" que resistisse à "patrimonialização". Não vejo nenhum mal nisso, já agora.
Abraço