27/06/10

"Classe Política" e Democracia

Um pouco por toda a parte, ouvimos falar da necessidade de reformar, melhorar, "dignificar" - o que significa remunerar mais generosamente, conceder mais mordomias, etc. - a classe política, sendo o subentendido que tal seria um grande passo em frente no que se refere à nossa vida política e à qualidade do regime ou à sua transformação. Pois bem, sendo embora evidente que os políticos de profissão que temos na região portuguesa e no mundo não são particularmente brilhantes, esta insistência na necessidade ou importância de uma classe política "de qualidade" é inversamente proporcional à vontade de democratização das instituições e de extensão da cidadania governante que é condição do exercício democrático.
Bem sei que, entre muitos outros, os termos "democracia" e "cidadania" são muitas vezes, ou as mais das vezes, imprópria ou abusivamente usados, o que tem por efeito criar mal-entendidos em torno de pontos que seriam de outro modo evidentes, como é o caso da ideia segundo a qual a democracia efectiva e a cidadania governante implicam o combate imediato contra a reprodução de uma "classe política" dotada de competências hierárquicas próprias e a existência de políticos profissionais.
A democracia é o regime político que tem por princípio a autonomia de seres humanos que se dão, assumindo explicitamente fazê-lo, as suas próprias leis - a sua própria lei - e que, nesse exercício, se criam como cidadãos (co)governantes e (auto)governados. Ou, mais precisamente, a democracia consiste no processo de universalização da cidadania: todos e cada um dos membros da sociedade recebem, a partir do momento publicamente instituído em que sejam considerados adultos, como lei a responsabilidade pelas leis que se dão e pelo exercício do poder político que os governa. O cidadão é, como dizia Aristóteles, aquele que é capaz ao mesmo tempo de governar e de ser governado. A democracia é a universalização - no termo de um processo de formação/socialização definido e igual para todos - desta condição de cidadania.
Tanto basta para que comecemos talvez a ver melhor como a cidadania democrática e a política profissional ou a classe política especializada tendem necessariamente a excluir-se. A política democrática abre, para além da especialização profissional e das diversas competências particulares, um domínio não-profissional, que é o da organização explícita da sociedade e da deliberação sobre ela, em que, ao contrário do que se passa noutras esferas, ninguém é de direito superiormente qualificado ou autorizado. O que tem por pressuposto que promova também qualquer coisa como, para o dizermos nos termos de Hannah Arendt, um tipo de reflexão não-profissional, que, não se confundindo com a filosofia especializada, é condição de toda a interrogação filosófica e crítica, tal como esta pode exercer-se a propósito de todos os fazeres e saberes, e tal como, para tornar possível a cidadania governante de que é solidária, terá de exercer-se sobre o governo da cidade, sobre os seus usos e costumes, movimentos e tensões. Este espaço público de decisão e autonomia, pressupondo e promovendo a capacidade individual de reflexão autónoma e crítica da cada cidadão, condena à partida enquanto antidemocrática a formação de uma classe política profissional, bem como, noutra ordem de ideias, a ideia de uma política científica, ou da invocação de um saber ou doutrina como mecanismo de legitimação de uma divisão hierárquica do poder.
Em democracia a divisão do trabalho político deixa de confirmar e reproduzir a divisão política do trabalho, pois deixa de passar, entre os cidadãos, pela oposição entre governantes e governados, e, na medida em que seja possível falar ainda dela, refere-se à dupla e simultânea condição de governante e de governado que caracteriza os cidadãos que, participando igualitariamente na definição das leis, por elas são, também universalmente, vinculados.
Se voltarmos agora ao início, teremos de admitir que uma classe política mais competente e profissionalizada poderia talvez tornar as medidas da administração mais eficazes do que são, mas não as tornaria mais democráticas. Pelo contrário, qualquer maior eficácia do poder político que se baseie no reforço da sua divisão hierárquica e afaste a cidadania da sua vocação/dimensão governante equivale a um reforço da dominação. A democracia, embora não exclua e até requeira a delegação mandatada, é directa. A ideologia da competência e da profissionalização da política é um caldo de cultura antidemocrático por excelência.
Mas, na actual sociedade, a própria classe política tende a dispor de cada vez menos poder político real em benefício de instâncias e agentes que se apresentam como simples portadores das exigências da economia e das técnicas e métodos de racionalização correspondente. É por isso que a democratização do poder político e a criação de um espaço público de deliberação e decisão da cidadania governante não exige apenas a extinção da política como actividade profissional exercida por um corpo especializado, mas também a restituição explícita à esfera da deliberação e decisão democráticas regulares a instituir do poder político exercido na esfera económica. A organização económica é política, e politicamente articulada de um extremo a outro, como, de resto, os próprios pensadores clássicos da matéria sabiam, chamando "economia política" ao objecto que se propunham estudar. Deste modo, no momento em que a dimensão política explícita e os que dela se ocupam aceitam ser telecomandados por aquilo a que chamam a objectividade ou a racionalidade ou a necessidade da economia, esta última esfera passa cada vez mais a ser, em vez de sua intendência, o lugar central do poder político efectivo, enquanto a classe política se vê tendencialmente reduzida a uma espécie de direcção do pessoal, à escala da sociedade gestorialmente concebida.
O desenvolvimento de cada um destes pontos poderia e deveria levar-nos muito longe. Mas já não será mau que a sua indicação esquemática possa contribuir para fazer ver melhor que a verdadeira política democrática - essa actividade autónoma do cidadão que, como queria Castoriadis, interpela e estipula a autonomia, pelo menos potencial, dos demais na construção das cidades humanas e das suas leis - é um fazer e um fazer-ser muito mais amplo e profundo do que o rotineiro afã de tudo quanto faz uma classe política em vias de subalternização no interior da oligarquia dominante. E para fazer ver melhor também que a luta pela cidadania democrática governante e contra a profissionalização oligárquica da política é condição da restituição à política e a cada um de nós, dentro e fora dela, já não diríamos da sua plena dignidade, mas, na esteira de Orwell, de uma existência decente.


(Versão adaptada de um texto publicado em PREC. Põe, Rapa, Empurra, Cai, Lisboa, número zero, Novembro de 2005)

5 comentários:

António Geraldo Dias disse...

A democracia circula como os capitais,uma classe globalizada traduzindo a [di]visão política do mundo,não tem nada, mesmo nada a dizer à imensa maioria - para quem a democracia do consumidor significa a submissão a um tempo mundial único e o apagamento da durée histórica - a democracia ou se transforma ou degrada-se à vista de novas formas de dominação e exploração...a extensão da crise torna insuportável o peso dos media do poder e do dinheiro,põe em causa a vontade de democratização das instituições e de extensão da cidadania governante que é condição do exercício democrático.

Anónimo disse...

MS. Pereira: O ponto que mais importância assume- do meu estrito ponto de vista, claro- pode talvez situar-se na conjugação entre " democracia efectiva e a cidadania governante ", parece ter/dever a demonstrar a (in)compatibilidade entre as diferentes versões de orgãos de representação política - sua estrutura,funções e direito. digamos, a partir do Liberalismo-e o garante da dominação, da hierarquia e da servidão voluntária que se concentra no poder de Estado.Que tudo isto constituem magnas questões da " Ciência Política ", cheias de aporias e impasses teóricos,nós não as ignoramos nem as aplanamos como fazem os "mercadores de ilusões " do marxismo-leninismo mais vulgar e escolástico, que o " Vias " combate e desmistifica " quase " todos os dias. A Hannah Arendt perspectiva também muito o conceito de " dominação interior "- complexo que Marcuse e Reich ajudaram a estabelecer de forma radical. E que desmistifica a " naturalizão " das formas de repressão e servidão voluntárias na assumpção dos limites e da legalidade jurídica do sistema de "violência legal" estampado no ( e pelo) Estado. Lénine já desconfiava das " oligarquias ", como ele o disse expressamente,quando as questões do poder, do saber e da direcção da inicitiva política se começaram a agudizar no P.C.R.,no pós periodo revolucionário de 1917/18...Niet

Anónimo disse...

Caro Miguel

Estou de acordo com o que tomo como central no pensamento que expõe: que na “democracia” vigente o poder político se encontra alienado pelos cidadãos, em favor de um grupo geralmente designado por “classe” política, a quem, contudo, em minha opinião corresponde melhor o conceito de casta, ou mesmo de seita. E que compete ao colectivo de cidadãos resgatar esse poder, sem o que essa tal de “democracia” permanecerá ilusória e sem substância, não passando de um eufemismo.

Penso contudo que, associado à questão da profissionalização/não profissionalização da actividade política, torna-se necessário precisar com clareza o conceito de política, para que aquilo que o é deva ser a 100% assumido pelos cidadãos, como, mais do que direitos, deveres de cidadania; e aquilo que o não é permaneça na esfera do profissional, e, como qualquer outra área do saber entregue a profissionais.

Também me parece que é necessário avançar e fomentar a discussão de ideias acerca da(s) forma(s) de concretizar o exercício do poder político pelos cidadãos, num novo cenário de cidadania governante: assembleias on-line, tirando proveito das novas tecnologias ?, assembleias presenciais?, umas e outras?, outras formas?; e qual a estratégia para conseguir, por parte dos cidadãos, o resgate do poder político?; e esta nova forma de exercício do poder político, é anterior ou é posterior ao emergir de um novo quadro de relações de produção?

Um abraço

nelson anjos

Miguel Serras Pereira disse...

Caro camarada Nelson,

1. Sim, "classe" na expressão "classe política" remete não para um conceito marxista ou afim de "classe", mas para um grupo particular ou componente daquilo a que um marxista sui generis como o João Bernardo chamaria a classe dos gestores.
2. Sobre a sua pergunta acerca das relações de produção, etc., eu diria que a transformação a empreender será simultânea nos planos económico e político, e segundo os mesmos critérios. Nos termos queindico a seguir, no meu último ponto.
3. A questão da antecipação das formas concretas de um exercício radicalmente democrático do poder pelos cidadãos é a mais difícil. Retomando aqui parte de um diálogo com o Pedro Viana, eu diria, no entanto, que a luta pela cidadania governante
"tem um dos seus campos de batalha principais no campo da actividade económica, porque a sua esfera é moldada por relações de força políticas e é teatro de um exercício de poderes políticos (politicamente instituídos e garantidos pelo monopólio estatal dos meios de violência) que não se assumem como tais e se tornam por isso mesmo mais eficazes, apresentando-se como “naturalizados” ou sacralizados por uma racionalidade estranha à deliberação, convicções, fins e decisões daqueles cujas condições de existência governam. Insisto em que uma política de rendimentos democrática e a democratização do mercado que pressupõe só se pode basear numa distribuição que equivalha a adaptação nesse campo do princípio 'um voto igual para cada cidadão'. Insisto também na extensão de um domínio de bens não mercantilizáveis, e nas garantias que universalizem o acesso a ele. Afirmo que todas estas lutas devem ser travadas e organizadas de uma maneira que prefigure, através das formas de organização e acção adoptadas, o modo de exercício do poder político que reclamamos (…). Penso que as reivindicações detonadoras de uma generalização das lutas terão de tomar por objecto as opressões, desigualdades e privações de toda a ordem que atravessam a vida quotidiana, apontando para alternativas universalizáveis mais do que para a multiplicação de direitos cada vez mais minuciosos e condicionais desta ou daquela categoria particular. Posso apresentar propostas, nas actividades em que me envolvo, que avancem nesse sentido e animar outros cidadãos a fazerem o mesmo. Mas não posso nem devo – não podemos nem devemos – apresentar uma versão já pronta dos modos e vias de aprofundamento da cidadania governante. (…). Resta acrescentar que quem quer o mais quer o menos e que a intensificação da participação política acompanhada de uma constante reivindicação de democratização das suas formas e organização nos fornecem um critério de juízo político decisivo".

Forte abraço

msp

Anónimo disse...

OH, M.Serras Pereira: O seu " silêncio " quer dizer aprovação com o articulado da minha argumentação? E não se esqueça- como eu já o tinha referenciado- que o sistema oligárquico dominante hodierno tem muito pouco a ver com a democracia, modelo de raíz greco-latino...Niet