28/09/10

Irlanda, os mitos e as realidades (II)

Miguel Noronha responde ao meu post sobre o assunto.

Realmente é verdade que os liberais também foram (talvez até mais que grande parte da esquerda) bastante criticos dos bailouts à banca. O que eu queria dizer era:

a) A Irlanda gastou muito mais dinheiro que Portugal/Espanha/Grécia a salvar bancos (bem, tecnicamente talvez não tenha gasto muito dinheiro liquido, mas assumiu o passivo de bancos mais ou menos falidos, o que vai dar ao mesmo)

b) A Irlanda fez um bocadinho mais de poupanças na despesa pública corrente do que P/E/G

E o certo é que no ultimo ano havia montes de artigos escritos por liberais (admito que não pelo colectivo dos liberais) elogiando os cortes irlandeses em contraponto com os países da Europa do Sul (sobretudo Portugal), o que me parece uma valorização de b) face a a) - afinal, se o dinheiro gasto/empatado com a salvação da banca irlandesa foi muito maior que o poupado com os cortes na despesa, o lógico não seria escrever artigos dizendo "É assim que se corta na despesa" mas algo do género "Como fingir que se corta na despesa: gastar uma enormidade em X e reduzir um bocadinho em Y" (um pouco como aliás alguns fizeram a respeito dos bónus dos gestores das empresas bailoutadas nos EUA).

Já agora convém recordar que o entusiasmo liberal e "liberalizante" pela Irlanda não nasceu nos últimos meses - há uns 15 anos que esses sectores apresentam a Irlanda como o modelo a seguir (e creio que é sempre o país da zona euro no topo dos rankings de "liberdade economica" da Heritage Foundation).

E quanto ao argumento que "Se não tivesse havido o plano de austeridade a Irlanda estaria mil vezes pior"? Bem, provavelmente não estaria muito melhor, mas será que estaria muito pior?

Em primeiro lugar, penso que não há grandes dúvidas que uma politica de austeridade tende a reduzir o PIB nominal (creio que a polémica entre os economistas é mais se o efeito principal é diminuir o PIB real ou os preços, não que a diminuição ocorra). E uma diminuição do PIB (seja real ou nominal) leva também a uma redução dos imposto cobrados. Assim temos:

Déficit orçamental= Despesa primária + Juros da dívida - Impostos

Deficit em % do PIB = (Despesa primária + Juros - Impostos)/PIB

Uma politica de austeridade, em principio, deixa os juros na mesma e leva a uma redução (pelo menos em termos nominais) da despesa primária (isto é, da despesa que não o serviço da dívida), dos impostos recebidos (a menos que parte dessa austeridade também seja um aumento de impostos, mas isso tem também os seus problemas) e do PIB. Ou seja, determinar se uma politica de austeridade vai ou não reduzir o deficit depende de vários factores (penso que, por regra, quando mais endividade e "en-jurado" um país estiver mais dificil é reduzir o deficit pelos cortes na despesa); e, mesmo que a austeridade reduza o deficit absoluto, pode aumentar o deficit (e o endividamento) em percentagem do PIB.

Note-se que dizer "a austeridade não é solução" não equivale a dizer "a não-austeridade é solução" - a minha opinião é que, com ou sem austeridade, o caminho mais provável da Irlanda/Portugal/Grécia é, ou a bancarrota (com o default - provavelmente temporário - de parte da dívida), ou tornarem-se um protectorado financeiro do resto da UE (que assumiria parte da dívida - a troco, claro, do fim real da independência e até certo ponto da democracia); é verdade que qualquer dessas hipoteses também irá implicar austeridade, mas ao menos será uma austeridade com uma saída previsivel a prazo.

13 comentários:

Mr. Brown disse...

Caro Miguel Madeira,

a propósito deste e do seu anterior post sobre a Irlanda, deixe-me acrescentar um detalhe (de significativa importância) que não parece estar a levar em conta: os custos de salvação da banca não são totalmente conhecidos (diz que o governo irlandês assumiu o passivo, mas também assumiu o activo, a questão estava em saber quanto do activo era tóxico). A Irlanda está a cair na situação em que está porque os mercados estão desconfiados que os custos são muito superiores aos esperados (ou seja, o activo dos bancos está muito mais deteriorado do que se pensava). Repare por exemplo no que é dito no relatório da S&P's que reduziu o rating irlandês em Junho deste ano:

"We have lowered the long-term rating on Ireland because we believe that the fiscal costs to the government of supporting the Irish banking system will be significantly higher than what we had expected when we last lowered the rating in March 2009, and, consequently, that the net general government debt burden will also be significantly higher over the medium term."

Mr. Brown disse...

A leitura disto pode ser útil:

http://www.standardandpoors.com/ratings/articles/en/us/?assetID=1245220032861

Republic of Ireland Long-Term Rating Lowered To 'AA-' On Higher Banking Sector Fiscal Costs; Outlook Negative

"The projected fiscal cost to the Irish government of supporting the Irish financial sector has increased significantly above our prior estimates.

We are therefore lowering our long-term sovereign credit rating on the Republic of Ireland to 'AA-' from 'AA'.

The negative outlook reflects our view that a further downgrade is possible if the fiscal cost of supporting the banking sector rises further, or if other adverse economic developments weaken the government's ability to meet its medium-term fiscal objectives."

Niet disse...

Duas notas: O déficite público e o endividamento externo foram gerados pelo stop-and-go deflaccionário da economia portuguesa, a partir de 2000. Onde graves problemas de competitividade e de de falsa-reestruturação industrial- a " miraculosa " política de incentivos às PME e não-só... - agravou o endividamento externo, por fases sucessivas, até às astronómicas taxas de juros da actualidade, três vezes superiores às da Alemanha. 2)A crise económica é uma questão política insofismável e incontornável à escala europeia. A chamada " cura de austeridade " é um processo mistificatório de fazer pagar os mais fracos e os mais dependentes dos Estados endividados, que se iludiram por via de um logro com truques de economia de casino pelo disparo do consumo de bens e de crédito bancário, teleguiados na sua esmagadora maioria pela rede hipotecária privada das economias-chave da U. Europeia, Alemanha e França. Os cidadãos de Portugal, Grécia, Espanha,etc, comprararam viaturas alemãs e toda a espécie de máquinas de utilidade doméstica ou industrial, com dinheiro emprestado pelos bancos alemães... A equipe dos " Ladrões de Bicicletas " e as tribunas dos economistas associados de Marianne têm tentado explicar tudo tim-tim por tim-tim.E se mesmo os Nóbeis norte-americanos não conseguem pôr nos carris a economia USA, que fará as mono e dependentes economias dos periféricos( que custearam o crescimento da Alemanha, indirectamente)?Delors, Prodi e Fisher publicaram há poucos dias, no F. Times, um artigo a solicitar mais coesão e sentido de solidariedade para a UE: será o apelo ainda escutado? Niet

Niet disse...

O " milagre " económico irlandês foi um produto trabalhado pelo aprofundamento da integração europeia e os colossais investimentos USA prodigalizados pela administração Clinton, com raízes históricas muito próprias e singulares pelas fortes correntes emigratórias do início do séc.XX.Foi sempre um modelo muito " especial " de crescimento muito dependente da economia USA. Niet

Miguel Madeira disse...

Pois. Eu por acaso até tinha pensado em neste post escrever qualquer coisa no género "a Irlanda é uma espécie de subúrbio de Boston", mas depois acabou por não surgir a oportunidade

Mr. Brown disse...

"um processo mistificatório de fazer pagar os mais fracos e os mais dependentes dos Estados endividados, que se iludiram por via de um logro com truques de economia"

Existiu ilusão? Sim, ainda hoje há e não é pouca. Implica desresponsabilização? Não.

"Os cidadãos de Portugal, Grécia, Espanha,etc, comprararam viaturas alemãs e toda a espécie de máquinas de utilidade doméstica ou industrial, com dinheiro emprestado pelos bancos alemães... A equipe dos " Ladrões de Bicicletas " e as tribunas dos economistas associados de Marianne têm tentado explicar tudo tim-tim por tim-tim."

Também compraram casas com dinheiro emprestado pelos bancos alemães. E ainda querem fazer TGV's e aeroportos com dinheiro emprestado pelos bancos alemães. E os "Ladrões de Bicicletas" querem que continuemos a viver com dinheiro emprestado pelos bancos alemães...

Justiniano disse...

Caro Niet,
Querem correcção sem correcção!? Como bem aponta aqui o caro Mr. Brown!

Niet disse...

Hello, Mr Brown: Como deve ter acontecido consigo, " comentei" o post pelo dever democrático de emitir a minha opinião e contribuir para o diálogo. Mais nada.Procuro uma via alternativa ao sistema capitalista e, por isso,leio tudo o que se prende com o " maquinismo " desta delirante máquina capitalista que joga tudo - por invíos caminhos ou na mais descarada das prosápias...- na promoção da exploração, na criação " científica " de desigualdade e na " privatização " paranóica da vida humana. E existe um ponto em que o Mr. Brown não acerta: existe desresponsabilização- e enorme -de todos nós na aceitação passiva desta ordem despótica, discriminatória e violentíssima que nos ilude e integra a todos neste círculo infernal que se apresenta como o estádio mais desenvolvido do progresso. Niet

Justiniano disse...

Caríssimo Niet, bem o compreendo e acompanho nas resistencias às abominações que a redução do todo a mero valor de troca reproduz. Na resistencia à mercantilização da alma, sem, contudo, abdicar da mercantilização, em si. E acima de tudo, acompanho-o, na questão do merecimento e da responsabilidade que assinala ao Mr. Brown! Não sei é se ele também o não assinalaria a si próprio!
Mas, nesta temática a que também, ou verdadeiramente, se refere o post, não estão em causa as resistencias à mercantilização, ou pelo menos estão muito para além disso. É à problemática da virtude das responsabilidades, da temperança, da prudencia e a final da justiça.

Niet disse...

Caro Justiniano: Recomendo-lhe vivamente a leitura de um texto "divino" do Castoriadis sobre a Igualdade. É uma peça revolucionária fortíssima, muito bela, profunda e dinâmica como tudo o que escreve o C.C.; com efeito, apetece-nos ir para a acção, de imediato. Como sabe, está tudo em Poche, e pertence ao I vol. dos Carrefours dans le Labyrinthe: " Valeur, Égalité, Justice, Politique de Marx à Aristote et d´Aristote à Nous ".
"Quer se trate de troca ou da justiça distributiva Aristóteles( e já também Platão) colocava como postulado indiscutivel que era preciso igualizar; e que a verdadeira igualdade não é nem pode ser aritmética, mas geométrica, por outras palavras proporcional. Postulado também indiscutível para Marx: os indivíduos são " naturalmente diferentes/desiguais "- e é preciso igualizá-los. (...) A verdadeira igualdade é a que, porque toma em linha de conta a desigualdade ´natural`dos indivíduos, permite ultrapassá-la por e pela proporcionalidade: à cada um segundo as suas necessidades. Foi dessa forma que, respondendo à questão da distribuição equitável, Marx concretiza( para os bens económicos) a ideia aristotélica de equidade, " justiça e melhor que justiça "- igualdade e melhor que igualdade ". A não perder, pois! Salut e Action ! Niet

Justiniano disse...

Ora, meu caro Niet, a justiça em Aristoteles!! Quantos séculos de pensamento não influenciou e tantas as suas leituras que continuam hoje fluentes e influentes...lembro-me, entre muitos e muitos outros, de S. Agostinho, Tomás de Aquino e Kant!!
Mas muito haveria a dizer!!!
Um bem haja para si.

Niet disse...

Caríssimo Justiniano: É de Marx a Aristóteles de que se trata! E nada substitui a experiência da leitura!Procure,fotocopie,please! Liberté et égalité! Niet

Justiniano disse...

OK, caro Niet.