27/09/10

Movimentos


Este  debate, despoletado por este post, desviou-se, parece-me, das duas questões substanciais que estiveram na origem das discussão, ao caminhar num sentido progressivamente mais abstracto, em que tanto a natureza do movimento social como a do partido político em questão, foram evacuados
Pode-se evidentemente ter, da organização de trabalhadores precários e das diferentes opções políticas que ela convoca, as mais variadas opiniões. Mas quando se integra uma dinâmica de mobilização à escala internacional, que teve uma determinada origem e parte de certas premissas relativamente ao seu funcionamento interno e objectivos, é avisado tê-lo em conta. O Mayday Lisboa (e Porto e Coimbra) pode e deve fazer um percurso próprio e em nada deve «obedecer» a uma tradição ou seguir as pegadas de outros. Mas não deve ignorar que a dinâmica que deu origem a este movimento caminha num sentido outro que não o da escolha de porta-vozes, a fugaz ocupação do tempo de antena ou a vaga de fundo para esta ou aquela proposta legislativa.
Acontece que o Bloco de Esquerda se caracteriza precisamente  - e não me parece estar a ser injusto ao afirmá-lo - por uma estratégia  assente no pressuposto de que em políticasó existe aquilo que a opinião pública sabe que existe. O corolário dessa estratégia é a formatação de toda a acção segundo o critério da sua visibilidade mediática. No meu modesto entender, esta é uma forma que escolhe o seu próprio conteúdo e que privilegia a selecção de rostos e vozes capazes de protagonizar esse tipo de intervenção. Para além disso, como Francisco Louçã não se tem cansado de repetir, o Bloco deseja operar as transformações que ambiciona para a sociedade portuguesa (e, imagina-se, mundial) a partir do exercício da governação, pondo em prática uma política socialista. É por isso natural que subordine a sua intervenção política  a esse objectivo e avalie os movimentos sociais a partir desse prisma -  e que os seus militantes, bem assim como os seus funcionários, sejam convidados a fazê-lo.  É um assunto que diz respeito aos militantes do Bloco de Esquerda e, numa outra escala, aos seus eleitores. Ninguém põe em causa a legitimidade dessas opções.

Acontece que o Mayday surgiu e se apresenta - em Portugal como na maioria dos outros sítios - como um movimento horizontal, assembleário, construído a partir do contributo das e dos precári@s que o integram. Não é casual que ele não tenha uma estrutura formal ou uma direcção, que não se considere (nem seja considerado) um parceiro social  nem tenha como objectivo avançar propostas para resolver o problema da precariedade. Trata-se de um movimento que pretende acima de tudo construir a força dos precários num cenário em que a balança se encontra decididamente inclinada a favor do patronato. Que assenta no pressuposto de que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores.
Ora, num cenário em que a ideia de que a política é algo feito pelos políticos tem a força que se sabe, fazer comparecer nas assembleias de um movimento nada mais nada menos do que cinco pessoas que são pagas por um partido político vem apenas reforçar um processo de divisão social do trabalho no seu seio. A disponibilidade dessas pessoas para o activismo não pode ser separada do seu vínculo a um partido político que luta para fazer valer os seus objectivos próprios. Mesmo se essas pessoas não usurpassem - e já se deu o caso de o fazerem - decisões que pertencem à assembleia, nem fossem descuidadas ao ponto de utilizar os recursos logísticos do seu partido para produzir materiais de divulgação do movimento - e já se deu o caso de o fazerem -, ainda assim a sua participação no movimento não deixaria de se apresentar como um elemento delicado. Não passa nem passou pela cabeça de ninguém dizer-lhes para não aparecerem, mas esperar-se-ia da sua parte alguma preocupação relativamente à natureza dessa participação, o cuidado em não assumir ali uma centralidade que resulta sobretudo da natureza extremamente específica do seu trabalho, a percepção de que ser um funcionário político não é propriamente um emprego como os outros.
Infelizmente, e isto também diz algo acerca da natureza dos debates políticos no interior do Bloco de Esquerda, todos os anos tem sido incrivelmente difícil fazer valer alguns princípios e preocupações no funcionamento interno do movimento. E diz algo acerca da natureza dos debates políticos no interior do Bloco de Esquerda porque parte substancial dos seus militantes (com honrosas excepções que me excuso de nomear) reage a opiniões das quais discorda como se elas fossem pura e simplesmente delirantes ou inaceitáveis, a partir da posição de autoridade de quem julga saber tudo acerca de "como se fazem as coisas" e atalhando muito depressa caminho segundo um critério extremamente discutível de "eficácia". Não me parece casual que entre essa parte substancial de militantes, e com um ardor assinalável, se encontrem quase sempre os ditos funcionários e assessores. Não porque tenham sido instruídos para o fazer (um pouco de seriedade intelectual não fica mal a ninguém), mas pura e simplesmente porque é essa a sua cultura política e foram habituados a raciocinar dessa forma. Como se as pessoas que pensam de uma maneira substancialmente diferente não fizessem a mínima ideia do que estão a dizer. Essa desconsideração pelas opiniões alheias - que levou, por exemplo, num claro momento de desorientação, à comparação de pessoas preocupadas com o papel dos funcionários ao Dr. Salazar, porque ele também não gostava de partidos - pode ser fatal num movimento desta natureza e comprometer o esforço de envolvimento na luta social de pessoas que nunca viveram experiências de militância, mas que nem por isso são menos capazes ou conscientes do ponto de vista político. E agora, vou ficar por aqui porque estou a trabalhar.

3 comentários:

Zé Neves disse...

ricardo, de acordo. com tempo continuarei por onde pegas. nomeadamente, o facto do bloco tender a subordinar a sua acção nas várias esferas à sua acção numa dessas esferas, a esfera político-institucional, nomeadamente o triângulo Louçã-televisão-parlamento.

abç

Miguel Serras Pereira disse...

Fundamentalmente de acordo - embora com reduzida informação sobre o caso concreto de partida - com o que dizes, combativo camarada Ricardo, sobre o modo de funcionamento do BE (incluindo a menção a que nem tudo se reduz entre os seus militantes a essa lógica prevalecente.
Também eu - talvez tomando um ponto de partida diferente - gostaria de ter tempo para retomar a questão.
Abraço grande até lá

miguel sp

Niet disse...

O que conta neste seu post é de arrepiar. Está para lá de tudo o que se possa imaginar: burocracia crescente e letal,anti-democrática, por um lado,mediocridade política gritante e entrismo à má-fila, por outro.Como tudo isso é possível? Niet